Opinião

Movimento em defesa do Tribunal do Júri

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30 de março de 2021, 10h34

Uma voz se levanta contra o júri, ganhando a atenção da mídia e dos juristas de todo o país: o ministro Dias Toffoli veio a público e afirmou que o Tribunal do Júri é um instituto falido.

Na condição de presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o ministro nomeou um grupo de trabalho para propor reformas no procedimento do júri, instituído pela Portaria nº 36/2019 [1]. A partir do estudo, em fevereiro de 2020, o ministro entregou ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, uma proposta de alteração legislativa com o objetivo claro de "agilizar e dar maior efetividade aos julgamentos de crimes dolosos contra a vida, de competência do Tribunal do Júri".

O grupo de trabalho elaborou um diagnóstico das ações penais da competência do Tribunal do Júri, identificando questões como a prescrição, o atraso no julgamento de réus pronunciados, as nulidades processuais, tudo isso sendo apontado como razões que impedem o rápido desfecho dos processos do Tribunal do Júri. Conforme o relatório, 30% das ações seriam atingidas pela prescrição e o tempo médio dos processos seria de três anos e dez meses.

A proposta apresentada pelo ministro Toffoli, reunida numa sugestão de alteração legislativa com 15 artigos, concentra a atenção na segunda parte do procedimento, basicamente, dividindo-o em duas espécies: um júri de primeira grandeza para julgar o homicídio consumado qualificado e outro de segunda linha para o homicídio simples, tentado e para os crimes previstos nos artigos 122 a 126. Nesses casos ditos "menos complexos", a sugestão prevê diminuição do número de testemunhas, do número de jurados e do tempo de debates, tudo, como se sabe, para que o julgamento seja mais célere.

Além disso, o grupo do CNJ propôs alterações que evitem adiamentos por falta de testemunhas ou por estouro de urna (falta de jurados). Ainda, a proposta considera ato atentatório à dignidade da Justiça o abandono de plenário pelo promotor de Justiça ou defensor do réu, sob qualquer fundamento ou pretexto.

Finalmente, a sugestão propõe que o jurado receba cédulas com a palavra "condeno" e "absolvo".

O Diagnóstico do CNJ [2] mostra um total de 185.898 processos de júri em andamento na data do estudo. De todas as avaliações feitas, chama a atenção o fato de ter sido pesquisado o tempo de duração dos processos por um critério que tomou como termo inicial a distribuição e como termo final a baixa da ação penal, conforme constou no relatório.

No entanto, uma consulta ao site da Câmara dos Deputados mostra que tramitam inúmeros projetos com propostas de alteração completa ou pontual do Tribunal do Júri [3].

Das propostas em tramitação, merece destaque o PL 8.045/2010, que advém do PLS 156/2009 (substitutivo do deputado João Campos — PRB-GO) e representa a mudança integral do CPP [4]. Nesse projeto, é mantida uma ideia de procedimento próxima do atual modelo, com uma primeira fase do júri dotada de amplo espaço para produção de prova.

Nesse ponto, importante fazer uma análise mais ampla. É que, na linha das reformas processuais penais em curso na América Latina desde o início deste século, não há mais como pensar em alteração de artigos do código, sem a mudança da mentalidade inquisitorial [5]. Ademais, não se pode falar em mudar apenas o júri. Qualquer mudança, antes de ser apenas deste ou daquele ponto do código, deve significar um novo pacto da cidadania brasileira em direção a um novo modelo de justiça penal: o acusatório.

Nesse contexto, o exemplo da reforma chilena é realmente muito útil. Há mais de 20 anos, o país vem implementando uma significativa reforma processual penal, admitindo o modelo acusatório, com a figura do juiz de garantias, num sistema adversarial. As três etapas do modelo chileno transformaram o processo inquisitorial e burocratizado num modelo oralizado e bastante rápido, marcado pela divisão clara dos papéis da polícia, do juiz das garantias, do juiz julgador, do acusador e do defensor.

Na etapa preliminar ou de investigação pode acontecer, quando cabível, a audiência de detenção/custódia, sendo analisadas as questões relativas à prisão e à investigação, inclusive cautelares. Na etapa intermediária é feito o juízo oral de admissibilidade da acusação, com análise da legalidade da investigação (acusador decide se vai ou não denunciar). Finalmente, a terceira fase chamada juízo oral de mérito, na qual acontece o julgamento da causa por três juízes convocados para o ato, sem qualquer conhecimento prévio do caso, inclusive, num processo "sem papel", já que os termos da investigação não são levados para essa fase. Nesse modelo, os juízes que participam do julgamento da causa chegam para a sessão sem qualquer conhecimento dos elementos colhidos nas fases anteriores, ou seja, conhecem a acusação, a defesa e as provas apenas no momento da audiência, não sendo contaminados pelos atos anteriores.

