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Truques financeiros para aprovação do orçamento respeitando o teto de gastos

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

30 de março de 2021, 13h27

Seguramente você já viu alguns truques, como o de serrar uma pessoa ao meio ou fazer surgir um coelho de uma cartola, coisas que os mágicos fazem normalmente e encantam as plateias. Mais recentemente os mágicos passaram a alertar as pessoas que não devem tentar tais truques, pois existem grandes riscos envolvidos. Tais alertas visam normalmente às crianças, que podem querer serrar o irmão ou os colegas, mas servem para todos. Seria adequado que nossos políticos escutassem esses alertas e evitassem fazer truques de mágica com o orçamento público, pois é extremamente perigoso. Digo isso com os olhos voltados ao orçamento da União para 2021, que foi aprovado no Congresso e aguarda sanção presidencial.

Spacca
Até recentemente era muito fácil fazer mágica para a inclusão de despesas no orçamento. Bastava o Congresso aumentar a estimativa de receitas, a fim de que houvesse espaço para incluir no orçamento "suas" despesas, isto é, as emendas parlamentares, utilizadas para fazer frente aos "seus" gastos eleitorais, usualmente paroquiais. Para isso, o Congresso partia da ideia de que a receita estava subestimada, e a elevava, usando como base legal o argumento de que estava corrigindo erros ou omissões (CF, artigo 166, §3º, III, "a"). Nem sempre os órgãos de controle criticavam essa conduta.

Nessa época, a fórmula utilizada pelo Poder Executivo para gerenciar o orçamento era a do contingenciamento (LRF, artigo 9º), ou seja, através de decretos informava que a arrecadação era insuficiente para fazer frente aos gastos orçados, e limitava a execução das despesas, em especial as emendas parlamentares. Havia aí uma espécie de "cabresto financeiro", pois tais emendas eram utilizadas como moeda de troca política, visando a obrigar os parlamentares a votar os projetos de interesse do Executivo, na linha por este desejada. Quem votasse com o Executivo tinha o dinheiro liberado para "sua emenda"; para quem não se alinhasse, mantinha-se o contingenciamento.

Ocorre que o notório ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, em demonstração de independência do Parlamento, liderou a aprovação da EC 86, em 2015, e criou a obrigatoriedade da execução financeira das emendas parlamentares individuais até o limite de 1,2% da receita líquida da União (CF, artigo 166, §§9º, 11 e seguintes), o que, de certa forma, reduziu o toma-lá-dá-cá entre Executivo e Legislativo, reduzindo o cabresto financeiro.

Mais recentemente, em 2019, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, liderou a aprovação da EC 100, tornando obrigatória a execução financeira das emendas parlamentares de bancada estadual até 1% da receita líquida da União (CF, artigo 166, §§12 e ss).

Ocorre que, como no poema de Carlos Drummond de Andrade, "no Meio do Caminho Havia uma Pedra", isto é, havia a regra do teto de gastos, instituída pela EC 95, em 2016 (artigo 106 e seguintes, ADCT). Através dessa norma, se tornou irrelevante para esses fins o ajuste na receita, pois, mesmo que esta aumente (de verdade ou por mágica parlamentar), as despesas primárias não podem crescer na mesma proporção, pois limitadas pelo teto de gastos. Registre-se desde logo que as despesas financeiras da União, para pagamento e rolagem de sua dívida pública, estão fora do teto de gastos.

Logo, limitadas as despesas primárias pelo teto, como o Congresso conseguiria fazer crescer as emendas parlamentares, individuais e de bancada, que se tornaram de execução obrigatória? Observe-se que tais emendas são importantíssimas para a manutenção da base parlamentar do presidente da República, servindo de anteparo para eventuais litígios entre esses poderes que podem chegar até ao pedido de impeachment.

A fórmula encontrada pelo Congresso foi dar um "chega para lá" nas demais despesas, a fim de que as "suas emendas" coubessem no teto. Para não restar dúvida, isso foi incluído na LDO de 2020 (Lei 13.898/19) e na de 2021 (Lei 14.116/20).

Trocando em miúdos. O Congresso teve de reduzir os demais gastos para que as "suas emendas" coubessem no teto de gastos, e poderia fazer isso de algumas formas: ou 1) reduzindo os já minguados recursos que a União dispõe para investimentos; ou 2) reduzindo os gastos obrigatórios da União, isto é, salários, previdência, verbas para saúde e educação etc.

No ano passado foi adotada a primeira opção, com redução dos investimentos. Até aí, como cidadãos, só nos restou lastimar a opção política adotada.

