Opinião

Anulação da sentença arbitral: breves comentários sobre o caso LRM x VYTTRA

Autor

  • Guilherme Rizzo Amaral

    é doutor em Direito pela UFRGS e mestre em Direito pela PUCRS árbitro e sócio do escritório Souto Correa Advogados foi visiting Scholar na Queen Mary University of London-Centre for Commercial Law Studies.

29 de março de 2021, 17h11

Introdução
No dia 10 de março, a 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou parcialmente sentença arbitral por suposta falta de fundamentação e violação do contraditório e da ampla defesa [1]. O caso foi noticiado pela ConJur [2]. Interessa-nos, neste breve comentário, somente a primeira causa de anulação.

A falta de fundamentação estaria relacionada ao critério para a fixação do quantum indenizatório. A sentença arbitral valeu-se da equidade como critério de julgamento para fixar a indenização à parte requerente, como se depreende do trecho abaixo transcrito:

"Nesse sentido, considerando as circunstâncias trazidas pelas partes e avaliadas pelo Tribunal Arbitral diante de todo o contexto da negociação, o Tribunal Arbitral, valendo-se, neste tópico específico, da equidade como critério de julgamento na fixação de indenização cabível, condena (L) ao pagamento, em favor de (A), de 25% do valor histórico do preço ajustado de compra conforme números apontados por PwC em seu relatório".

A corte paulista, contudo, embora reconhecendo que as partes haviam expressamente autorizado o tribunal arbitral a julgar por equidade, entendeu que haveria parâmetro objetivo para aferir o prejuízo sofrido e que o tribunal arbitral deveria tê-lo seguido. Alguns trechos do acórdão merecem reprodução:

"Afora a aplicação da equidade, não foram externadas as razões pelas quais os árbitros entenderam justa a fixação da indenização em 25% do preço. Nesse cenário, não há como saber se o valor da indenização equivalerá ao valor do prejuízo efetivamente suportado, contrariando a regra do artigo 944 do Código Civil (CC), que diz que a indenização se mede pela extensão do dano. Além disso, existe o receio de que o valor tenha superado o prejuízo, aqui entendido como perda de faturamento, como se verá adiante, ou seja, a indenização poderia acarretar enriquecimento sem causa, resultado incompatível com o juízo de equidade. (…) A despeito da divergência das partes no que toca aos impactos da omissão da vendedora sobre o valor ajustado na compra e venda, é certo que há parâmetro objetivo para aferir o prejuízo sofrido, consistente na variação do faturamento proveniente da diminuição das receitas com a venda de hormônios esotéricos ao cliente. (…) Aliás, a indicação de que o valor do prejuízo consistiria na perda de faturamento pode ser extraída do depoimento prestado pelos representantes legais da compradora das quotas. (…) É certo que o Estado-juiz não pode rever o mérito da decisão arbitral, mas era de rigor que fossem expostas as razões pelos quais os árbitros entenderam ser justa a indenização fixada no importe de 25% do preço, considerando-se, ainda, os desdobramentos fáticos no equilíbrio do contrato, com base em parâmetros objetivos, tais como a diminuição do faturamento ou do Lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização (EBITDA), a fim de que a indenização contemplasse o comando do artigo 944 do CC".

O argumento central do acórdão pode ser assim resumido:

1) Não é suficiente a mera menção à equidade como razão de decidir;

2) Não se pode ter certeza sobre se a indenização equivale realmente ao prejuízo suportado;

3) Há receio de que a indenização tenha sido fixada em montante superior ao prejuízo;

4) Havia critério objetivo que poderia ter sido utilizado em substituição à equidade, como a diminuição do faturamento ou do EBITDA;

5) A prova oral indicaria que o valor do prejuízo deveria se basear na perda de faturamento.

Como demonstraremos a seguir, o acórdão desconsidera as particularidades de um julgamento por equidade e, a partir daí, ingressa indevidamente na análise do mérito da sentença arbitral.

Equidade como razão de decidir: julgamento por equidade vs. julgamento com equidade
É fundamental distinguir o julgamento por equidade do julgamento com equidade [3]. O julgamento por equidade, que somente é legítimo quando autorizado pelas partes (artigo 11, II, Lei 9.307/96
LArb), substitui as fontes de Direito [4]. Nele, fica autorizado o árbitro a decidir com base em seu senso de justiça. Já um julgamento com equidade se dá necessariamente dentro das fontes de Direito e é por elas determinado, especialmente quando a norma aplicável é de caráter aberto (exemplo: conceito de justa causa, artigo 57 do Código Civil) ou contém alguma referência à equidade (exemplos: artigos 413 e 944, parágrafo único, ambos do Código Civil) [5][6].

O caso em análise é de julgamento por equidade, devidamente autorizado pelas partes no item 9.2 da cláusula arbitral e declarado pelo tribunal arbitral em sua fundamentação, na forma do artigo 26, II, in fine, da LArb [7]. Isso significa que não estavam os árbitros necessariamente vinculados à utilização de critérios previstos em lei para a apuração do prejuízo da parte.

