Embargos culturais

Woody Allen, a autobiografia e a disputa das narrativas jurídicas

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

28 de março de 2021, 8h01

"O coração quer o que o coração quer". Essa frase, que alguns atribuem a Saul Bellow, qualifica verdade incontestável; sabemos que é assim. Woody Allen, em sua autobiografia, a usa como mantra. A expressão pode explicar o que não seria explicável na vida do autor. É um modo mais direto (americano) de se traduzir a intuição de Blaise Pascal, para quem "o coração tem razões que a própria razão desconhece", ou a passagem lírica de William Shakespeare, para quem "o coração não vê com os olhos, mas com o coração". Dá no mesmo. Quem ama incondicionalmente sabe, é da condição humana.

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O alcance dessa intuição, porque o amor é metafísico, e não racional, parece-me um dos pontos centrais da autobiografia de Allen, recentemente traduzida para o português por Santiago Nazarian. Allen dedica o livro a Soon-Yi, sua mulher, filha adotiva de Mia Farrow, com quem Allen namorou. Esse triângulo marca o enredo de uma disputa judicial animada por tabloides e fofoqueiros, e que ainda hoje não se encontra pacificada. No pano de fundo da disputa, perturbadores fatos, cuja interpretação nos deixa por vezes desorientados. Não tenho informações para explicar a história. Limito-me a comentar o livro.

Em sua autobiografia parece que Allen pretende um acerto de contas com Mia Farrow, que nos mostra como uma pessoa vingativa. É um dos lados da disputa. Allen foi acusado de ter molestado Dylan, então com sete anos, uma das filhas de Mia Farrow. Casou-se com Soon-Yi, uma outra filha de Mia (ambas adotivas). Uma milionária batalha judicial marca os envolvidos. O assunto é explorado à saciedade nessa autobiografia, que presta contas e apresenta argumentos, ao meu ver desafiadores. Tem-se uma versão alternativa de um devido processo legal que talvez não teria se realizado plenamente. Não acompanhei o caso como deveria, abomino Allen se verdadeiras fossem as acusações, e também não tenho pretensões salomônicas. Apenas comento o livro, que li, e de que gostei muito.

Quis conhecer a versão do cineasta, diretor, ator e músico que tanto respeito. Fiz a tarefa de casa. De presente ganhei a oportunidade de conhecer o relato de uma vida cheia de desafios, dividida com pessoas esquisitas e cheias de talento, e contada por um autor irônico e desafiador. Allen (que foi batizado Allen Konisberg) revela-se como um homem simples, consciente de suas (inúmeras) limitações. Confessa que seu maior arrependimento foi receber milhões de dólares para fazer filmes e, ao mesmo tempo, não ter feito nenhum filme bom. Discordo. Eu assistiria todos os dias a "Meia-Noite em Paris".

Allen desfaz o estereótipo do intelectual nova-iorquino de ascendência judaica, e de humor judaico, ensimesmado em uma metrópole à qual associa eternamente sua história. Conta que pouco sabia de política além do fato de que Lincoln teria libertado os escravos. Em literatura, não sabia quem era o "tal do lobo da estepe"; desconhecia Hermann Hesse, um escritor de época. Ficara intimidado com o ritmo cruel da "Montanha Mágica", de Thomas Mann (cuja mãe, não nos esqueçamos, era brasileira). Achava Fitzgerald "mais ou menos". Suou para ler Faulkner e Kafka. Confessou que teve muitas dificuldades com Eliot e Joyce. Começou a ler para impressionar moças de saias curtas e de ideias longas (a expressão pode ser dele), pelas quais se apaixonava, e para as quais nada valiam os quadrinhos que conhecia.

