Opinião

O Acordo de Compras Governamentais e a solução de controvérsias

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27 de março de 2021, 15h23

O Brasil caminha a passos largos para internacionalizar seu sistema de aquisições e compras por entes estatais, seja pela instituição do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf) [1] — que pretende facilitar a participação geral de empresas estrangeiras —, seja pelos próprios termos da nova Lei de Licitações, que passa a prever a modalidade licitatória internacional (artigo 51). Porém, o ponto principal e determinante, que definirá a amplitude desse processo, se dará com a adesão do Brasil ao Acordo de Compras Governamentais da Organização Mundial do Comércio  o país é observador do tratado desde 2017. 

O Agreement on Government Procurement (GPA), traduzido no português como Acordo de Compras Governamentais, garantirá que empresas brasileiras tenham condições favoráveis nas compras governamentais de 48 países, que passarão a conceder às firmas brasileiras o mesmo tratamento concedido às empresas nacionais e dos demais estados-membros do GPA. A recíproca se aplicará de igual forma às licitações brasileiras, que não poderão discriminar as empresas estrangeiras que advenham de Estados-membros do GPA.   

Esse acordo prevê que a adesão de um país pressupõe duas etapas: uma inicial, que consiste no pedido e no aceite aos seus termos gerais, concluída pelo Brasil em maio e outubro de 2020, e uma específica, que representa a oferta e a negociação de quais entes públicos, bens e serviços estarão cobertos no acordo, ou seja, o próprio alcance das obrigações internacionais no sistema licitatório do país. Sendo nesta segunda etapa que o Brasil se encontra, após apresentar sua oferta inicial de adesão no último dia 3[2].

É possível interpretar a oferta de adesão de um país como uma espécie de "folha em branco", em que os limites do acordo são definidos individualmente por cada Estado e aprovados pelos demais países-membros do GPA. O Canadá, por exemplo, em sua adesão, limitou o alcance do acordo para licitações promovidas por entidades federais e estaduais para bens e serviços. No tocante à adesão da União Europeia, o bloco optou por limitar o GPA para as licitações promovidas pelas unidades administrativas, que nos termos da Regulação europeia 1059/2003, enquadram-se quaisquer territórios com no mínimo 800 mil habitantes. Em síntese, somente com a aprovação da oferta do Brasil, que será possível identificar o alcance interno do GPA.

Por ora, o entendimento oficial da OMC é que o Brasil permanece com o status de "país em desenvolvimento" [3], o que, em tese, permite que sua oferta contenha períodos de transição e margens de preferência a produtos e serviços nacionais. Dessa forma, a eventual oficialização da desistência desse status perante a OMC — insinuada pelo ministro Paulo Guedes em 2019 — será determinante para a manutenção ou para a renúncia a essas prerrogativas. 

E se por um lado persistem algumas dúvidas centrais sobre a repercussão do GPA no sistema nacional de compras públicas, como o próprio alcance do acordo, por outro os termos gerais do GPA, contidos no texto do tratado multilateral, permitem identificar de antemão como se dará na prática o funcionamento das disposições internacionais. Exemplo disso é a forma de solução de controvérsias que advenham das aplicações do GPA.

Isso porque o acordo estipula uma estrutura de convivência entre a jurisdição nacional, em que se confia a parte majoritária dos conflitos originados na vigência do GPA, e o sistema internacional de arbitragem da OMC. Essa divisão é justificada pela própria natureza do Órgão de Resolução de Litígios da OMC, tanto por se limitar às lides apresentadas pelos Estados — o que impede que uma empresa individualmente utilize o meio — quanto por privilegiar a regulação aceita por todas as partes.

Ademais, a decisão por litigar um conflito na OMC serve como ato estratégico do comércio internacional de um Estado, que dialoga com outros elementos do contexto global e do relacionamento bilateral entre as partes [4]. Em síntese, torna-se pouco provável que parte majoritária dos conflitos se transforme em lide perante a OMC. Curiosamente, o próprio órgão internacional de soluções de controvérsias, em dois de seus casos prévios relativos ao GPA, reitera a relevância do judiciário nacional dos Estados-membros no acordo.   