Aqui já se denota o primeiro equívoco do acórdão. A fundamentação da sentença arbitral, de regra, deve levar ao conhecimento das partes as razões de fato e de Direito que levaram o tribunal arbitral a decidir de uma determinada forma. Porém, quando se tem julgamento por equidade devidamente autorizado pelas partes, as razões de Direito não necessariamente abrangerão a análise de dispositivos legais que, em arbitragem de Direito, seriam naturalmente aplicáveis. Assim, a menção expressa à equidade, aliada às inúmeras referências feitas pelo tribunal arbitral às circunstâncias do caso concreto, já constituiria fundamentação suficiente para a decisão.

Vale lembrar que não se está aqui diante do julgamento com equidade (que poderia ser aplicado para reduzir o valor da indenização, como prevê o artigo 944, parágrafo único, do Código Civil), mas de julgamento por equidade. É dizer: julgamento segundo o senso de justiça do árbitro, em substituição às fontes de Direito. O tribunal arbitral foi bastante claro ao rejeitar tanto a metodologia de cálculo apresentada pelos requerentes quanto aquela apresentada pelos requeridos (itens 154 a 165 da Sentença Arbitral), pontuando todos os elementos fáticos que o levou à aplicação da equidade.

É interessante traçar paralelo com o famoso caso Abengoa [8], no qual o Superior Tribunal de Justiça negou a homologação de sentença estrangeira por entender que o Direito brasileiro eleito pelas partes naquele caso não autorizaria indenização em valor que superasse os efetivos prejuízos suportados pela vítima. Ali, tratava-se de arbitragem de Direito, na qual o julgamento por equidade não havia sido autorizado pelas partes. Portanto, tinha-se como vinculante a regra do artigo 944 do Código Civil, segundo a qual "a indenização mede-se pela extensão do dano". Diferentemente do caso Abengoa, no caso LRM vs. VYTTRA, o tribunal arbitral não estava necessariamente vinculado aos ditames do artigo 944 do Código Civil para fixar a indenização, na medida em que autorizado a julgar por equidade.

Alguém poderia argumentar, contudo, que o princípio da reparação integral ou da restitutio in integrum, contido no caput do artigo 944 do Código Civil, não poderia ser desconsiderado pelo tribunal arbitral, mesmo ao aplicar a equidade. Isso nos leva ao segundo e talvez mais grave equívoco do acórdão.

Suposta violação ao princípio da reparação integral, critérios alternativos e prova dos autos
Ao reprovar o julgamento por equidade feito pelo tribunal arbitral, a corte paulista aduziu não ser possível ter certeza sobre se a indenização fixada equivaleria realmente ao prejuízo suportado. Afirmou, ainda, haver receio de que a indenização teria sido fixada em montante superior ao prejuízo. Lê-se também no acórdão que haveria critério objetivo que poderia ter sido utilizado em substituição à equidade, como a diminuição do faturamento ou do EBITDA. Ou, ainda, que a prova oral indicaria que o valor do prejuízo deveria se basear na perda de faturamento.

Pode-se constatar facilmente que, aqui, não se está a falar de falta de fundamentação, mas, sim, de insatisfação ou contrariedade do órgão judicial quanto à solução de mérito dada pelo tribunal arbitral. É evidente, contudo, que incerteza ou receio quanto às conclusões de mérito da sentença arbitral não constituem motivo hábil para sua anulação. Além disso, tendo as partes expressamente autorizado o tribunal a julgar por equidade, descabe preferência judicial por outro critério de julgamento, por mais objetivo que seja.

Já a valoração, pelo Judiciário, da prova produzida na arbitragem desborda completamente do escopo da ação anulatória. Isso porque, de regra, "o controle judicial sobre a validade das sentenças arbitrais está relacionado a aspectos estritamente formais, não sendo lícito ao magistrado togado examinar o mérito do que foi decidido pelo árbitro"[9]. Embora haja hipóteses em que a anulação da sentença arbitral possa passar pela forma como foi decidido o mérito [10], elas nunca incluirão o reexame das provas pelo juiz.

Ressalte-se, ainda, que o tribunal arbitral, embora pudesse fazê-lo por estar julgado por equidade, em nenhum momento referiu estar arbitrando indenização distinta dos prejuízos sofridos pela parte. Não afastou, portanto, o princípio do restitutio in integrum. Pelo contrário, ao decidir o pedido de esclarecimentos, demonstrou estar aplicando a equidade justamente para se aproximar da melhor forma possível ao prejuízo efetivamente sofrido [11].

Logo, mesmo que a corte paulista tivesse certeza de erro da sentença arbitral na fixação de indenização, descabida seria a anulação. No caso concreto, a corte anulou a sentença por receio e falta de certeza quanto ao seu acerto, o que agrava o erro e se traduz em interferência praticamente sem precedente na jurisprudência brasileira.

