Opinião

Duodécimos e destinação das sobras financeiras a partir da EC nº 109/2021

Autor

  • Mário Augusto Silva Araújo

    é advogado mestre em Constituição e Garantia de Direitos e Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

28 de março de 2021, 6h33

A estrutura do gasto público envolve a obediência à periodicidade de um ano para a execução da despesa conforme autorizado pela Lei Orçamentária Anual, o que também é conhecido pela doutrina do Direito Financeiro como princípio da anualidade orçamentária.

Para José Maurício Conti: "A periodicidade orçamentária é necessária, tendo em vista que os orçamentos públicos exercem as funções de controle, gestão e planejamento, para o que se faz imprescindível estabelecer um período determinado, no qual sejam previstas e autorizadas as receitas e despesas, a fim de que possam ser controladas, permitindo a participação do Poder Legislativo nesse processo, bem como o acompanhamento e a revisão pelo poder público, tendo em mente o dinamismo das relações sociais e econômicas, e considera-se o período anual ideal para essa renovação da lei orçamentária" [1].

Ocorre que há um assunto polêmico em relação à execução orçamentária: a possibilidade de os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Tribunal de Contas fazerem reserva de caixa ao longo do exercício financeiro, assunto que é conhecido no âmbito do Direito Financeiro por sobras financeiras.

Isso ocorre através de um planejamento equivocado sobre as finanças públicas que pode ter ênfase ou no superdimensionamento da estimativa do gasto ou na própria ineficiência da execução orçamentária, situação em que não se gasta aquilo que realmente foi autorizado.

O excesso de receitas pode ser adequado dentro de um exercício financeiro através da abertura de créditos adicionais, classificados em suplementares, especiais e extraordinários, nos termos do artigo 41 da Lei 4.320/1964.

Mas, para isso, é preciso que o planejamento das contas públicas seja ajustado no sentido de proporcionar a possibilidade orçamentária da destinação dos recursos, sob pena de se realizarem despesas sem prévia autorização orçamentária, o que é tipificado como crime contra as finanças públicas, nos termos do artigo 359-D do Código Penal.

Nesse sentido, o artigo 43 da Lei 4.320/1964 possibilita o remanejamento orçamentário pela abertura de créditos suplementares e especiais, cujo lastro pode ser: 1) o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial do exercício anterior; 2) a verba decorrente do excesso de arrecadação; 3) os resultantes de anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de créditos adicionais, autorizadas em lei; e 4) o produto das operações de crédito autorizadas, em forma que juridicamente possibilite ao poder executivo realizá-las.

E se mesmo assim, ao final do ano, o dinheiro disponível para a despesa não for efetivamente gasto, o que fazer?

O ideal seria devolver ao Poder Executivo, responsável pela consolidação das contas públicas, conforme estabelecido pelo artigo 165 da Constituição Federal, e em virtude da solenidade que envolve a escrituração das contas públicas a regulamentação da devolução das sobras deve ter previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Isso porque a diretriz balizada pelo artigo 4º da Lei de Reponsabilidade Fiscal atribui à LDO estabelecer o equilíbrio entre as receitas e despesas, bem como as demais condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas.

No âmbito do Poder Executivo da União há uma prática de governança no sentido de que, terminado o exercício financeiro, existe a obrigatoriedade de devolução dos recursos não utilizados ao caixa central nos parâmetros estabelecidos pelo Decreto nº 93.872/1986.

Porém, em virtude da autonomia dos entes federados, existe uma discricionariedade no que diz respeito à operacionalização das sobras financeiras dos entes subnacionais e caso silentes as respectivas LDOs, em decorrência da vinculação da administração pública ao que é disposto em lei, resta o entendimento de que não haveria obrigatoriedade de devolução das sobras financeiras ao respectivo Poder Executivo.

Não haveria.

Isso porque em 2017 o Supremo Tribunal Federal, em sede de mandado de segurança impetrado pelo Poder Executivo do Rio Grande do Norte, que pretendia a devolução de R$ 571 milhões que havia no caixa do Poder Judiciário daquele ente, ponderou, nos termos da relatoria do ministro Marco Aurélio [2], que "o excedente orçamentário, livre e desvinculado de destinação legal específica, uma vez não restituído aos cofres do Tesouro, deveria ter sido deduzido da importância a ser repassada, ao Poder Judiciário, na forma de duodécimos".

Aquele precedente do Supremo a partir de agora possui vinculação constitucional porque a Emenda Constitucional nº 109/2021, que acrescentou o §2º ao artigo 168 da Constituição Federal, norma constitucional de eficácia plena, determina que "o saldo financeiro decorrente dos recursos entregues na forma do caput deste artigo deve ser restituído ao caixa único do Tesouro do ente federativo, ou terá seu valor deduzido das primeiras parcelas duodecimais do exercício seguinte".

Assim, resta incontroverso que a partir deste exercício financeiro o excesso de caixa dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos Tribunais de Contas voltará à conta única do Tesouro, o que vai colaborar para uma dimensão orçamentária do gasto realmente condizente com a realidade.

A pacificação sobre o tema também resulta em uma oportunidade de melhor execução orçamentária e adequação da despesa à receita, reverberando o entendimento de Marcus Abraham, para quem "a despesa pública se relaciona diretamente com a política fiscal, mecanismo pelo qual é exercida a administração financeira dos gastos e do emprego dos recursos públicos, de maneira planejada e direcionada para a realização de um determinado fim específico" [3].

A partir de agora, com a indução de uma prática de boa governança orçamentária, a função anômala dos Poderes Legislativo e Executivo, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Tribunal de Contas exigirá do ordenador de despesas um olhar atento em relação ao Direito Financeiro porque a sua despesa deve ser parametrizada realmente durante um exercício financeiro.

Dessa forma, já que os recursos serão gastos com a real necessidade dos demais poderes, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Tribunal de Contas, o Poder Executivo, responsável pela articulação de políticas públicas sensíveis, como educação e saúde, terá mais fôlego fiscal pela demanda financeira do seu gasto.

 

Referêncas bibliográficas
ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. Editora Forense. Rio de Janeiro/ RJ: 2018

BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Medida Cautelar em Mandado de Segurança 34.567/DF.

CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. Editora Blucher. São Paulo/SP: 2020.

 


[1] CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. Editora Blucher. São Paulo/SP: 2020, p.156.

[2] MS 34.567/DF.

[3] ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. Editora Forense. Rio de Janeiro/ RJ: 2018, p. 208.

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    é advogado, mestre em Constituição e Garantia de Direitos, especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de Direito Administrativo e Financeiro.

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