Opinião

Reflexões de 30 anos como assistente de acusação na morte de pessoas vulneráveis

Autor

  • Michael Mary Nolan

    é advogada assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) coordenadora do programa de Assessoramento Defesa e Garantia de Direitos do Instituto das Irmãs da Santa Cruz (ADDIISC) e presidenta do Instituto Terra Trabalho e Cidadania - ITTC. Em 2004 recebeu doutorado honorário da Saint Mary’s College (Notre Dame - Indiana) por seu trabalho em direitos humanos.

27 de março de 2021, 9h11

Há cerca de 30 anos dedico-me, junto a outros parceiros e parceiras de luta, à representação, como assistente de acusação, de famílias de vítimas fatais no Brasil, em especial parentes de pessoas indígenas, quilombolas, de lideranças de sindicatos rurais e de pessoas em situação de rua que foram assassinadas em contextos de luta pela terra, de defesa de suas comunidades, famílias e de suas próprias vidas.

Preliminarmente, importa dizer que desde o início dos meus trabalhos nos inquéritos e processos judiciais, o intuito máximo sempre foi alcançar alguma forma de justiça para populações mais vulneráveis e ao mesmo tempo permear o sistema de Justiça para garantir os direitos devidos na fase de investigação, processamento judicial e, principalmente, no tratamento das famílias das pessoas vítimas dessas violências durante esses procedimentos.

Por isso, inicio este texto com menção à afirmação de Marcelo Semer, que em seu livro "Sentenciado Tráfico: o papel dos Juízes no grande encarceramento" aponta que quanto menor for a identificação de uma pessoa observadora com uma pessoa que tenha sido vítima de uma violência, mais provável será a passividade da pessoa observadora frente àquele acontecimento.

Esta passividade pode ser ilustrada numa situação hipotética de que diante do assassinato de uma pessoa indígena, por exemplo, seja em razão de conflito com fazendeiros e populações locais, seja em outros contextos, essa morte não é tratada da mesma forma pelo sistema de justiça criminal como seria de uma pessoa não indígena, especialmente porque as instâncias da Justiça Criminal são ocupadas em sua maioria pela branquitude, é dizer, por pessoas que não têm identificação alguma com a história do povo indígena ou mesmo, que não têm proximidade com a própria situação de vulnerabilidade e violência intermitente.

Ao projetar a afirmação de Marcelo Semer para minha trajetória como assistente de acusação, observei que essa passividade é uma realidade que se manifesta em diferentes instâncias da Justiça Criminal e nas atuações de operadores e operadoras do Direito, desde o próprio sistema de registro dos fatos nos Tribunais de Justiça estaduais e nos Tribunais Regionais Federais, até nos projetos de lei discutidos nas Assembleias Legislativas e Congresso Nacional.

No que se refere ao sistema de registro nos tribunais, a Resolução 121 de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no parágrafo 2º, do artigo 4º, aponta que o nome das vítimas não faz parte dos dados básico do processo, o que, na prática, ocasiona que nenhum tribunal brasileiro registra o nome das vítimas em seus sistemas de acompanhamento de processos e quando há o registro, este aparece apenas através das iniciais do nome nesse sentido, seria relevante que ainda que sob algum grau de sigilo os tribunais disponibilizassem o nome integral das vítimas para as partes envolvidas e/ou advogados(as) com procuração.

Mesmo com a importante preocupação acerca da proteção e não exposição das vítimas, abarcada inclusive pela Resolução 251 de 2019 do CNJ [1], sobretudo quando se trata de crimes contra a dignidade sexual e/ou da segurança da vítima sobrevivente e familiares, vale destacar, que estou aqui defendendo que tem de haver alguma forma de registro que possibilite aos familiares de vítimas fatais e às vítimas sobreviventes acesso à informação.

A ausência de informações e de registro torna impossível, por exemplo, identificar quantos ou se há processos penais em andamento sobre os assassinatos de mais de 45 pessoas pertencentes ao povo Guajajara no estado do Maranhão nos últimos 20 anos [2], ou das cerca de 40 pessoas assassinadas pertencentes a populações indígenas do Mato Grosso do Sul somente em 2019 [3], principalmente porque em sua maioria tudo que se tem de informação são os nomes das vítimas.

