Opinião

O santo não é de barro, mas devagar com o andor: a arbitragem sob ataque

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28 de março de 2021, 9h21

Foram muitos anos para a maior parte da doutrina se convencer da natureza jurisdicional da arbitragem; outros tantos para se elaborar e mais adiante se rever e aperfeiçoar legislação coerente com aquela premissa e à altura dos desafios dela decorrentes; outros ainda para se lograr a afirmação de sua constitucionalidade; e outros mais para transformar em realidade esse mecanismo de solução de controvérsias, fundado na autonomia da vontade e que é mais longevo do que a própria jurisdição estatal. Ainda assim, é cedo para julgar a arbitragem no Brasil. E, embora a crítica fundada e séria aí incluída a autocrítica seja sempre oportuna, convém que ela seja feita com equilíbrio e ponderação. Juízos prematuros seja para louvar, seja para reprovar podem, ainda que involuntariamente, prejudicar o bom desenvolvimento desse organismo em formação. O santo não é de barro, mas mesmo assim convém ir devagar com o andor.

Com efeito, não é apenas o relativamente curto tempo de vida que atesta referido processo de maturação — afinal, vinte e cinco anos, mesmo na velocidade do mundo contemporâneo, não podem ser considerados como historicamente decisivos quando se trata da implantação de um instituto que, até então, ou era desconhecido ou era renegado pela maioria.

Desde logo, ainda não é possível avaliar não ao menos com objetividade e isenção a resposta do mercado ao instituto. Há, de fato, notícias de insatisfação. Mas, não há ainda um tratamento estatístico confiável a esse respeito e, dado o devido desconto para as queixas dos que saíram derrotados, há pelo menos três circunstâncias que sugerem cautela com o suposto clima generalizado de insatisfação. Uma delas consiste no fato de que a arbitragem doméstica continua a crescer em ritmo relevante, quer em número de casos, quer na dimensão econômica dos litígios. Seriam todos agentes econômicos desavisados, incautos ou masoquistas? A resposta mais provável é que não; e que boa parte do mercado ainda enxerga na arbitragem uma solução adequada e confiável.

A segunda está no fato de que a arbitragem foi recentemente expandida para o campo dos entes públicos; o que, por certo, não é essencialmente uma obra da doutrina (embora ela tenha dado sua contribuição), mas do próprio mercado, notadamente de investidores estrangeiros. Seria possível que a Administração Pública estaria a ingressar numa barca furada, na contramão da história? É bem pouco provável.

A terceira, quiçá consequência das duas anteriores, está na constatação de que as Câmaras arbitrais também continuam a se expandir. Algumas buscam um mercado intermediário, não absorvido pelas maiores; outras buscam novos mercados e há notícias de setores até então infensos ao instituto e que agora vislumbram na arbitragem (com a eventual conjugação à mediação) uma solução factível. Para ilustrar, uma área promissora é a que envolve as relações na área médica. Isso tudo, claro, para não falar no fato de que cursos e eventos que tratam de arbitragem continuam a ser muito concorridos. Há uma plêiade de profissionais que querem ingressar no mercado da arbitragem. Mais uma vez: será crível que se trata de uma multidão de iludidos?

Portanto, parece razoavelmente claro que a resposta do mercado ainda não está dada e que, neste momento, ela ainda pode ser considerada positiva e promissora.

Não podem e não devem ser ignorados reclamos relativos a duração e custo, principalmente. Mas, novamente, ainda pairam incertezas sobre isso, que impedem um julgamento definitivo, menos ainda depreciativo.

Sobre o primeiro ponto, é bem verdade que o ritmo de alguns tribunais fica aquém do que seria de se esperar de um mecanismo tão bem estruturado. Isso é cada vez mais uma preocupação generalizada basta ver indagações feitas aos potenciais árbitros sobre seu volume de trabalho (incluindo número de arbitragens). Além disso, também é preciso considerar que a duração de um processo arbitral em que não há propriamente tempos mortos resultantes do acúmulo de processos num mesmo órgão é normalmente uma obra coletiva. Se tempo é consumido é também porque as partes querem realizar atividades postulatórias e de instrução que assim exigem. E, ao contrário do que muitas vezes ocorre no Judiciário, árbitros atemorizados ou não pela "paranoia" do devido processo legal tendem a ser mais complacentes com a extensão de tais atividades; especialmente as de natureza probatória. É irrefutável que a oralidade tem na arbitragem um peso muito maior do que na esfera jurisdicional estatal. A prova pericial é disso uma boa ilustração: em vez de produção do laudo oficial escrito e manifestação das partes, são inúmeros trabalhosos e eventualmente demorados os esforços na arbitragem para evitar que a solução do litígio, porque técnica, fique, em última análise, a cargo de um terceiro que não o julgador. Seria muito bom se o Judiciário pudesse empregar técnicas como as adotadas pelos árbitros, nesse particular, ainda que mais trabalhosas e demoradas.

Sobre a questão do custo, a ideia de que o da arbitragem seria muito superior ao do Judiciário se não tiver ainda se transformado em dogma desafia séria reflexão. Sem falar nos valores de taxa judiciária, que podem atingir cifras absoluta e relativamente relevantes, há a questão dos honorários advocatícios. O tema, como sabido, é objeto de debate nos Tribunais Superiores. Mas, se a literalidade da lei processual vier a prevalecer, não haverá dúvida de que, em muitos casos, os encargos financeiros da arbitragem serão consideravelmente menores. Mais uma vez, é cedo para julgar.