A alteração do procedimento do júri, portanto, passa pela mudança radical da mentalidade dos "operadores" jurídicos para a implementação de um novo processo penal, com juiz de garantias, com exclusão física do inquérito, com originalidade cognitiva dos julgadores da causa, enfim, com todas as mudanças inerentes ao modelo acusatório.

Por assim ser, tanto as mudanças sugeridas pelo CNJ, como aquelas trazidas nos projetos em tramitação no Congresso Nacional, não são capazes de trazer o novo para o processamento dos crimes dolosos contra a vida, mas apenas transformam, tímida e pontualmente, algumas poucas questões.

Implementado o sistema acusatório, com juiz de garantias e demais consectários, torna-se possível falar na mudança da lógica que preside a quase totalidade das propostas de reforma. Nesse passo, ao contrário da diminuição e simplificação da segunda fase do procedimento do júri, entendo ser mais adequado e conveniente que se opere uma mudança na primeira fase.

O equívoco da avaliação feita pelo grupo de estudos do CNJ pode advir do fato de não ter sido considerado o tempo de tramitação processual de forma separada, ou seja, desde a distribuição até o trânsito em julgado da pronúncia e, depois, deste marco até a baixa. Caso tivessem analisado separadamente os tempos, certamente teriam os dados a respeito da tramitação por fase, o que permitiria identificar qual a fase responde pela maior demora na finalização do processo.

Independente disso, é importante pensar a questão por outro ângulo.

A fase mais importante de um julgamento pelos jurados deve ser, exatamente, o julgamento pelos jurados. Por assim ser, ao invés de simplificar e até esvaziar a segunda fase, na qual acontece o julgamento dos réus, o foco deve ser desviado para a primeira fase do procedimento. Isso, sim, pode dar celeridade ao processamento das ações penais por crimes dolosos contra a vida, sem acarretar a perda da qualidade do julgamento da causa.

Se é a celeridade que se busca, precisa-se inverter a lógica proposta pelo CNJ, simplificando a primeira fase, mantendo ou ampliando o espaço de trabalho das partes na fase seguinte, mais importante, por ser a etapa do julgamento das pessoas acusadas.

No atual modelo de procedimento, acusação e defesa apresentam os seus argumentos e produzem as suas provas para o juiz de Direito "julgar" a acusação, quando buscam uma das quatro decisões possíveis: pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição.

Na esmagadora maioria dos casos, porém, já se sabe que a decisão a ser proferida será de pronúncia. O não encaminhamento do réu a júri é uma exceção. Ora, não é razoável que, para alcançar uma decisão excepcional, o CPP preveja uma longa tramitação processual para todos os casos, muito semelhante àquela prevista para os crimes da competência do juiz togado, onde se torna possível a prolação de uma decisão condenatória.

Para demonstrar a impropriedade do modelo atual, basta citar o brocardo "in dubio pro societate". Ora, de que vale toda a extensa produção de prova, desde o inquérito até a decisão que finaliza a primeira fase, se sabemos que basta ao juiz ou tribunal suscitar a dúvida para remeter o caso ao júri?

Além disso, veja que a reforma de 2008 terminou com a possibilidade de leitura de peças em plenário e trouxe uma redistribuição do tempo dos debates, mantendo a decisão da réplica nas mãos do MP. A nova proposta do CNJ traz a sugestão da redução do tempo destinado aos debates. Essa busca de diminuição da oportunidade de exposição das provas e da argumentação, entretanto, provoca uma situação bastante esdrúxula: as partes não têm tempo de mostrar aos jurados o que é produzido na primeira fase, de tal forma que, grande parte do material probatório carreado ao processo antes da pronúncia, não pode ser apresentado aos jurados.

Assim, gasta-se muito tempo e energia para produzir uma quantidade grande de prova na presença do juiz togado (em busca de uma simples decisão interlocutória). As propostas do grupo de trabalho do CNJ, por outro lado, propugnam pela redução do tempo de demonstração dessa prova para o jurado, que é a pessoa incumbida do julgamento da causa. Sem tempo para trabalhar em plenário, o procedimento retira do jurado a oportunidade de conhecer tudo o que foi carreado aos autos no longo e trabalhoso período de tramitação do processo na primeira fase.

Por isso, é mais razoável reduzir a primeira fase, ao invés de diminuir os espaços de produção de prova e o tempo de argumentação da sessão de julgamento, pois o procedimento deve valorizar os julgadores, os destinatários finais da atuação das partes. É corolário do próprio sistema acusatório que as provas sejam produzidas diante dos juízes naturais.