Este texto também foi escrito com o propósito de compartilhar algumas reflexões que fiz sobre essas experiências e o instituto da "assistência de acusação" no Processo Penal brasileiro e provocações no que tange em especial às previsões legislativas de que a atuação como assistente está restrita após o momento do oferecimento da denúncia e dependente da aceitação pelo Ministério Público e da previsão exclusiva de que apenas pessoas físicas podem atuar como tal.

Uma vez que a maioria dessas mortes acabam sendo dadas por autoria desconhecida ou sequer são investigadas, é impossível tanto no campo federal ou estadual encontrar os processos judiciais relacionados a elas são mortes que as instâncias do Estado muitas vezes ignoram e ignorá-las é também desconectá-las do contexto que elas estão inseridas, como por exemplo luta pela terra, defesa da floresta ou diante da falta de condições mínimas de moradia e oportunidade nas cidades.

No Direito brasileiro, caso se identifique que há um procedimento em andamento investigando a morte de uma pessoa, a pessoa representante da vítima só poderá ser habilitada para efetivamente atuar como assistente de acusação quando iniciado o processo judicial com o oferecimento da denúncia, frise-se ainda que aceitação desta atuação também está condicionada a um parecer do Ministério Público. Ademais, após o oferecimento da denúncia, o assistente de acusação ingressa no processo na fase em que ele estiver.

Nesse ponto, parece-me importante refletir que é justamente na fase anterior, isto é, na fase de acompanhamento do inquérito policial, que grande parte ou até mesmo a totalidade das provas processuais são obtidas.

Assim, sem a participação da pessoa representante da vítima nas investigações e busca de provas, especialmente quando há passividade, nos termos aqui ventilados, das autoridades locais frente às vítimas, não ocorre qualquer resolução do caso. Presenciei situações que delegados e representantes do Ministério Público encarregados das investigações decidiram simplesmente ignorar as contribuições e informações prestadas pelas pessoas representantes das vítimas.

Houve momentos, durante estes 30 anos de atuação, que nossa única saída foi recorrer, por exemplo, para a 6ª Câmara do Ministério Público Federal [4] em caso de assassinato de pessoas indígenas e quilombolas, para que pessoas chave para o caso, segundo nossas avaliações, pudessem ser ouvidas. Mesmo assim, os depoimentos nem sempre foram juntados ou considerados na investigação e nos autos judiciais.

Mesmo com a nova previsão da figura do "juiz de garantias" no Código de Processo Penal Brasileiro, a atuação da assistência de acusação permanece sendo reconhecida somente após o recebimento da denúncia.

Outro problema que identifiquei e enfrentei durante estes anos relaciona-se às pessoas que a lei brasileira permite para serem habilitadas como assistentes de acusação. A lista restringe a pessoas físicas, de forma que isso se tornou um problema, por exemplo, na busca da responsabilização dos culpados diante do "massacre da Sé", do povo da rua, ocorrido em São Paulo no ano de 2004.

Naquela época, nós não conseguimos encontrar os familiares das pessoas mortas. Ainda que, no caso do "massacre da Sé", o delegado responsável pelo caso tenha aceitado nossa atuação como representantes do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe) no curso do inquérito policial, a partir do oferecimento da denúncia nós não fomos permitidos como representantes das vítimas no processo penal. Já tive conhecimento de processos que foram anulados porque houve a participação de entidades de direitos humanos nos inquéritos policiais.

Avalio que nestes 30 anos de atuação, para podermos pensar em uma verdadeira responsabilização das mortes perpetradas contra populações mais vulneráveis em nossa sociedade, nós necessariamente precisamos passar por reformas legislativas e das próprias práticas do sistema de Justiça Criminal [5].

 


[1] Conforme disposto no "Art. 10 – Cabe ao usuário do sistema prover a adequada classificação de cada documento registrado, resguardando as informações judiciais de caráter sigiloso ou sensíveis, sobretudo quando envolvam crianças e adolescentes, ou vítimas de crimes praticados contra a dignidade sexual, cuja identificação deve restringir-se à indicação das iniciais do nome e sobrenome nas eventuais transcrições das decisões judiciais proferidas. Contudo, a aposição apenas das iniciais, virou a regra quando há alguma identificação da vítima no sistema, seja a informação pública ou não" (grifo da autora).

[5] Agradeço as sugestões e revisão de Caroline Dias Hilgert e Viviane Balbuglio neste texto.

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