Conclusão: necessidade de um standard mais claro para a ação anulatória?
Sempre que se tem notícia de anulação de sentença arbitral pelo poder judiciário, o sentimento prevalente na comunidade arbitral é o de retrocesso. Uma jurisdição é vista como arbitration friendly quando respeita a resolução de disputas pelos árbitros e não interfere em suas decisões, em especial no tocante ao mérito. Quem defende a possibilidade, ainda que em tese, de revisão da sentença arbitral pelo judiciário, corre o sério risco de ser rotulado como inimigo da arbitragem.

Contudo, e como bem observa Jan Paulsson, "(…) arbitragem sem controle inevitavelmente significa arbitragem abusada. Liberdade absoluta não é o objetivo final. Uma jurisdição favorável à arbitragem não é aquela na qual as sentenças arbitrais são inteiramente invioláveis; isso na verdade indica um grau de indiferença convidativo ao abuso. Existe algo como uma boa anulação de sentença arbitral" [12].

O Judiciário brasileiro sempre se mostrou bastante permeável à doutrina arbitral, o que historicamente contribuiu para a formação de uma jurisprudência altamente favorável à arbitragem no Brasil. Talvez seja o momento de a doutrina se reposicionar sobre o tema da ação anulatória da sentença arbitral, abandonando posições mais intransigentes e sistematizando de maneira mais clara e detalhada o instituto, evitando, assim, sua hipertrofia involuntária no âmbito judicial.

No caso LRM v. VYTTRA, uma distinção entre as hipóteses de erro na análise das provas ou na aplicação do Direito (que nunca poderão ensejar anulação da sentença arbitral) e a hipótese de objetiva desconsideração do Direito (capaz, em raras hipóteses, de ensejar nulidade da sentença arbitral) teria contribuído para uma solução diferente. Fizemos essa distinção em recentes trabalhos [13] e esperamos que este breve comentário possa estimular o debate a respeito do tema.

 


[1] APELAÇÃO CÍVEL Nº 1048961-82.2019.8.26.0000, 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, relator Des. Azuma Nishi.

[3] Na verdade, há cinco diferentes significados para o uso da palavra equidade na arbitragem. Não nos ocuparemos deles aqui. Veja-se, a propósito do tema, Della Valle M. Arbitragem e Equidade: uma abordagem internacional. São Paulo: Atlas; 2012; LEMES, Selma. Arbitragem na administração pública. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 196; Yu L. Amiable Composition-A Learning Curve. Journal of International Arbitration. 2000;17(1):79-98.

[4] A ideia de substituição estava claramente presente no artigo 114 do CPC/1939, que dispunha: "Artigo 114  Quando autorizado a decidir por equidade, o juiz aplicará a norma que estabeleceria si fosse legislador". Veja-se também PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973. t. II. p. 345-351.

[5] "Artigo 57  A exclusão do associado só é admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure Direito de defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto".

[6] "Artigo 413  A penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.
Artigo 944 
A indenização mede-se pela extensão do dano.
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização".

[7] "Artigo 26  São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: (…) II – os fundamentos da decisão, onde serão analisadas as questões de fato e de Direito, mencionando-se, expressamente, se os árbitros julgaram por eqüidade".

[8] SEC 9.412/EX, relator ministro FELIX FISCHER, relator p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/04/2017, DJe 30/05/2017.

[9] AgInt no AREsp 1670074/SP, relator ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/12/2020, DJe 15/12/2020.

[10] Como ocorre com o manifest disregard, nos Estados Unidos, assim como com o appeal on point of law, na Inglaterra (AMARAL, Guilherme Rizzo. Judicial Precedent and Arbitration: are Arbitrators Bound by Judicial Precedent? London: Wildy, Simmonds & Hill, 2018, 2ª edição).

[11] Item 66 da decisão em pedido de esclarecimentos.

[12] PAULSSON, Jan. The idea of arbitration. Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 264, tradução livre. No original, "Yet arbitration unchecked inevitably means arbitration abused. Ultimate freedom is not the goal. An arbitration-friendly venue is not one where awards are wholly inviolate; that rather indicates a degree of indifference that invites abuse. There is such a thing as good annulments of awards".

[13] AMARAL, Guilherme Rizzo. Judicial Precedent and Arbitration: are Arbitrators Bound by Judicial Precedent? London: Wildy, Simmonds & Hill, 2018, 2ª edição; AMARAL, Guilherme Rizzo. Vinculação dos árbitros aos precedentes judiciais (https://www.ConJur.com.br/2017-out-03/guilherme-amaral-vinculacao-arbitros-aos-precedentes-judiciais); AMARAL, Guilherme Rizzo. Precedentes e Arbitragem. In Daniel Levy et. al. Curso de Arbitragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, 2ª edição.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito pela UFRGS, mestre em Direito pela PUCRS. Autor de Comentários às Alterações do Novo CPC (Ed. Revista dos Tribunais, 2016, 2ª ed.) e sócio de Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados. Visiting Scholar na Queen Mary University of London – Centre for Commercial Law Studies.

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