A começar pelo caso DS 88: United States — Massachusetts State Law prohibiting contracts with firms doing business with or in Myanmar [5], em que a União Europeia acusou os EUA de adotarem medidas contrárias ao GPA, com base em lei estadual de Massachusetts que havia proibido a contratação pelo poder público de empresas que fizessem negócios com Myanmar. O ato foi interpretado como uma exigência política, que limitaria indevidamente a participação de licitantes internacionais, conduta proibida nos artigos 8 e 10 do GPA.

Em paralelo à iniciativa europeia, a lei estadual foi questionada perante a justiça federal dos EUA alguns meses após a abertura do painel arbitral da OMC, o que repercutiu em decisão liminar que suspendeu os efeitos da normativa de Massachusetts. A movimentação interna, mesmo em caráter liminar, foi interpretada como suficiente para suspender o painel de arbitragem [6]. Isso demonstra um cometimento do sistema de solução da OMC, que buscou aguardar a atuação do judiciário interno, sem prejuízo da retomada do painel, caso a matéria não fosse devidamente analisada.

A segunda decisão relevante do painel arbitral é o DS163: Korea — Procurement practices of the Korean Airport Construction Authority. Tratou-se de acusação formulada pelos EUA contra a Coreia do Sul com base em ato da Korean Airport Construction Authority, autoridade central responsável pela construção de aeroportos no país. Segundo a denúncia, os editais licitatórios da autoridade central exigiam que licitantes estrangeiros atuassem em parceria com firmas domésticas, na forma de subcontratadas. Subsidiariamente, como forma de justificar sua denúncia perante a OMC, os EUA afirmaram que inexistiam procedimentos internos na Coreia que permitissem aos licitantes estadunidenses questionar o descumprimento do GPA.

Em análise aos argumentos apresentados pelos EUA, o painel avaliou que a Korean Airport Construction Authority não estaria inclusa na adesão da Coreia ao GPA, o que, portanto, implica desnecessidade deste ente estatal em cumprir com as obrigações contidas no Acordo. Por sua vez, no tocante ao argumento subsidiário, avaliou-se que a Coreia disponibilizou meios adequados para solucionar conflitos advindos do GPA, que, inclusive, foram utilizados previamente por empresas estadunidenses [7]. Portanto, não há obrigatoriedade em acatar quaisquer reclamações advindas de licitantes estrangeiros, mas de garantir uma via procedimental que analise adequadamente suas demandas.

O disposto não pode ser interpretado como fortalecimento da soberania exacerbada dos países-membros, em face de seu Judiciário ser o responsável por regular os conflitos advindos desse acordo. Ao contrário, o arranjo acaba por ampliar a responsabilidade internacional dos Estados, tendo em vista a obrigação de garantir meios judiciais e administrativos — ágeis, independentes e eficientes — disponíveis aos licitantes internacionais. Além disso, promove garantias processuais, como o prazo mínimo de dez dias para contestar violação ao conteúdo do GPA e a possibilidade de requisitar medidas provisórias que resultem na suspensão do processo de aquisição. Trata-se, sobretudo, do desdobramento do próprio conteúdo internacional, que elege a jurisdição nacional como a responsável por dirimir conflitos.

Quanto ao contexto brasileiro, o que se observa é que a eventual adesão ao GPA terá um impacto rápido no mercado nacional, afinal, questões como o início dos leilões do 5G e a possível implementação obrigatória do free flow nas concessões de estradas federais, pelo PLC nº 8/2013, são atrativos certeiros a empresas estrangeiras — o que significa que o acordo tende a se tornar, em breve, caso aprovada a adesão do país, um tema analisado pelos tribunais brasileiros.

 


[4] COZENDEY, Carlos Márcio Bicalho. O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: para além dos contenciosos, a política externa. In BENJAMIN, Daniela Arruda (Org.). O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC: Uma perspectiva brasileira. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão. 2013.

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