Trabalho contemporâneo

STF, Justiça do Trabalho e liberdade econômica. A lei mudou. E o juiz?

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30 de março de 2021, 9h08

Spacca
Em 26 de março de 2021 o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento virtual do Tema 383, que cuida da equiparação de remuneração entre terceirizados e empregados de empresa pública tomadora dos serviços, restando evidenciada a postura da Justiça do Trabalho de não observar, majoritariamente, os valores atinentes à liberdade econômica, ignorando em suas interpretações a incidência do princípio da livre iniciativa, que também constitui fundamento da República exatamente no mesmo artigo e inciso do valor social do trabalho.

Chega-se a tal conclusão pelo voto do ministro Alexandre de Moraes, que consigna que "em verdade, a Justiça do Trabalho reitera, neste caso líder, sua postura contraditória aos avanços tutelados pela Carta Magna no campo das liberdades contratual e econômica, seara hodiernamente regida pela acirrada competição empresarial, cujo eixo de atuação gira, na descrição do i. ministro Luiz Fux, em torno da "dinâmica da economia moderna, caracterizada pela especialização e divisão de tarefas com vistas à maior eficiência possível, [em que] diversos agentes podem fazer parte de um complexo sistema produtivo, tornando, na verdade, como único tomador do serviço o consumidor final"." (RE 958.252)

Na mesma linha, o ministro Luís Roberto Barroso: "Como demonstrado no âmbito da ADPF 324, os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram ao agente econômico a decisão sobre terceirizar ou não parte das suas atividades e, ao fazê-lo, baixar custos ou agregar novas expertises (art. 170, caput e inc. IV, CF). Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos (ou, ainda, incentivá-lo a não ter qualquer trabalhador permanente desempenhando a mesma atividade). Trata-se, portanto, de entendimento que esvazia o instituto da terceirização (ou que amplia desnecessariamente seu uso). E limita injustificadamente as escolhas do agente econômico sobre a forma de estruturar a sua produção."

E segue o ministro em seu voto: "Veja-se que a decisão proferida na ADPF 324 ressalvou expressamente alguns direitos que, por integrarem patamar civilizatório mínimo em matéria trabalhista, devem ser assegurados em igualdade de condições aos empregados da empresa tomadora de serviços e da contratada. Esse é o caso, por exemplo, dos treinamentos, material e normas de segurança e saúde no trabalho. 7. Não é, contudo, o caso da remuneração do trabalhador, já que se trata de empresas diferentes, com possibilidades econômicas distintas. Os mesmos princípios — da liberdade de iniciativa e livre concorrência — vedam que se imponha à contratada as decisões empresariais da tomadora do serviço sobre quanto pagar a seus empregados, e vice-versa."

A questão, que estava pacificada pela Orientação Jurisprudencial 383 da SDI I do TST, sempre causou espécie por aplicar o princípio da isonomia a trabalhadores de empresas distintas, a tomadora e a prestadora dos serviços, mormente por ser, no caso específico, uma delas integrante da administração pública indireta.

Não há dúvidas de que houve esforço louvável da doutrina e da jurisprudência na tentativa de se buscar uma solução para a circunstância de duas pessoas trabalharem lado a lado, o empregado efetivo e o terceirizado, na mesma função, com direitos diferentes.  Em tese de doutorado perante a PUC/SP, inclusive, defendi que a terceirização que viabilizasse tal circunstância deveria ser ilícita, ou seja, que não deveria haver "terceirização parcial".  Isso antes das mudanças havidas em nosso ordenamento jurídico com a Lei da Terceirização (Lei 13.429/17), a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17) e a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19).

E justamente neste ponto cabe ao intérprete e aplicador do Direito do Trabalho reconhecer seus limites. Antes, simplesmente não existia nenhuma das leis acima mencionadas, o fenômeno da terceirização, portanto, era basicamente regido por entendimentos doutrinários que aos poucos iam sendo testados na jurisprudência, regendo a Súmula 331 do TST o norte para os argumentos que até então eram produzidos.  Era literalmente uma terra sem lei.

Após o advento do arcabouço legislativo específico, cabe ao intérprete cumprir as prescrições criadas pelo Congresso Nacional, salvo nos casos específicos em que o Poder Judiciário pode superar o texto legal, como quando resta verificada a sua inconstitucionalidade.  No tema da terceirização, como se sabe, o próprio STF já definiu a constitucionalidade da terceirização na atividade-fim e a liberdade das empresas para determinarem o modelo de sua organização (RE 760.931-RG; ADPF 324), mesmo para o período anterior às alterações legislativas mencionadas.

Não há mais espaço, portanto, para utilizar do mesmo pensamento que era dominante à época da Súmula 331 do TST, devendo o intérprete e, mais especificamente, o magistrado do Trabalho, simplesmente aceitar a nova forma de se compreender o fenômeno a partir de valores que, a princípio, rechaçava.

O novo capitulo sobre os limites da terceirização, a isonomia entre empresas distintas, revela o quanto é difícil para o julgador deixar suas convicções pessoais de lado, rever suas concepções de mundo e aceitar que existe uma outra forma de se entender questões para além da sua própria subjetividade.

Embora a independência do juiz seja um pilar da sociedade, o exercício do poder jurisdicional não pode ser maculado por uma retórica que usa da sua suposta liberdade para justificar uma resistência ao modelo criado legitimamente pelo legislador.  Cada juiz possui suas convicções pessoais, marcadas pelo subjetivismo inerente à condição humana, mas é justamente para preservar a democracia que precisamos reconhecer limites à atuação do Poder Judiciário, para que exerça seu papel de forma técnica e imparcial.

Quando agentes públicos e membros de poder, notadamente do Poder Judiciário, se arvoram em realizar justiça social em seus próprios moldes, incitando o descumprimento da lei através de rebuscados argumentos principiológicos, que demonstram apenas o voluntarismo do aplicador do Direito, algumas vezes contrariando expresso texto de lei, entramos em uma perigosa seara onde a insegurança se instala e, no caso da área trabalhista, pode produzir um efeito nefasto: a desproteção decorrente da superproteção.

Como bem analisado pelos juristas Luciana Yeung e Luciano Timm o grande perigo é o chamado "efeito bumerangue" que ocorre "quando um juiz profere uma decisão (normalmente com boas intenções) para proteger uma pessoa, mas pela ignorância dos efeitos, a decisão acaba 'voltando' e gerando resultados que prejudicam a própria pessoa que se quis inicialmente proteger. Tal qual o bumerangue, que após lançado, volta e pode cortar a cabeça do lançador incauto" (veja a íntegra aqui).

Os atores que atuam perante a Justiça do Trabalho não mais podem ignorar a mudança da legislação trabalhista, a fim de se preservar a ordem jurídica de forma isenta, a fim de que cada jurisdicionado possa encontrar ressonância para preservação dos seus direitos dentro do Poder Judiciário, com magistrados que honram o juramento que fizeram em suas posses: "prometo cumprir a Constituição e as leis do país".  Se a lei mudou, o magistrado também deve mudar.

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