Opinião

A nova Lei de Licitações e a perda de uma chance

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27 de março de 2021, 16h58

A promulgação de uma nova Lei de Licitações, por envolver tema sensível, é daqueles acontecimentos raros e marcantes [1]. Raras, essas oportunidades não poderiam ser desperdiçadas. Ao contrário, deveriam ser aproveitadas para mudanças mais audaciosas, não meras atualizações do aparato normativo existente. Se isso for verdade, a nova lei representa, sem dúvida, a perda de uma chance.  

Mas que chance seria essa? De modo convicto, respondo que perdemos a chance de modernizar nosso sistema de contratações públicas. Optamos, ao contrário, pela mera atualização da legislação até então vigente, empreitada bem menos corajosa e benéfica à sociedade. A verdadeira tarefa, a reconstrução do sistema sobre bases mais pragmáticas, foi substituída pela mera introdução de algumas novidades — várias, é verdade. No entanto, isso ainda é pouco.   

O Direito Administrativo contemporâneo é — ou deveria ser — mais pragmático que formalista. Essa afirmação, que não é nova, aponta para a virada de paradigma pela qual atravessa a Administração Pública, que passa a se preocupar muito mais com os resultados de suas ações, e menos com a aplicação fria da legislação existente. Obedecer à lei, sem resultados concretos, já não é mais suficiente. A busca pelo resultado torna-se requisito de legitimidade da atuação administrativa.

Nesse cenário, de busca mais intensa por resultados, a lei administrativa deve ter seu papel repensado. Em vez de minuciosa e detalhista, tentando trazer soluções para todos os possíveis dilemas do gestor, a lei administrativa deveria cuidar do processo decisório, regulando o itinerário que a Administração Pública deve seguir até a tomada de qualquer decisão, das mais simples até as mais complexas. Em vez de decidir, à lei caberia exigir racionalidade das decisões administrativas.

No entanto, como dito acima, parece que nossa nova Lei de Licitações manteve a aposta na regulação analítica, decidindo, de antemão, os aspectos mais relevantes das futuras licitações e contratos administrativos. Não deu espaço, por exemplo, para contratos administrativos inovadores ou para a criação de modalidades licitatórias pela própria Administração, nem para a celebração de negócios jurídicos com cláusulas especiais ou sem as já desgastadas cláusulas exorbitantes — que, a meu ver, poderiam ser afastadas em contratações pontuais.

O ideal, dentro desse Direito Administrativo mais pragmático, seria editar lei que se contentasse com a elaboração de uma moldura normativa. Nesse modelo, o protagonismo ficaria com o edital, quando houvesse, e com o contrato administrativo, atos tipicamente executivos. O foco, portanto, deslocar-se-ia do Legislativo para o Executivo, que é o poder com maior expertise para lidar com essa matéria. Só esse tipo de sistema permitiria as melhores escolhas, segundo a realidade de cada ente e a dinâmica de cada setor econômico.

Além da justificação pragmática, esse formato possui relevante fundamento normativo, pois, afinal, não só de pragmatismo vive o Direito Administrativo. Nesse ponto, seria fundamental uma virada na interpretação do artigo 22, XXVII, da Constituição da República [2].

Diversamente do que é dito de modo quase unânime, a Constituição, ao colocar as normas gerais sobre licitações e contratos no rol de competências privativas da União, não quis fixar, a meu ver, mais uma hipótese de competência concorrente. Na verdade, com essa escolha, o texto constitucional preparou terreno para um sistema legal formado exclusivamente por normas gerais, cabendo ao Executivo a elaboração, em cada caso, das normas específicas.

Assim, o artigo 22, XXVII, teria dupla função: 1) determinar o nível federativo da competência legislativa, isto é, qual ente federado pode legislar sobre licitações e contratos; mas, ainda, 2) fixar o limite de atuação de cada poder no processo de contratações públicas, cabendo ao Legislativo elaborar a moldura normativa — normas gerais —, e ao Executivo o preencher dessa moldura — com normas específicas —, segundo as peculiaridades de cada caso, da forma mais racional e eficiente possível. Tratar-se-ia, então, de sistema exigido pela própria Constituição, que, visionária, concluiu, antes de todos, que o melhor arranjo de contratações públicas é o que se pauta fortemente no pragmatismo, sem as amarras de uma lei analítica.

Em vez de obrigar essa ou aquela medida, caberia à lei estabelecer o "devido processo licitatório", exigindo do gestor público o adequado planejamento e a motivação de suas decisões, que deveria considerar as consequências e os interesses envolvidos na contratação.

A lei poderia permitir, por exemplo, a criação de modalidades licitatórias pela Administração Pública ou a adoção de formas mais eficientes de remuneração. Da forma como está, teremos de conviver, mais adiante, com aparato normativo antiquado, pelo menos até a próxima rodada de atualização legislativa, que pode durar algumas décadas.

A lei, por ser fruto de um olhar retrospectivo, não é capaz de enfrentar, de modo adequado, os constantes desafios que surgem diante da Administração Pública. Sua função, portanto, deveria ser o de permitir boas escolhas, adequadas a cada caso concreto, e não o de decidir no lugar dos gestores e gestoras. O que agora é celebrado como avanço, no futuro será apontado como ultrapassado. Não nos esqueçamos que a novidade de hoje é a obsolescência de amanhã.

A regulação prévia e analítica pode até funcionar como postura defensiva; pouco contribuirá, contudo, na efetivação do paradigma de resultados, que depende de espírito pragmático e inovador. O medo de eventuais más escolhas, no futuro, não deveria nos condenar a conviver com ferramentas insuficientes desde já. Perdemos a chance de implementar virada pragmática em nosso sistema de compras públicas.

 


[1] Depois de promulgado, este será nosso quarto diploma legislativo, de abrangência nacional e com pretensão sistematizadora, sobre licitações e contratos de abrangência nacional, depois do Decreto-Lei nº. 200/67, do Decreto-Lei nº. 2.300/86 e da Lei Federal nº. 8.666/93. Antes de 1967, apenas a União possuía legislação sobre concorrência pública (Decreto nº. 15.783/22), de modo minimalista e quase nada sistemático.

[2]  "Artigo 22 – Compete privativamente à União legislar sobre:
[…]
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública, direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, nas diversas esferas de governo, e empresas sob seu controle".

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