Opinião

A ADI 6.764 como 'canto da sereia'

Autores

  • Diogo Bacha e Silva

    é doutor em Direito pela UFRJ mestre em Direito pela FDSM (com estágio de pós-doutorado em Direito na UFMG) e membro do OJB/FND e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG mestre e doutor em Direito (UFMG) com estágio pós-doutoral com bolsa da Capes na Università degli Studi di Roma III e bolsista de produtividade do CNPq (1D).

  • Alexandre Melo Franco Bahia

    é doutor em Direito pela UFMG pós-doutor pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto bolsista de Produtividade do CNPq e professor Associado na Ufop e IBMEC-BH.

25 de março de 2021, 20h32

O presidente da República ajuizou a ADI 6.764 em face dos Decretos 41.874/2021 do Distrito Federal, 20.233/2021 da Bahia e 55.782/2021 do Rio Grande do Sul, que estabeleceram medidas restritivas em razão do agravamento da pandemia da Covid-19 [1]. Essa ADI pleiteia ainda medida cautelar para que o Supremo Tribunal Federal confira "interpretação conforme à Constituição" aos artigos 2º, I, II e IV, e 3º, I e II, da Lei 13.784/19 (liberdade econômica) e dos artigos 2º, I e II, e 3º, II e VI da Lei 13.979/20 (normas gerais sobre a pandemia), além da declaração de inconstitucionalidade daqueles decretos.

Na ADI, afirma-se que os governos locais não poderiam adotar medidas restritivas à liberdade econômica por ausência de amparo legal e constitucional. E que a Constituição autorizaria apenas ao presidente adotar medidas tão restritivas quanto a decretação dos estados de sítio e de defesa, cumpridos os requisitos dos artigos 136 e 137.

Além disso, defende-se que embora a Lei 13.979/20 tenha permitido que governadores estabeleçam quais atividades seriam essenciais, referida autorização não outorgaria aos entes federativos a possibilidade de que referidas atividades tivessem seu funcionamento cessado por motivo sanitário. Na medida em que a Lei 13.784/2019 estabeleceu que seria direito básico de toda pessoa o desenvolvimento de atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, a crise sanitária deveria ser harmonizada com a necessidade da própria subsistência, daí pleiteia-se uma interpretação conforma à Constituição dos artigos 2º, incisos I, II e IV, e 3º, incisos I e II, da Lei 13.784/2019 para que os governos locais preservem o mínimo de autonomia para as pessoas.

Por fim, sustenta-se que haveria violação à proporcionalidade: as medidas tomadas pelos governos locais como o "toque de recolher" e o fechamento de serviços não essenciais não resistiriam a um juízo de proporcionalidade na medida em que impactariam de forma excessiva os direitos à liberdade de locomoção e de subsistência econômica [2].

A primeira questão que merece ser objeto de considerações é de índole processual [3]. O próprio presidente é o signatário da peça processual, sem o acompanhamento da Advocacia-Geral da União como órgão de representação, judicial e extrajudicial, da União e todos os seus órgãos. Não se desconhece que a corte, em julgado firmado na QO-ADI 127, tenha estabelecido que as entidades legitimadas para a propositura de ADIs (artigo 103, CF/88) têm capacidade postulatória decorrente da própria norma constitucional, razão pela qual poderia praticar qualquer ato privativo de advogado [4]. No entanto, tal decisão confundiria inadequadamente os institutos da legitimidade e da capacidade postulatória.

Enquanto a legitimidade é pressuposto processual subjetivo de validade, cujo reconhecimento negativo acarreta a resolução da demanda sem juízo de mérito (artigos 17 e 485, inciso VI do CPC) e, portanto, de inadmissibilidade [5], a capacidade postulatória também é pressuposto processual subjetivo de validade que deve ser analisado à luz do sistema de invalidação dos atos processuais, cuja inobservância poderá acarretar a nulidade do ato praticado, desde que não seja sanado o vício processual.

