Opinião

A MP 1.036/2021 e o novo normal: a mitigação dos direitos do consumidor

Autor

  • Gabriel Hamester

    é advogado mestrando em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e membro do Grupo de Pesquisa em Proteção de Dados no Estado Democrático de Direito.

27 de março de 2021, 6h03

O Poder Executivo resolveu nos lembrar em que nível estamos quando falamos em Direito do consumidor nos tempos atuais, excetuando-se o fato que no dia 15/3/2020 foi comemorado o Dia Mundial dos Consumidores e que no último ano nosso microssistema de proteção fez 30 anos [1], não há espaço para sorrisos e abraços — virtuais.

Só a título de exemplo, temos o PL 3.515/15 [2] e o PL 3.314/19 [3] tramitando pela casa legislativa há anos e, ao que tudo indica, quando se trata de dar efetividade a tutela de problemas graves, que atingem milhões de consumidores, a celeridade não é a mesma daquela empenhada pelo Executivo em suas medidas provisórias no novo normal pandêmico [4], onde vale tudo para mitigar as perdas do mercado, sorte essa não estendida ao aniversariante da semana.

1) As (re)modificações impostas
No último dia 17, entrou em vigor a MP 1.036/2021, modificando substancialmente a Lei nº 14.046/2020, que por sua vez era originária da MP nº 948 de 8 de abril de 2020, que dispõe sobre medidas emergenciais para atenuar os efeitos da crise decorrente da pandemia da Covid-19 nos setores de turismo e cultura.

O parágrafo acima parece confuso, mas é, na verdade, o reflexo de como estão sendo tratados os direitos do consumidor brasileiro: uma colcha de retalhos legislativos no afã de "equilibrar" o mercado em tempos de pandemia, desta forma, a Lei 14.046/2020 vigente, passa a vigorar com textos próprios e os modificados por esta MP in comento [5].

O artigo 2º da MP 1.036/2021 estabeleceu até 31 de dezembro de 2021 o recorte temporal de seus efeitos jurídicos, em relação a eventos, serviços, reservas, shows e espetáculos que tiveram que ser adiados ou cancelados em decorrência da pandemia, mantendo-se o texto da obrigatoriedade de reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que seja assegurados meios alternativos ao consumidor, quais sejam:

"I – a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou
II – a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.
§1º. As operações de que trata o caput deste artigo ocorrerão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, em qualquer data a partir de 1º de janeiro de 2020, e estender-se-ão pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos serviços, ou 30 (trinta) dias antes da realização do evento, o que ocorrer antes.
§ 2º Se o consumidor não fizer a solicitação a que se refere o § 1º deste artigo no prazo assinalado de 120 (cento e vinte) dias, por motivo de falecimento, de internação ou de força maior, o prazo será restituído em proveito da parte, do herdeiro ou do sucessor, a contar da data de ocorrência do fato impeditivo da solicitação".

A MP 1.036/2021 nos §4º, § 5º, III, §6º modificou também os prazos de utilização do crédito ofertado para 31 de dezembro de 2022, bem como para a mesma data ficou estabelecido o limite nas situações em que é possível remarcar os serviços e reservas dos eventos adiados e ainda, nos casos em que não for possível a remarcação ou disponibilização dos créditos.

Ou seja, o consumidor além de se ver impossibilitado poder gozar dos serviços em decorrência de um fato imprevisível, precisará esperar até o final do ano que vem para ter os valores eventualmente pagos restituídos somente se a empresa não conseguir realizar a obrigação por outros meios elencados acima.

Seguindo nas modificações trazidas pelo §9º da referida MP, foram considerados afetados os serviços, reservas ou o evento tiveram a sua remarcação realizada, mas em decorrência da Covid-19 persistir a impossibilidade manifesta continua, e ainda, aos novos casos que não puderem ser realizados até a dará de 22 de dezembro de 2022.

