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O Dia Nacional em Memória às Vítimas da Covid-19 e a justiça social

Autor

  • Celeste Leite dos Santos

    é promotora de Justiça idealizadora do Memorial Avarc em memória às Vítimas da Covid-19 coordenadora do grupo de trabalho do projeto de lei do Estatuto da Vítima e associada do Movimento do Ministério Público Democrático.

29 de março de 2021, 8h02

Mais de um ano após a decretação do estado de calamidade pública em razão da emergência epidemológica da Covid-19, tivemos até a última quinta-feira (25/3) 300.685 mortes no Brasil, em um universo de 12. 220.01 pessoas infectadas [1].

A validação diária dos dados denotam que a população está carente de sentido e reconhecimento da dor compartilhada por todos vivenciada. Vivemos em um universo de colapso do sistema de saúde por não terem sido adotadas estratégias eficazes preventivas e epidemológicas que evitassem que o país ostentasse o vergonhoso segundo lugar em número de casos e mortes por Covid-19 [2].

A esperança da vacina não nos trouxe o alento necessário para seguirmos em frente, eis que permeada por disputas políticas em um cenário projetado de eleições federais e estaduais vindouras.

Eentre os efeitos da crise instaurada pela Covid-19, podemos destacar a sensação de vitimização, injustiça, discriminação e desejo de vingança que permeiam nossas redes sociais. Tais sentimentos correspondem ao que costumo definir como vitimização coletiva, ante a ausência de medidas de proteção, apoio e desvitimização previstas no Estatuto da Vítima, em especial no cenário de grave crise da saúde pública que vivenciamos (PL 3890/2020).

Nesse contexto, a memorialização é uma importante ferramenta restaurativa que permite a construção da paz, uma vez que reconhece o trauma histórico, coletivo e cultural advindo com a crise da Covid-19 e permite que o processo de luto coletivo precoce que estamos vivenciando seja transformado em ações e sentimentos positivos, potencialmente preventivos a prática delitiva e outros conflitos violentos.

O reconhecimento do Dia Nacional em Memória às Vítimas da Covid-19 permite que se caminhe para a reconciliação e a reconstrução social a nível individual, comunitário e coletivo. Nesse sentido, o Projeto de Lei 3.890/2020 estabelece o dia 7 de agosto como o Dia Nacional de Valorização da Memória das Vítimas da Pandemia causada pelo novo coronavírus (PL 3890/2020 artigo 23).

Os diálogos antitéticos que permeiam a necessidade de honrar os mortos e lembrar suas trajetórias são tão prevalentes quanto o impulso para tentar reprimir memórias terríveis e seguir em frente. A superação da negação é efetuada em sociedade em todo o mundo por meio de atividades memoriais para preservar a história relacionada a eventos traumáticos.

Por mais que seja difícil reconhecer, o fato é que gerações subsequentes à nossa nascerão e os eventos por nós vivenciados desaparecerão da memória imediata dos integrantes do tecido social. Isso não significa que não serão transmitidos seus efeitos de geração a geração (trauma intergeracional). O desenvolvimento contínuo de ferramentas que permitam avaliar o impacto gerado é um precioso processo de aprendizado para as futuras gerações.

A fim de contribuir com essa iniciativa de memorialização, foi criado no Parque do Carmo o Memorial Avarc às Vítimas da Covid-19 [3], abarcando uma ampla variedade de formas de registro da memória desde cartas para as gerações futuras, condolências, depoimentos, ações empreendidas, estudos —, que serão lacrados ao término da vacinação na cápsula do tempo lá existente, de sorte que o "seguir em frente" que fatalmente acompanhará o seu término permitirá que a memória coletiva nos legue lições do passado que permitam a não repetição de erros em um futuro não tão distante.

Daí a necessidade de serem replicadas por todo o país as iniciativas de memorialização, entendida como um processo tendente a homenagear todos aqueles que sofreram ou morreram durante a crise mundial da Covid-19. Essa ferramenta de justiça restaurativa permite que o passado possa ser reinterpretado para atender a uma ampla gama de necessidades políticas ou sociais, consolidando, assim, uma nova identidade nacional e comunitária.

Um dos principais componentes restaurativos a serem debatidos durante e após a crise que vivenciamos é a implantação do processo nacional de reconciliação, e isso pressupõe: a) dizer a verdade (efetuar uma contabilidade não apenas estatística, mas também social, econômica e da violência); b) justiça (responsabilização de seus atores adotando-se o modelo distributivo ou o preconizado pelas práticas de justiça restaurativa).

Ad argumentandum tantum, entre o espólio da crise que atravessamos não poderemos deixar de contabilizar a violência civil perpetrada pelos homens contra as mulheres, com implementação de ações de silenciamento pelo terror psicológico e suposto desrespeito a padrões eleitos para garantia da continuidade no poder. Nunca a violência contra a mulher em qualquer de suas formas foi tão visível na história da humanidade, desde a sua institucionalização no século 12, e, certamente, não serão recursos meramente repressivos que a farão desaparecer, sem que haja a necessária capacitação de toda a sociedade no trato e acolhimento das vítimas, independentemente da origem da vitimização civil, criminal ou decorrente de pandemias e causas naturais.

A reconstrução e recuperação social perpassam por uma série de intervenções para promover o progresso econômico, político e social, culminando com a transformação da própria identidade dos integrantes do tecido social com mais equidade e justiça social. Contamos com todos nesse esforço coletivo de reconstrução social e agradecemos o apoio ao Projeto de Lei n. 3890/2020.

Autores

  • Brave

    é promotora de Justiça, coordenadora dos grupos de estudos de gênero do MPSP, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, doutora em Direito Civil pela USP e gestora do Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos – Projeto Avarc.

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