Diário de Classe

O Estado, a "resposta correta" e a pandemia

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27 de março de 2021, 11h22

Não são poucas as discussões que, em tempos polarizados como estes em que vivemos no Brasil, encontram uma espécie de barreira discursiva difícil de superar. De um lado, defende-se o “ficar em casa” como principal protocolo sanitário para frear a pandemia que, desde o início do ano passado, é o principal assunto de uma agenda não apenas brasileira, mas global. De outro, adverte-se: esta mesma medida não apenas enfraquece sistemas econômicos como, no mais, estrangula as contas mais básicas de tantas famílias por aí, como aluguel, água, luz, mercado etc.[1] “Trabalhar para viver” ou “viver para trabalhar”?. Eis o dilema. Como sair desta aparente aporia? Haveria uma “resposta correta”?

Intuo que sim. Há uma “resposta”, penso, no sentido streckeano do termo, a apontar a luz no fim do túnel nesta babel pandêmica. O ponto de partida é que não há, ou não deveria haver, pelo menos, uma “escolha” entre ficar em casa, privilegiando as questões sanitárias e epidemiológicas, ou sair e trabalhar, favorecendo questões econômicas e, não raras as vezes, de reprodução da vida social e, portanto, de sobrevivência também.

Neste aceno que, poderíamos dizer, parece típico do primeiro Wittgenstein em que se deve calar sobre aquilo que não se pode dizer , o cerne para limitar essa dicotomia é a Constituição. Ela, como bem lembra Gilberto Bercovici, não é liberal. O documento de 1988 é social, e nele são elencados não apenas uma série de direitos, mas, mais que isso, objetivos da República que, uma vez perseguidos, fazem do Brasil um Estado social. Ou seja, a Constituição nos constitui exatamente assim, e é por essa mesma razão que não interessa o governo, sua linha ou sua ideologia: a política do Estado brasileiro é social. Ponto.

Isso significa que, na universalidade projetada na transição democrática, os riscos sociais, como desemprego ou questões de saúde pública, por exemplo, são diluídos entre todos os participantes de uma determinada comunidade política, no caso, aquela formada por todos os brasileiros. Mais: na especificidade da pandemia, “se o Direito for levado a sério”, isso também significa que não há uma escolha política, porque a discricionariedade limita-se a decisões de governo (política de governo) e não de Estado (política de Estado que, como já vimos, é social).

Passo seguinte é concluir, portanto, que governos não “escolhem” como fazer sucumbir suas populações – porque, tragicamente, é isso que se está fazendo, ao mesclar negacionismos a auxílios claramente insuficientes –, seja através dos horrores e da incerteza sanitária, seja através da precariedade econômica que ronda fantasmagoricamente o contexto em que nos metemos. Ao contrário, respeitada a política de Estado, bem grafada na autonomia do Direito, a discricionariedade política limita-se a, criativamente, encontrar saída para não ver conflitadas as questões sanitárias e econômicas. Afinal de contas, em resumo, i) se o Estado é adjetivado como “social”, então sua “política” é a diluição dos riscos sociais entre todos os membros desta comunidade política; ii) se ambos os lados da moeda, econômico e sanitário, fragilizam ou podem fragilizar o brasileiro, então ambos devem ser enfrentados por este mesmo Estado, e não um ou outro. Não há escolha(s) a fazer, ao menos nesse estrito sentido.

É evidente que o leitor mais crítico e atento deve estar questionando “como” equilibrar essas questões. E com razão. Sem fatiar cartesianamente o problema, no fim das contas, é tudo uma questão de dinheiro. Mas, olhando  tudo isso mais de perto, podemos dizer que, no mais, também é uma “questão de como se arrecada para financiar a diluição desses mesmos riscos sociais”. Esse é o ponto (ou a “política de governo”) a enfrentar.

Vejamos:

Segundo o Tribunal de Contas da União[2], somente em 2019, o ano que antecede a pandemia, o Brasil deixou de arrecadar, em renúncias fiscais, R$ 348,4 bilhões de reais. Isso equivale a 25,9% da receita primária líquida ou a 4,8% do Produto Interno Público. Não é pouca coisa. Comparativamente, em três anos, é algo próximo ao que se economizaria com a reforma da Previdência, mas em dez anos (cerca de R$ 900 BI).

É ululante: um ano de renúncias fiscais, claro, não parece suficiente para cobrir, “com dignidade” sublinhe-se , os custos, inclusive econômicos, da pandemia. Afinal, a soma de pálidos auxílios emergenciais de R$ 250 a R$ 600 (que não servem a muita coisa, convenhamos) supera R$ 320 bilhões. Mas o ponto não é esse. Além da discussão não ser sobre Economia mas sobre Direito , é preciso não perder de vista que substanciais volumes financeiros – que não escorreram no ralo das renúncias fiscais – integram a bolsa pública que financia o Estado e suas funções, não podendo ser descartados nessa conta, até aqui, de padaria. Ou seja, há – ou haveria, ou deveria haver, como é esse o fito da “política de governo” – dinheiro para, sim, ficar (dignamente) em casa. Por todos, nesse sentido, fiquemos com os exemplos norte-americano (que não são exatamente sinônimo de modelos protetivos) e britânico: é possível.

Mas, deixando o economês de lado e voltando a focar a discussão na diferença entre política de Estado e política de governo, o que chama a atenção aqui é uma espécie de escolha impossível (e diz-se “escolha” porque, claramente, integra um rol discricionário). E isso porque as tais renúncias fazem parte de uma política protetora de determinados setores, entre eles o agronegócio, por exemplo, mas não apenas, empalidecendo a bolsa que financia o Estado – que, não esqueçamos de como este texto começa, é adjetivado como “social”. D’outro jeito: é uma “política de governo” que, respeitada a autonomia do Direito, não deveria caber na “política do Estado” – que limita, que fecha possibilidades administrativas, e não o contrário.

Duas ressalvas antes de encerrar: em primeiro lugar, este texto não é uma crítica a um ou outro governo. Se o atual projeta renúncias bilionárias a igrejas em tempos pandêmicos[3], por exemplo, o de Dilma, outro exemplo, foi “campeão em renúncias fiscais”, mostrando que o problema (ou a confusão entre políticas de Estado e governo) é antigo. Assim, mina não de hoje as condições de possibilidade a questões críticas como essa.  Daí que, como já antecipava a personagem machadiana, “as consequências vêm sempre depois”. Quero dizer: as condições de possibilidade para o dos problemas, e não para as soluções, são bem enraizadas. É o que mostra o drama da pandemia e suas “aparentes” aporias, bem resumidas no arcaico entendimento de que nosso Texto Magno é mera Carta de Intenções. Reflexivamente, é desse mesmo velho paradigma que brota o descolamento daquilo que nos constitui e daquilo que, como país, fazemos. E é por isso que, nas lentes desse modelo, o Brasil, que agora é o “país da pandemia”, caminha para continuar o “país da desigualdade”. Tardio. E frágil.


[1] Falta de pagamento de água e luz bateu recorde em dezembro, conforme mostrou a Folha de S.Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/falta-de-pagamento-de-contas-de-agua-e-luz-bate-recorde-em-dezembro-diz-serasa.shtml.

[2] Qual o valor da Renúncia Fiscal da União? Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/fatos-fiscais/renuncia_fiscal.htm

[3] Sobre o tema, ver no Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/03/17/em-aceno-a-evangelicos-governo-avalia-perdoar-r-14-bi-em-dividas-de-igrejas.ghtml

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