Mais recentemente, o STF, no que toca à capacidade postulatória dos governadores, tem entendido que "descabe confundir a legitimidade para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade com a capacidade postulatória. Quanto ao governador do Estado, cuja assinatura é dispensável na inicial, tem-na o procurador-geral do Estado" [6]. A posição dos governadores no artigo 103 da Constituição é de aplicação da simetria e, em tudo, análoga à do presidente. Portanto, o presidente não deteria capacidade postulatória para ofertar uma petição inicial, mesmo na ação de controle concentrado de constitucionalidade, se não tiver acompanhado do órgão de representação judicial da União.

Distribuída a ação para a relatoria do ministro Marco Aurélio, ele monocraticamente negou seguimento, decidindo que o presidente não detém capacidade postulatória, uma vez que personificaria a União e a AGU é o órgão de representação judicial [7]. Em virtude de "erro grosseiro", o relator entendeu que nem caberia falar em saneamento [8], indo assim em desacordo com a sistemática de aproveitamento dos atos processuais que determina a possibilidade de emenda à inicial para o saneamento de vícios sanáveis (artigo 321 do CPC).

Quanto ao próprio mérito da ADI, algumas questões merecem uma análise detida, sendo importante entendermos quais as premissas que servem de ponto de partida para o pedido.

A primeira e mais evidente é o argumento de que os decretos emitidos pelos governos locais não têm amparo legal. Tal afirmação é desmentida desde logo pelos artigos 2º e 3º da Lei 13.979/2020, que, como lei geral da pandemia, trata de disciplinar as medidas restritivas que podem ser impostas, nos limites da competência da autoridade, para o combate ao coronavírus e prevê a possibilidade de isolamento e quarentena, cujas definições são dadas pelo Regulamento Sanitário Internacional (artigo 2º, parágrafo único da Lei 13.979/2020).

Tendo a Lei 13.979/2020 previsto as duas figuras para o combate ao coronavírus, a quarentena e o isolamento social, as quais podem ser cumuladas ou não, não cabe falar em ausência de amparo legal para a sua efetivação por parte das autoridades locais. Aliás, como se sabe, o Poder Executivo apenas quando autorizado pela Constituição (tal qual na lei delegada e na medida provisória) poderá realizar atividade legislativa primária. No entanto, é próprio das suas funções a chamada atividade legislativa secundária como aquela que não inova na ordem jurídica [9].

A atividade legislativa secundária é exercida pelo poder regulamentar da Administração Pública, sobretudo no caso do chefe do Poder Executivo que deve expedir decreto para a fiel execução das leis. Só cabe falar em inconstitucionalidade dos decretos quando não houver ato legislativo primário possibilitando a atividade regulamentar. Ao contrário, quando a interpretação administrativa da lei, consubstanciada em um decreto executivo, tenha se projetado além da lei, aquém da mesma ou fora dela, tem-se a chamada crise de legalidade que não permite a instauração da fiscalização concentrada de constitucionalidade, conforme amplamente já decidiu o STF [10].

Além do não cabimento da ADI em virtude dos decretos impugnados estarem amparados pela Lei 13.979/2020, o mérito da ADI 6764 encontra óbice em julgado recente do próprio STF que interpretou, à luz do federalismo, a possibilidade de edição/execução de medidas restritivas por cada ente federativo.

Desse modo, no âmbito da ADPF 672, o STF, convertendo a medida cautelar já concedida anteriormente em julgamento de mérito, estabeleceu que, em face da competência administrativa comum e legislativa concorrente e suplementar (artigos 23, II, 24, XII, 30, II, e 25, §1º, da CF/88) de todos os entes na proteção e defesa do direito à saúde [11], e em vista da regra de repartição de competências do predomínio do interesse, caberia a cada ente adotar no exercício de suas competências constitucionais medidas sanitárias sem que a União pudesse, unilateralmente, afastar as decisões dos governos regionais e locais [12].