Já o artigo 4º. tratou de modificar as situações envolvendo artistas, palestrantes e outros profissionais detentores de conteúdo contratados até 31 de dezembro de 2021 não serão obrigados a reembolsar imediatamente os valores referentes aos serviços ou cachê, desde que seja feita a remarcação do referido evento para que ocorra no máximo até 31 de dezembro de 2022. Nos casos em que não puderem ser realizadas os serviços referidos no artigo 4º até a data-limite, os valores deverão ser restituídos pelo índice IPCA-E, até 31 de dezembro 2022.

Ao fim, estabeleceu mudanças no §2º, em que multas oriundas do cancelamento de contratos firmados até 31 de dezembro, na hipótese do motivo ser decorrente das medidas de isolamento social serão anuladas, inovando o texto antigo que não trazia expressamente um marco temporal para os contratos afetados. Para os demais artigos, manteve-se o texto da Lei nº 14.046/2020 [6]

2) Conclusão
O que será que John F. Kennedy falaria em seu discurso se o fizesse hoje, no cenário brasileiro? Certamente teria de mudar alguns trechos, principalmente a parte em que diz: “The Federal Government by nature the highest spokesman for all the people has a special obligation to be alert to the consumer’s needs and to advance the consumer’s interests" [7].

O consumidor no novo normalmente está tendo que se acostumar com a constante mitigação de seus direitos [8], novamente recorrendo ao discurso de Kennedy, dessa vez traduzido: "Consumidores, por definição, incluem todos nós, são o maior grupo econômico, afetando quase todas as decisões econômicas públicas e privadas" e mesmo sendo reconhecida a sua importância, o poder público brasileiro através de leis e medidas provisórias vem diuturnamente demonstrando que não está alinhado com o que se espera dele no artigo 4, caput, do CDC.

A MP 1.036202 é fruto dos desdobramentos originários da MP 948 que na esteira desta insiste em continuar retirando direitos dos consumidores há muito já respaldados no CDC. O dispositivo legal afronta o artigo 35, III, pois negligenciam o fato de que na relação de consumo não há equilíbrio contratual, continua afastando a aplicação do artigo 56 do CDC, que são justamente utilizadas para repreender a prática abusiva de fornecedores e por fim, exclui por si, o dano moral, em contrariedade à própria Constituição Federal.

Se de um lado há a intenção do governo de manter minimente o caixa de empresas afetadas diretamente pela pandemia, do outro há um vulnerável por excelência — artigo 4º, I, do CDC — que pagou pelos serviços e teve as mesmas, senão piores, consequências financeiras em decorrência da Covid-19, e agora terá de esperar até 31 de dezembro de 2022 para ver seu dinheiro restituído, e torcer para que a medida imposta realmente salve as empresas do ramo, pois, no caso desta entrar em recuperação e ou falência, o prazo será ainda maior.

 

[1] STJ – Notícias: CDC 30 anos: o STJ e a revolução no sistema de consumo

[2] ConJur – PL sobre superendividamento urge aprovação — Aprofundado em matéria publicada no dia 10/2/2020

[3] PL 3314/2019 – Senado Federal Entenda o projeto no site do senado

[4] Novo normal: entenda melhor esse conceito e seu impacto (insper.edu.br) – entenda o termo

[5] mpv1036 (planalto.gov.br) acesse na íntegra

[6] L14046 (planalto.gov.br) acesso na íntegra

[7] President Kennedy: Consumer Bill of Rights, March 15, 1962 — Chris Hoofnagle | UC Berkeley School of Law, School of Information *Tradução livre: O Governo Federal — por natureza o maior porta-voz de todas as pessoas — tem a obrigação especial de estar atento às necessidades do consumidor e avançar nos interesses do consumidor.

[8] ConJur – 2020: sindemia e resistência do Direito do Consumidor – entenda melhor em matéria publicada em 3/7/2020

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    é advogado, mestrando em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e membro do Grupo de Pesquisa em Proteção de Dados no Estado Democrático de Direito.

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