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Opinião: Cognição, teoria da asserção e apreciação do mérito

30 de março de 2021, 6h35

Por Alexandre Outeda Jorge, Dérick Mensinger Rocumback, Clara Amoroso de Andrade

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Tema de relevante destaque no estudo moderno do processo civil é a cognição, vista como importante técnica de adequação do processo à natureza do direito ou à especificidade da pretensão a ser tutelada. Emerge a cognição, em suas diversas modalidades, como técnica central de adaptação do processo às especificações dos direitos, destinada a garantir o seu resultado útil [1].

Como ensina Kazuo Watanabe [2], caracteriza-se a cognição por ser, em essência, um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes. São as questões de fato e de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o fundamento do julgamento do objeto litigioso da demanda. A cognição está intimamente atrelada à efetividade processual e se volta à produção do resultado final, que é justamente a decisão ou o provimento jurisdicional do pedido inicial.

Em uma sistematização mais ampla, a cognição pode ser analisada em dois diferentes planos, o plano horizontal e o plano vertical: 1) no plano dito horizontal, a cognição tem por limite os elementos objetivos do processo — nesta hipótese, a cognição pode ser plena ou parcial, conforme a extensão que lhe for permitida; e 2) no plano vertical, classifica-se a cognição de acordo com seu grau de profundidade, podendo ser sumária ou exauriente.

A cognição sumária, de início, pode ser compreendida como uma cognição superficial e em menor profundidade de conhecimento, inerente à fase processual. A convicção do magistrado, na cognição sumária, dá-se pela análise das condições da ação [3] [4] — que são os requisitos necessários para o pleno exercício do direito de ação — in status assertionis, com base tão somente na análise das alegações contidas na petição inicial, na sua veracidade e na comprovação do direito por meio dos documentos apresentados. É a cognição exercida pelo magistrado, por exemplo, ao apreciar uma tutela de urgência.

Nessa toada, a sumarização da cognição é técnica destinada a garantir o resultado útil ao processo, pois permite a concessão de tutelas com base em um juízo de probabilidade e verossimilhança [5]. Assim o é porque, em muitos casos, para que seja alcançada a efetividade da tutela, é necessária a concessão de provimentos baseados em uma cognição sumária [6], em que a urgência não se harmoniza com o tempo necessário à completa produção probatória.

Tecidas tais considerações, passa-se a analisar a cognição exauriente. Em suma, baseia-se no aprofundado exame das alegações e provas, exigindo mais do que a mera análise preliminar (cognição sumária). É a cognição típica dos procedimentos que visam ao desfecho em definitivo do conflito, uma vez que possibilita a produção e a análise das provas que se fizerem necessárias para alcançar a solução de determinado litígio.

A cognição exauriente, conforme leciona Watanabe [7], é a técnica utilizada pelo juiz para, por meio da consideração, análise e valoração das alegações e das provas produzidas pelas partes, formar juízo de valor acerca das questões suscitadas no processo, a fim de decidi-las.

Dessa forma, a cognição exauriente permite a prolação de uma decisão baseada em juízo definitivo de certeza jurídica, impedindo que surjam discussões posteriores sobre o mesmo tema. Pode-se dizer que as tutelas calcadas em cognição exauriente, uma vez que resultam de vasta dilação probatória e ampla discussão, aparecem como instrumento que homenageia a segurança jurídica.

Levando-se em consideração o exposto, foi desenvolvida a teoria da asserção, pela qual as condições da ação deveriam ser aferidas de maneira abstrata, considerando-se apenas o que foi afirmado na inicial, de modo que aquilo que restar provado durante o regular andamento da demanda será considerado como mérito. Dessa forma, a teoria da asserção se coaduna com os princípios da celeridade e economia processual, da efetividade e da instrumentalidade das formas, com o objetivo de obter a máxima eficácia com o menor tempo possível [8].

Em linha ao avanço processual moderno, constrói-se um cenário que ressalta a cognição pela própria natureza da atividade do magistrado. Explica-se: deve primeiramente o magistrado conhecer as razões (em profundidade ou apenas superficialmente) para, somente após isso, adotar as providências voltadas à concretização do direito da parte, decidindo nos limites propostos pelas partes [9].

