Observatório constitucional

Nós — a Constituição da República

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

27 de março de 2021, 8h01

Sempre que o preço do tomate sobe, que um eleito decepciona, que o dólar aumenta, que a passagem de ônibus encarece, que um escândalo político explode, que um acordo de coxia é revelado, que uma mentira engravatada é descoberta ou que a seleção brasileira perde a Copa, alguém, no fundo da sala, desesperado ou não, levanta a mão e, com boa ou má intenção, anuncia o caminho redentor da grande salvação nacional: "Vamos fazer uma nova Constituição!".

Formalmente, já tivemos sete. Materialmente, mais. Uma outra seria, pelo menos, a oitava. Quem tiver compromisso previamente agendado e não puder participar dessa que vem, não precisa se preocupar. Participará da próxima. Não demorará nada.

Eu, todavia, sou daqueles que fecha com a Constituição de 1988. Para mim, ela não sai de moda, não caduca, não envelhece. É "madeira de lei", aquela que, na letra do frevo pernambucano de Capiba, "o cupim não rói". Documento jurídico imperfeito, traz o mérito de ter nascido para a elevação da condição humana. Só pela nobreza da missão esse documento já merece ser preservado.

A primeira palavra da Constituição é "nós". Abre o preâmbulo. É onde a jornada se inicia. Não há "eles" nesse portão de entrada. O "nós" reafirma, com uma única singela palavra, todos os fundamentos da República: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

A Constituição de 1988 conserva ou revoluciona? Depende. Conserva o que tem de ser conservado. Rompe com o que precisa ser rompido. Acerta nos dois.

Mantém "as relações com Estados estrangeiros" e "a integridade nacional". Preserva "a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País". Garante o "desenvolvimento nacional". Impede "a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural". De fato, é preciso conservar toda a base da nossa experiência histórica exitosa, a essência do que deu certo.

Mas ela também revoluciona. Anuncia, ainda em seu preâmbulo, a instituição de um "Estado democrático". Por 21 anos uma ditadura militar desmantelou, dia a dia, aquela que era, naquele momento de troca democrática de poder entre dois adversários eleitos — Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros —, a mais exuberante democracia da América Latina. A instituição do Estado democrático foi a própria revolução acontecendo.

Mas, nesse Estado democrático, o que realmente interessa? A Constituição responde: "O exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça".

E que tipo de sociedade precisamos ser? "Fraterna, pluralista e sem preconceitos". Acontece que essa sociedade não nasce pronta. Tanto que, dentre os objetivos fundamentais, o primeiro deles é o de "construir" uma "sociedade livre, justa e solidária".

Ao dizer "construir", a Constituição mostra que essa moradia não nos foi dada pronta e acabada. É preciso edificá-la. Os pedreiros e pedreiras dessa morada somos nós.

Temos de trabalhar muito e trabalhar juntos. "Se a gente fizer a casa amanhã, se ela ficar pronta, de noite mesmo a gente dança nela, que é para ir 'encarcando' o chão da sala", cantou Luiz Gonzaga, não como um jurista discorrendo sobre a Constituição de 1988, mas como um artista que começou de baixo e conhecia a experiência de construir, na comunidade, um lar que abrigasse os seus nos momentos de dificuldades, especialmente num país onde a vida costuma ser muito dura com a maioria da população.

Às vezes, a linguagem constitucional demonstra a sua indignação. Vejam esse objetivo fundamental: "Erradicar a pobreza e a marginalização". A determinação é "erradicar". Compete à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios — a toda a federação, portanto — "combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização". Vejam: "combater". Determina, ainda, o "repúdio" ao racismo. "Repúdio". Com a indignação, vem a contundência. Contra a nossa degradação não há meias palavras. 

Também há serenidade. Dever de zelo, por exemplo. Compete à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios "zelar pela guarda da Constituição".

Essa nossa fundação jurídica de 1988 não trouxe nomes como George Washington, John Adams, Thomas Jefferson, James Madison e Alexander Hamilton, é verdade. Também não há, nos anais da Assembleia Nacional Constituinte, as assinaturas de Marquês de Condorcet, de Mirabeau, de Lefebvre ou de Emmanuel Joseph Sieyès.

A grande aventura brasileira, todavia, trouxe uma geração que tinha outros nomes, os nossos nomes. E eram nomes tão bonitos: Benedita, José, Anna Maria, Antônio de Jesus, Chagas, Chico, Cristina, Domingos, Florestan, Francisco, Gonzaga, Gumercindo, Iberê, Inocêncio, Irajá, Irma, Jesus, João, José, Lídice, Lúcia, Luiz, Manoel, Maria de Lourdes, Messias, Moysés, Pimenta, Rachid, Raimundo, Raquel, Rita, Rosa, Rose, Santinho, Simão, Wilma, Ziza… Foram esses os mestres e mestras de obra que, ao lado de outros, colocaram a casa de pé. E a casa está aí, para quem quiser ver e desfrutar.