Há também a preocupação muito séria do mercado e dos operadores com a imparcialidade e independência dos árbitros. Mas, daí a se criticar a arbitragem a partir dessa ótica, como se o problema fosse privativamente seu, vai uma distância grande. Aqui, convém muita prudência no emprego das palavras, que melhor seriam ditas em debate público e franco.

Ninguém duvida da delicadeza da posição de profissionais que, inseridos no mercado da advocacia, assumem também a posição de árbitros. Mas a contrapartida disso é o reconhecimento generalizado de que, na arbitragem, o rigor com a imparcialidade é ou deveria ser ainda maior do aquele vigente para o juiz, que integra os quadros estatais e que não realiza outras atividades remuneradas (com a exceção de eventual magistério). Para além do zelo que a maioria expressiva dos profissionais têm na revelação de fatos relevantes nesse particular, há a severa fiscalização das partes e, no limite, o controle pelas próprias Câmaras. Então, eventuais violações e é preciso distinguir entre a alegação fundada e aquela temerária não podem e não devem ser tomadas como regra, nem podem ser invocadas com desprestígio para o instituto. Diferentes órgãos do Poder Judiciário aí incluídos tribunais superiores já tiveram amargas experiências nesse campo. Nem por isso se poderia atacar a instituição pelo eventual desvio de algum de seus membros. Não seria justo com o Judiciário, não seria justo com a arbitragem.

A preocupação com potenciais conflitos de interesse é das mais relevantes. Mas a pouco elegante referência ao conjunto dos profissionais que atuam nessa área muito mais amplo do que se possa pensar e ainda em expansão —, como se integrassem um clube ou algo semelhante, definitivamente não pode ser aceita. Ao contrário do que ocorre na jurisdição estatal, árbitros não são adjudicados às partes, mas são livremente escolhidos por elas (ao menos como regra, no tocante aos co-árbitros ou árbitro único). Será crível que os agentes econômicos, com suas múltiplas opções de escolha, seriam tolos e incapazes a ponto de se submeterem a uma espécie de cabresto? Não são. Se determinados profissionais são repetidamente indicados pelo mercado, a primeira e legítima interpretação é a de que eles são reconhecidos como bons árbitros. Simples assim.

Mais infundada e destrutiva é a ideia de que esse grupo seria capitaneado por processualistas. O mundo acadêmico e profissional da arbitragem é povoado por profissionais de diferentes formações e as especificidades de cada litígio tendem a ditar a composição dos tribunais. Basta examinar as listas de árbitros das diferentes Câmaras que as possuem. Novamente, imaginar que um grupo teria a prerrogativa de ditar os rumos do instituto soa como um delírio. E, de todo modo, se sentenças estão sendo anuladas por falta de adequada motivação, então parece que o problema seria ao ver de quem anula falta, e não excesso, de domínio do direito processual na arbitragem…

Da mesma forma, dizer-se que haveria conflito porque profissionais assumiriam múltiplas tarefas advogado, árbitro e parecerista é desconsiderar que isso só é possível se e quando não haja conflito relativo ao objeto e às pessoas envolvidas; e, pior, desconsiderar que só consegue essa proeza quem tem capacidade para tanto. Quem em sã consciência poderia, por exemplo, duvidar da capacidade de juristas como Ruy Rosado de Aguiar, de saudosa memória e que, por sua extraordinária experiência e capacidade, teve o dom de assumir múltiplas tarefas no campo da arbitragem? Alguém será capaz de dizer o contrário? Esse e outros respeitabilíssimos profissionais terão sido levianos ao aceitar todos os encargos que lhes foram solicitados? Não se crê.

Finalmente, não é possível dizer como será a relação entre arbitragem e jurisdição estatal; o que deve ser um dado relevante na avaliação do mercado e que, de volta ao início, mostra que as reações dos agentes econômicos ainda não puderam ser medidas adequadamente. Até aqui, o Judiciário brasileiro notadamente a partir de decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (inclusive, embora não apenas, no juízo de homologação de sentenças arbitrais estrangeiras) é, com justiça, considerado como "arbitration friendly". E isso não mudará não ao menos se for exclusivamente por isso – pelo fato de que, eventual e excepcionalmente, sentenças arbitrais sejam anuladas; ou que seja recusada a homologação de sentenças arbitrais estrangeiras.

Quanto à ação anulatória, ela não deve ser alvo de preocupação dos profissionais que atuam na arbitragem. A possibilidade de desconstituição integra as regras do jogo e, de certa forma, ela pode contribuir para o aperfeiçoamento da arbitragem. Aos árbitros compete trabalharem para que sejam produzidas sentenças sólidas e hígidas, como faz a esmagadora maioria. Se o fizerem, terão a consciência tranquila do dever cumprido. E se o Judiciário eventualmente extrapolar os limites do controle que lhe compete, o que efetivamente não se divisa no horizonte, então restará lamentar e seguir em frente, trabalhando para superar as deficiências e para conscientizar os profissionais sobre as peculiaridades e a realidade do instituto.

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