No que diz respeito à teoria da asserção e à apreciação do mérito, saliente-se que, no primeiro momento de análise das condições da ação, realizado em um plano hipotético e lastreado nas assertivas constantes na inicial, há um olhar para o direito material e não ao processo. Mas seria esse olhar incompatível com o julgamento de mérito propriamente dito?

Sob a ótica da teoria da asserção, parte da doutrina entende que, em sendo possível ao magistrado, mediante uma cognição sumária, perceber a ausência de uma ou mais condições da ação, a demanda deverá ser extinta sem resolução do mérito, ao passo que, caso seja necessária uma cognição exauriente, a demanda deverá ser extinta com resolução de mérito. Mas estaria correta a afirmação de que a primeira análise realizada, mediante a cognição sumária, não versaria sobre o mérito da ação?

Defende-se aqui o posicionamento, adotado por alguns estudiosos — entre eles Ovídio Baptista —, de que a cognição sumária, em verdade, versaria sobre um primeiro momento de análise de mérito da ação que, em razão de uma construção doutrinária que visa à economia processual, receberia a denominação de condições da ação. Nessa toada, pode-se dizer, meramente por ficção, que essa preliminar análise não julgaria o mérito em si.

Mas, caso se considere que em ambos os cenários se discute, em alguma medida, o mérito da ação e se aprecia o direito material, deveriam, então, existir as condições da ação? Em que pese o entendimento da maior parte da doutrina de que sequer deveriam existir tais condições, a previsão legal nos compele a adotar os necessários contornos práticos, amoldando da melhor forma possível a sua aplicação.

No cenário prático, a leitura e os efeitos da aplicação da teoria da asserção regram-se da seguinte forma: 1) nos casos em que, mediante a cognição sumária, confirmar-se a ausência de uma ou mais condições da ação, haverá o julgamento da lide sem julgamento de mérito e isso permitirá que seja proposta nova demanda; e, 2) nos casos em que for necessária a cognição exauriente, haverá o julgamento da lide com resolução de mérito, o que obstará a propositura de nova demanda em razão da formação de coisa julgada material (uma vez que a matéria ou direito material já terá sido objeto da prestação jurisdicional).

Em certo grau, a solução adotada pelo CPC permite a flexibilização dos institutos processuais na medida em que autoriza, nas situações em que diante da cognição sumária houver o julgamento da lide sem resolução de mérito, o ajuizamento de nova ação e, desta forma, preserva e garante os direitos do demandante. Cogita-se, como se destaca em acórdão proferido em recurso especial repetitivo [10], uma leitura em homenagem ao garantismo e à plena proteção aos direitos basilares dos indivíduos.

Sob essa perspectiva, poder-se-ia conceber a ideia de que a análise da presença das condições da ação, amparada nas garantias constitucionais, serviria como meio útil, necessário e adequado para alcançar a solução do conflito e não como óbice à possibilidade de eficaz prestação da atividade jurisdicional, haja vista não se tratar de absoluta rigidez processual.

Em nosso ordenamento jurídico, a despeito da crítica à sua aplicação, a jurisprudência tem demonstrado ampla aceitação e aplicabilidade à teoria da asserção. Na visão de Luiz Flávio Yarshell [11], isso se dá sob o viés de um juízo preliminar de admissibilidade do exame do mérito da ação, a fim de buscar a antecipação do insucesso do pleito deduzido pelo demandante, em harmonia com os princípios da celeridade e economia processual.

Tanto assim o é que os próprios tribunais exercem a análise in status assertionis, podendo julgar uma condição da ação mediante cognição sumária da ação. Para que se entenda o racional da utilização da teoria da asserção, é preciso ter em mente que a convicção do magistrado, na cognição sumária, deve guardar adequação da intensidade do juízo de probabilidade ao momento procedimental da avaliação, à natureza do direito alegado, à espécie dos fatos aduzidos e ao caso concreto em si.

Com esse entendimento, repudia-se a visão de utilização da teoria da asserção como mero filtro processual e defende-se que deve ela ser compreendida como instrumento para a tutela de um direito, e não para a declaração de sua certeza. Por essa razão, Liebman [12] ressalta ser o grau máximo de probabilidade excessivo, inoportuno e inútil ao fim a que se destina.