O procedimento, com esse novo formato, tende a ficar mais rápido. Veja que o Ministério Público, de posse do inquérito finalizado (com todas as testemunhas e perícias), oferece a acusação que deverá ser provada perante os jurados. A defesa, logo em seguida, é notificada para responder à acusação, quando pode anexar as provas das suas teses. Com essa fase postulatória-probatória concluída, o processo já estaria pronto para que uma das quatro decisões fosse proferida.

A defesa, nesse quadro, deve estar preparada para uma postura proativa no inquérito policial e/ou para a realização da investigação defensiva que permita a colheita de todos os elementos indispensáveis, especialmente quando pretenda afastar a competência do júri ou decotar alguma qualificadora, por exemplo.

Nesse modelo, a defesa deve ser realmente prévia para eliminar o duplo juízo quanto à admissibilidade da acusação (denúncia e pronúncia), ou seja, para que apenas um julgamento seja proferido quanto à admissibilidade ou não da acusação.

O fato de a simplificação da primeira fase representar uma significativa redução no tempo de tramitação dos processos agrada grande parte dos reformistas, mas, devo dizer, não é o motivo mais importante para a mudança.

O verdadeiro ganho na qualidade do julgamento pelos jurados advém da possibilidade da originalidade cognitiva. É isso que acontece na terceira fase do modelo processual chileno (juízo oral de mérito perante uma tríade de juízes) ou mesmo no júri norte-americano. Entendo que a produção de prova em plenário para os jurados é o ponto central do debate sobre qualquer forma de mudança no júri.

A velha discussão sobre versão de inquérito e versão da primeira fase, as ilegalidades/nulidades da investigação, a leitura insuportável de termos de depoimentos ou o enfrentamento (impossível) das incontáveis horas de vídeos de audiência, entre outros pontos críticos, são elementos que mostram a falência do modelo de duas fases como está posto.

Além disso, a testemunha é chamada para o inquérito. Posteriormente, muito tempo depois, é novamente chamada para a audiência de instrução na primeira fase do júri. Anos mais tarde, a pessoa será chamada pela terceira vez para prestar depoimento — pela primeira vez na frente de quem vai, realmente, julgar o caso —. É evidente o prejuízo para a qualidade da prova testemunhal. Tanto a passagem do tempo, quanto a necessidade de repetição são fatores prejudicam a capacidade de a testemunha depor sobre o que viu ou sabe. Esse prejuízo recai sobre a acusação e sobre a defesa.

Um julgamento no qual o jurado tem a condição de olhar para a vítima, encarar as testemunhas, observar o perito, ter contato próximo com a versão do réu, tudo isso sendo trazido de forma original, no plenário de julgamento, no lugar onde, logo em seguida, será feito o debate entre as partes e onde serão votados os quesitos.

Para que essa reforma seja completa, portanto, algumas questões são indispensáveis: a exclusão física do inquérito policial dos autos da ação penal, submetendo os jurados ao que determina o artigo 155 do CPP, assim como o aumento do número de jurados para oito, com absolvição no caso de empate. Outros pontos devem ser discutidos: maior participação das partes na escolha dos jurados (com formulação de questionamentos), possibilidade de os jurados deliberarem antes da votação, a fundamentação do voto, a igualdade das partes na mobília, o tempo mínimo de uma hora para o debate (em caso de pluralidade de réus), a supressão da réplica e tréplica, dentre outros pontos. 

Mudar a mentalidade, como sempre adverte Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Há uma cota de sacrifício para todas as partes, sem a qual, não haverá como construir um modelo novo e melhor.

Mais não digo.

 


[1] O grupo foi formado apenas por membros do judiciário e do próprio CNJ, encabeçado pelo ministro Rogério Schietti Cruz, do STJ.

[3] Por essa razão, por meio da Escola de Criminalistas, venho convocando profissionais do Brasil inteiro a integrarem o MDJ – Movimento em Defesa do Júri. O grupo, composto por diversas entidades e advogados, esteve reunido no primeiro encontro de 2021 no NUPEJURI — Núcleo de Pesquisas em Tribunal do Júri da FAE, sob a coordenação dos Professores Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Avelar Ribeiro. Aliás, vale recomendar a obra destes autores, notadamente no ponto em que trazem importantes subsídios para o debate (In: PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz, AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri. São Paulo: RT, 2021).

[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Os sistemas processuais agonizam? In: __ PAULA, Leonardo Costa de; SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da (Org.). Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 63-78.

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