Mais de um ano após a decretação do estado de calamidade pública em razão da emergência epidemológica da Covid-19, tivemos até a última quinta-feira (25/3) 300.685 mortes no Brasil, em um universo de 12. 220.01 pessoas infectadas [1].
A validação diária dos dados denotam que a população está carente de sentido e reconhecimento da dor compartilhada por todos vivenciada. Vivemos em um universo de colapso do sistema de saúde por não terem sido adotadas estratégias eficazes preventivas e epidemológicas que evitassem que o país ostentasse o vergonhoso segundo lugar em número de casos e mortes por Covid-19 [2].
A esperança da vacina não nos trouxe o alento necessário para seguirmos em frente, eis que permeada por disputas políticas em um cenário projetado de eleições federais e estaduais vindouras.
Eentre os efeitos da crise instaurada pela Covid-19, podemos destacar a sensação de vitimização, injustiça, discriminação e desejo de vingança que permeiam nossas redes sociais. Tais sentimentos correspondem ao que costumo definir como vitimização coletiva, ante a ausência de medidas de proteção, apoio e desvitimização previstas no Estatuto da Vítima, em especial no cenário de grave crise da saúde pública que vivenciamos (PL 3890/2020).
Nesse contexto, a memorialização é uma importante ferramenta restaurativa que permite a construção da paz, uma vez que reconhece o trauma histórico, coletivo e cultural advindo com a crise da Covid-19 e permite que o processo de luto coletivo precoce que estamos vivenciando seja transformado em ações e sentimentos positivos, potencialmente preventivos a prática delitiva e outros conflitos violentos.
O reconhecimento do Dia Nacional em Memória às Vítimas da Covid-19 permite que se caminhe para a reconciliação e a reconstrução social a nível individual, comunitário e coletivo. Nesse sentido, o Projeto de Lei 3.890/2020 estabelece o dia 7 de agosto como o Dia Nacional de Valorização da Memória das Vítimas da Pandemia causada pelo novo coronavírus (PL 3890/2020 — artigo 23).
Os diálogos antitéticos que permeiam a necessidade de honrar os mortos e lembrar suas trajetórias são tão prevalentes quanto o impulso para tentar reprimir memórias terríveis e seguir em frente. A superação da negação é efetuada em sociedade em todo o mundo por meio de atividades memoriais para preservar a história relacionada a eventos traumáticos.
Por mais que seja difícil reconhecer, o fato é que gerações subsequentes à nossa nascerão e os eventos por nós vivenciados desaparecerão da memória imediata dos integrantes do tecido social. Isso não significa que não serão transmitidos seus efeitos de geração a geração (trauma intergeracional). O desenvolvimento contínuo de ferramentas que permitam avaliar o impacto gerado é um precioso processo de aprendizado para as futuras gerações.
A fim de contribuir com essa iniciativa de memorialização, foi criado no Parque do Carmo o Memorial Avarc às Vítimas da Covid-19 [3], abarcando uma ampla variedade de formas de registro da memória — desde cartas para as gerações futuras, condolências, depoimentos, ações empreendidas, estudos —, que serão lacrados ao término da vacinação na cápsula do tempo lá existente, de sorte que o "seguir em frente" que fatalmente acompanhará o seu término permitirá que a memória coletiva nos legue lições do passado que permitam a não repetição de erros em um futuro não tão distante.
Daí a necessidade de serem replicadas por todo o país as iniciativas de memorialização, entendida como um processo tendente a homenagear todos aqueles que sofreram ou morreram durante a crise mundial da Covid-19. Essa ferramenta de justiça restaurativa permite que o passado possa ser reinterpretado para atender a uma ampla gama de necessidades políticas ou sociais, consolidando, assim, uma nova identidade nacional e comunitária.
Um dos principais componentes restaurativos a serem debatidos durante e após a crise que vivenciamos é a implantação do processo nacional de reconciliação, e isso pressupõe: a) dizer a verdade (efetuar uma contabilidade não apenas estatística, mas também social, econômica e da violência); b) justiça (responsabilização de seus atores adotando-se o modelo distributivo ou o preconizado pelas práticas de justiça restaurativa).
Ad argumentandum tantum, entre o espólio da crise que atravessamos não poderemos deixar de contabilizar a violência civil perpetrada pelos homens contra as mulheres, com implementação de ações de silenciamento pelo terror psicológico e suposto desrespeito a padrões eleitos para garantia da continuidade no poder. Nunca a violência contra a mulher em qualquer de suas formas foi tão visível na história da humanidade, desde a sua institucionalização no século 12, e, certamente, não serão recursos meramente repressivos que a farão desaparecer, sem que haja a necessária capacitação de toda a sociedade no trato e acolhimento das vítimas, independentemente da origem da vitimização — civil, criminal ou decorrente de pandemias e causas naturais.
A reconstrução e recuperação social perpassam por uma série de intervenções para promover o progresso econômico, político e social, culminando com a transformação da própria identidade dos integrantes do tecido social com mais equidade e justiça social. Contamos com todos nesse esforço coletivo de reconstrução social e agradecemos o apoio ao Projeto de Lei n. 3890/2020.
[1] https://github.com/CSSEGISandData/Covid-19. Acesso em 25/3/2021.
[2] https://especiais.gazetadopovo.com.br/coronavirus/casos-no-mundo/. Acesso em 25/3/2021.
[3] www.memorialavarc.com.br. Acesso em 25/3/2021.