Neste ano o Congresso foi mais ousado e aprovou a Lei Orçamentária Anual da União, que aguarda sanção presidencial, reduzindo os gastos obrigatórios. Com isso, as emendas parlamentares saíram de R$ 22 bilhões para R$ 48,8 bilhões. Em contrapartida, foram cortados 26,5 bilhões na área social, sendo a maior parte na área previdenciária, calculada com números subestimados. O projeto de lei orçamentária foi enviado em agosto de 2020 com uma previsão de salário mínimo de R$ 1.067, mas esse valor já foi reajustado para R$ 1,1 mil, e cada R$ 1 a mais no salário mínimo eleva as despesas públicas previdenciárias em R$ 351,1 milhões. Comenta-se que esse truque foi feito com o apoio do presidente da República — a conferir.

A seguir essa regra, para fechar as contas, será necessário contingenciar gastos com o pagamento de luz, água e outros itens necessários ao funcionamento dos órgãos públicos — o que envolve os serviços de saúde, no meio da pandemia. Claro que os ameaçados de sempre serão os já minguados gastos com prevenção ambiental e com universidades e órgãos de pesquisa — o censo deste ano e a presidente do IBGE já foram para o brejo.

Ocorre que existe outro truque financeiro na manga, para uso posterior, ao longo do ano. O Poder Executivo conta com o instrumento financeiro dos créditos adicionais (Lei 4.320/64, arts 40 e seguintes) para obter do Congresso autorizações para a realização de novas despesas. Porém, sem a correspondente receita, como isso ocorrerá? Através de maior endividamento e, com a aprovação pelo Congresso, não haverá mácula à regra de ouro (CF, artigo 167, III).

Com isso, a mágica foi feita na lei orçamentária: foram aumentados os gastos com emendas parlamentares e aparentemente respeitada a regra do teto.

Ocorre que existe uma barreira para esta mágica — ou seja, a plateia identificou o truque, e notou há uma tentativa de drible na Constituição.

Esse drible, que a mágica não conseguiu esconder, está no fato de que as despesas obrigatórias se constituem em uma cláusula pétrea orçamentária, isto é, o Congresso não pode deliberar sobre essas despesas, devendo acatar o que tiver sido enviado pelo Poder Executivo no projeto de lei orçamentária anual. Para quem quiser conferir: CF, artigo 166, "§3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso: II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre: a) dotações para pessoal e seus encargos".

Esse é o pulo do gato que inviabiliza o truque da burla ao teto de gastos, pois no poder deliberativo do Congresso está excluído o de decidir sobre "dotações para pessoal e seus encargos". Logo, encolher tais despesas obrigatórias está fora da competência normativa do Congresso, e, com isso, a plateia identificou o truque que se tenta realizar.

Lateralmente deve-se registrar, para a perfeita compreensão de todo esse quadro, que o Congresso também não pode legislar, no âmbito dos gastos: 1) sobre o montante a ser pago da dívida pública (CF, artigo 166, §3º, II, "b"); 2) sobre o montante a ser pago de precatórios, pois são ordens judiciais (embora, por meio de EC postergue sucessivamente seu pagamento, como efetuado pela recente EC 109/21, o que é uma desmoralização do Poder Judiciário); 3) sobre as vinculações de receitas como garantia dos direitos fundamentais de saúde e educação; e, no âmbito da receita, 4) o Congresso também não pode legislar sobre as imunidades tributárias. Tudo isso se constitui no que denominei de cláusulas pétreas orçamentárias, que não se confundem com as cláusulas pétreas constitucionais do artigo 60, §4º. Todas essas limitações ao poder de legislar do Congresso decorrem de normas constitucionais, o que bem demonstra seu déficit democrático e republicano, e que foi apontado em texto específico, ao qual dirijo o leitor interessado [1].

Quais são as saídas, já que a plateia está atenta a tudo isso?

As saídas políticas seriam: 1) o presidente da República vetar esse truque, o que me parece pouco provável; 2) o Ministério da Economia, para não melindrar a base de apoio político do presidente no Congresso, pode tentar convencer os parlamentares a trocarem a destinação de suas emendas, por exemplo, saindo de uma obra e passando a bancar um gasto obrigatório, como pagamento de aposentadorias e benefícios sociais, o que me parece também ter poucas chances de êxito.

A saída jurídica é submeter esta matéria ao STF, com dois possíveis encaminhamentos: 1) discutir esse déficit democrático e republicano, que se repete a cada ano desde 1988, pois as leis orçamentárias são de prazo certo, anuais. Isso implicaria em discutir a constitucionalidade de normas constitucionais originárias, o que é de difícil encaminhamento, embora não impossível, e empoderaria ainda mais o Congresso (o atual e os futuros); ou 2) discutir essa matéria de forma pontual, contestando apenas a lei orçamentária anual, caso sancionada pelo presidente da República com esse truque, em face do preceito constitucional acima apontado.

Olhando a partir de hoje, tudo indica que a saída será pela contestação da lei orçamentária em face da Constituição, colocando mais uma vez o problema no colo do STF.

Pobre país. Discute-se como pagar emendar parlamentares com um mórbido estoque de 300 mil mortos por uma única doença, em um ano. Jamais tivemos catástrofe igual no Brasil.

 


[1] SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2018, item 3.5.

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    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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