Allen é um apaixonado por Nova Iorque. Foi criado no Brooklyn. Conta-nos como conheceu a grande metrópole. Ainda muito menino, desceu com o pai na estação de metrô da Times Square. Admite que ficou embasbacado quando subiu as escadas e viu a Broadway. A partir daquela movimentação que o fascinava predicou o amor ao cinema e ao jazz. Allen toca clarineta, conhece jazz como poucos. Vale a pena ouvi-lo tocando em Nova Orleans com a banda de Eddy Davis. Allen é introspectivo e, ao mesmo tempo, comunicativo ao limite. É contraditório.

Na leitura desse livro conhecemos um pouco das idiossincrasias do cineasta. É arqui-inimigo de objetos mecânicos, o que alcança carros, computadores e relógios. Não carrega guarda-chuvas. Não tem câmeras ou gravadores. Pede à esposa que lhe ajuste a TV. Nunca trocou um fusível. E nunca mandou um e-mail para ninguém. Nunca lavou um prato. E também nunca chegou perto de um processador de texto. Abomina bebidas e drogas. Não bebe, não fuma, é totalmente desinteressado por qualquer substância que altere a mente. Tem receio de mudar sua percepção de realidade. Por isso evita, inclusive, usar óculos escuros.

Explica que não tem vontade de ver o Taj Mahal, a Muralha da China ou o Grand Canyon. Não quer visitar as Pirâmides ou a Cidade Proibida. Discorda daqueles milionários que pretendem estar nos primeiros foguetes que fariam viagens turísticas pelo espaço sideral, "para vislumbrar a Terra de longe e vivenciar a falta de gravidade". Afirma que detesta a falta de gravidade, de quem diz ser um grande fã, esperando que a gravidade dure. Conta que filma de um modo descuidado e irresponsável. É muito irônico.

O ponto perturbador do livro é sua versão do caso rumoroso que viveu. Namorou Mia Farrow por alguns anos. A atriz tinha sete filhos, dos quais quatro eram adotivos. Entre as crianças, Soon-Yi, coreana, que fora uma criança de rua. Segundo Allen, a menina era tratada com muito rigor, era penalizada porque não dominava o inglês. Nesse tempo Mia Farrow vivia com André Previn, com quem era casada. André foi compositor e regente de orquestra sinfônica, vencedor de quatro Oscars. Era o pai adotivo de Soon-Yi. Assim, ao contrário do que se lia, Allen não era o pai adotivo da mulher com quem se casou, e com quem vive desde 1997. Conta-nos que quando começaram a namorar ela contava 22 anos e era uma estudante universitária. É a narrativa dele.

Instigante para quem nos interessamos por temas jurídicos é a descrição de Allen relativa ao processo judicial que enfrentou, acusado de ter abusado até mesmo de uma outra filha de Mia Farrow. Allen sustenta que não há provas que justifiquem a acusação e muito menos eventual condenação. Dá conta de diversos relatórios psicológicos que concluíam por sua inocência. Há muito pormenor que chama a atenção, especialmente a suposta parcialidade do juiz que conduziu o caso. Allen enfrentou o assunto com firmeza. Lembra ao leitor que é nas horas de crise que nos tornamos quem realmente somos.

Abandonado por seus pares (poucos, como Alec Baldwin, saíram em sua defesa), Allen foi "cancelado", isto é, "boicotado", como diríamos na era analógica. Perdeu contratos, amigos, prestígio. Enfrentou adversidades. Em sua autobiografia, Allen mostra-nos que está de bem com o mundo, e que entende que a vida é como ela é, justamente como anunciava um ao mesmo tempo bendito e maldito brasileiro (Nelson Rodrigues). Allen sonhava em ser mágico. Desistiu quando descobriu que podia manipular cartas e moedas, mas que não podia manipular o universo.

Um cineasta é um manipulador de emoções, no bom sentido. Woody Allen, nesse quesito, creio, é incomparável. Confiram, entre outros, no filme "Vicky Cristina Barcelona", a temperamental pintora Maria Elena, protagonizada por Penélope Cruz, louca de pedra e, ao mesmo tempo, encantadora, charmosa, sedutora. Uma figura ambígua, complicada e, justamente por isso, eternamente aliciante.

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