Concentra-se, a um só tempo, na maior efetividade na prestação jurisdicional e na redução de demandas em trâmite perante o Poder Judiciário, e sem que isso seja percebido como óbice às garantias e aos princípios constitucionais ou ao acesso à justiça.

Ponto outro que merece realce é a relação das condições da ação com o exercício do contraditório, tendo em vista as condições da ação serem reconhecidamente matéria de ordem pública, uma vez que refletem a supremacia do interesse público sobre o interesse particular.

Antes, na vigência do CPC de 1973, de acordo com Bedaque [13], poderia o magistrado, nos termos da lei, reconhecer de ofício questões que versassem sobre as condições da ação, no entanto, não deveria fazê-lo sem antes ouvir a parte prejudicada, em homenagem ao princípio do contraditório.

Por sua vez, o atual CPC, em seu artigo 10 [14], dispõe expressamente acerca da temática, de modo que o juiz pode decidir de ofício acerca da matéria. Contudo, deve oportunizar às partes o direito de se manifestarem, em respeito especialmente ao princípio do contraditório e ao princípio da não surpresa, a fim de prestigiar tanto quanto possível a segurança das relações jurídicas.

Em suma, não seria desacertado asseverar que o direito à cognição adequada à natureza da controvérsia, aliado aos princípios do contraditório, da economia e da celeridade processual, faz parte daquilo que prestigia o devido processo legal em nosso ordenamento jurídico.

Não se pode, contudo, desvirtuar a leitura que configura o propósito da aplicação da teoria da asserção, na medida em que tal construção jurídico-ficcional não desrespeitaria o princípio da primazia do julgamento de mérito, mas, sim, permitiria a melhor efetividade possível da tutela pretendida, dentro dos limites da própria existência da ação.

 


[1] ABUDD, André de Albuquerque Cavalcanti. Monografia: Cognição exauriente e sumária: segurança versus efetividade. 2003.

[2] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 1987, 136 p.

[3] Enrico Tulio Liebman considera que as condições da ação (originalmente concebidas na Teoria Eclética da Ação como: (i) legitimidade; (ii) o interesse de agir e (iii) a possibilidade jurídica do pedido) são os elementos necessários para a configuração e existência da ação, de maneira que (a) na ausência de uma delas, há carência da ação e (b) se todas estiverem presentes, deverá a ação ser tida como existente, como direito de provocar o exame e a decisão do mérito. Sob tal entendimento, as condições da ação seriam o objeto da cognição do juiz.

[4] Como leciona Barbosa Moreira, o exame das condições da ação deveria ser realizado com abstração das possibilidades com que, no juízo de mérito, vai deparar-se o julgador, ou seja, deverá o magistrado declarar existente ou inexistente a relação jurídica à vista do que foi alegado. MOREIRA, Barbosa. Ob. e loc. cits., p. 200. V., tb., "Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária." Direito Processual Civil (ensaios e pareceres), p. 59.

[5] CALAMANDREI, Piero, Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, 1936, trad. port. de C. R. A. Bassi, Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares, Campinas, Servanda, 2000.

[6] ARMELIN, Donaldo, Tutela jurisdicional diferenciada, in RePro 65/45. Responsabilidade objetiva no código de processo civil, in J. R. Cruz e Tucci (org.), Processo civil – evolução – 20 anos de vigência, São Paulo, Saraiva, 1995.

[7] Da Cognição no Processo Civil, p.41, Freitas Câmara, "o objeto da cognição no processo civil", p. 207.

[8] Segundo a teoria da asserção, a existência da ação dependeria das condições da ação, pois, do contrário, haverá a carência da ação. Logo, aquele que não detém as condições seria carecedor de ação.

[9] Nos termos do artigo 141 do Código de Processo Civil, é vedado ao magistrado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte.

[10] REsp 1352721/SP/SP, rel. ministro Napoleão Nunes Mais Filho, Corte Especial, DJe. 28.4/.2016.

[11] YARSHELL, Luiz Flávio. Tutela jurisdicional. São Paulo: Atlas, 1999, p. 103.

[12] LIEBMAN, ob. e loc. cits., p. 108; Giovanni Arieta, I Provvendimenti d’Urgenza, p. 48.

[13] BEDAQUE, José Roberto. Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: Causa de Pedir e Pedido no Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

[14] Art. 10 do CPC. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.