Benedita, Chico, Maria de Lourdes, Raimundo, Rosa… Nada poderia ser tão nosso, tão verdadeiramente brasileiro. Dessa brasilidade nasceu a Constituição de 1988.

Mas o que constitui esse "nós"? A mistura de muitas histórias. Por isso, a Constituição reconhece como patrimônio cultural brasileiro os bens portadores de referência "à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira".

Somos muitos. Somos vários. Somos todos e um só. Somos "as comunidades dos quilombos", os "reconhecidamente pobres", as "pessoas portadoras de deficiência", as presidiárias com seus "filhos durante o período de amamentação". Somos os "índios" e "sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições", os "trabalhadores urbanos e rurais", as "gestantes", a mulher protegida no mercado de trabalho "mediante incentivos específicos". Somos os "desamparados", a "criança ou adolescente órfão ou abandonado" e os "idosos" que merecem “programas de amparo”. Somos os "desfavorecidos", os "pais na velhice, carência ou enfermidade", "a viúva ou companheira ou a dependente", as "pessoas vitimadas por crime doloso" e os "analfabetos". Somos os que anseiam por justiça. Nós somos o Brasil.

Quem mais somos nós? A Constituição volta a responder: os "eclesiásticos", o "médico", os "professores, técnicos e cientistas estrangeiros" e os "artistas brasileiros". Somos os "proprietários", os "trabalhadores domésticos", o "empregado sindicalizado", o "empregador rural", os "profissionais da educação, o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais". Somos o "pescador artesanal", os "garimpeiros", os "micro e pequenos empresários" e os "inventores independentes". Está tudo lá. Somos a realização do engenho humano, a mensagem generosa que precisa ser levada adiante.

Nós somos ainda mais. Somos a "convivência familiar e comunitária", as "manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras", a "valorização da diversidade étnica e regional", o "pleno desenvolvimento da pessoa". Somos o "pluralismo de ideias", o "bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores" e "a dignidade da pessoa humana". Somos o "bem de todos, sem preconceitos", a "defesa da paz", a "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" e "a proteção à maternidade e à infância". Somos o "voto direto e secreto, com valor igual para todos", "a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana" e a "integração social dos setores desfavorecidos" Somos os que aderiram à aurora da civilização humanista, os que se alimentam dos seus frutos tão fecundos.

Também somos o amanhã. Somos as "florestas, a fauna e a flora" e "a conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição". Somos a "sadia qualidade de vida", a "Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira" e a "proteção dos ecossistemas naturais". Somos "as presentes e futuras gerações".

Mas, se tudo isso somos, o que nós não somos? O que, segundo a Constituição de 1988, não podemos ser? Em que jamais governante algum conseguirá nos transformar? Ela, a Constituição, responde. Não somos a "tortura, o tratamento desumano ou degradante", "a discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais", a "ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". Não somos os "preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" e o "abuso do poder econômico, corrupção ou fraude". Não podemos ser as penas "de morte", de "caráter perpétuo", de "trabalhos forçados", de "banimento" e "cruéis", as "práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade". Não podemos ser a "degradação do meio ambiente", o "risco para a vida" e "toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Não podemos nos deixar transformar no "risco de doença e de outros agravos", nas "substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente", na "catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população". Não somos a "morte".

Tentar nos transformar naquilo que a Constituição diz que jamais seremos traz consequências e elas são graves. Segundo o artigo 78, o presidente da República, ao tomar posse, prestará o compromisso de "manter, defender e cumprir a Constituição".

Se, quem quer que seja o eleito, não prometer o que a Constituição determina que prometa, essa pessoa sequer entra no palácio que lhe emprestamos para que trabalhe em favor do interesse público. Caso, depois da posse, descumpra a promessa, fica ainda pior: ele será despejado e em suas caixas de mudança estará escrita, com a caneta da História, a identificação "criminoso", pois são "crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição".

Preservada a Constituição de 1988, saibam que fora dos palácios sempre estarão os destinatários da sua primeira palavra, aquela que dá início à jornada, a singela expressão por meio da qual o percurso constitucional contemporâneo se inaugura: "nós".

Ao se enxergar a linha de chegada, todos hão de se lembrar, ainda que numa recordação saudosa, de onde tudo se iniciou. O fim é o começo. Nas ruas e nas calçadas, nas barracas e nos barracos, nas praias e nos lagos, nas florestas verdejantes e nas selvas de pedra, na cidade e no campo… Esse grupo estará lá, como sempre esteve e seguirá estando: "nós".

Nós, a morada de onde emana todo o poder e para quem tudo foi feito. Uma única palavra. A primeira da Constituição de 1988. E, nela, há toda a humanidade do universo.

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