Nunca é demasiado lembrar que a decisão proferida no controle de constitucionalidade tem efeito vinculante em relação ao Poder Executivo. Embora não se desconheça que não há efeito vinculante em relação ao próprio STF (artigo 102, §2º, da CF/88 c/c artigo 10, §3º, da Lei 9.882/99), o ajuizamento de ADI por parte do chefe do Poder Executivo federal que pretenda rediscutir a temática já com efeito vinculante e com formação da coisa julgada seria uma espécie de recalcitrância no cumprimento da decisão, podendo acarretar, inclusive, litigância de má-fé.

A alegação de que a Lei 13.784/2019 constituiria um direito básico dos indivíduos para o desenvolvimento de atividades empresariais em qualquer dia e horário, independentemente do risco sanitário da atividade, também não se sustenta. Deve-se observar a literalidade dos dispositivos legais invocados para entender o equívoco. No primeiro (artigo 3º, I), exime-se o empresário de ato inicial de autorização das atividades empresariais de baixo risco. Ora, em nenhum momento, os decretos atacados proíbem o desenvolvimento de atividades comerciais. Apenas estabelecem restrição temporária motivada pela maior crise sanitária e humanitária do país. Quanto ao segundo (artigo 3º, II), o disposto veda a cobrança de taxas ou outro encargo para o funcionamento e o desenvolvimento das atividades comerciais seja durante a semana e até mesmo durante feriados. Em hipótese alguma, portanto, libera-se, sem mais, o desenvolvimento de atividades empresariais, tanto é assim que as alíneas trazem hipóteses nas quais o interesse coletivo poderá se sobrepor à atividade empresarial.

A Constituição estabelece, em seu artigo 170, inc. I a IX, os princípios que deverão ser observados pela ordem econômica, que estão integrados, segundo o caput do mesmo artigo, em uma dimensão maior da dignidade humana: "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (grifo dos autores).

Além de não se admitir que a lei da liberdade econômica tenha o conteúdo de permitir o desenvolvimento da atividade empresarial em qualquer momento e sob qualquer circunstância, a ADI 6.764, ao argumento da interpretação conforme das mencionadas leis, busca que as disposições constitucionais sejam interpretadas de acordo com disposições legais e não o contrário. Dessa forma, o que se pretende é a inversão na qual a lei é que conferiria validade à Constituição.

Por último, mas não menos importante, o argumento da desproporcionalidade na adoção das medidas restritivas não seria crível se se considerar um juízo de ponderação, ainda que perfunctório. Quanto ao subprincípio da adequação, por exemplo, o isolamento e a quarentena são medidas eficazes para evitar a propagação e disseminação do vírus mortal. Já quanto à necessidade, embora exista meio menos gravoso, isto é, a vacinação e a imunização da população, o governo federal, como já amplamente noticiado, teria deixado de efetuar a aquisição de milhões de doses do imunizante, razão pela qual a vacinação é ainda incipiente, dada a vagarosidade com que o plano nacional vem sendo implementado. Assim, analisando as possibilidades jurídicas e fáticas, a adoção de medidas restritivas é, senão a única, a medida mais factível para a proteção do direito à saúde.

Por tudo isso, quando também analisada no mérito, a promoção da ADI 6.764 não resiste a uma análise jurídica aprofundada, apenas servindo, quem sabe, como um "canto da sereia" para aqueles que resistem às medidas sanitárias adequadamente tomadas pelos referidos governos locais.

 

[1] Dedicamos este texto a Lenio Streck, pela inspiração de sempre. Cabe ver a entrevista concedida à CNN, “A ação que o presidente está tomando junto ao Supremo não tem sentido. Do jeito que vai, o presidente daqui a pouco vai entrar com uma ação proibindo as vacinas", disse Streck. "O país está explodindo. Essas questões que o presidente está fazendo não fazem bem nem para o espírito nacional, nem para as vítimas e seus parentes.” “Bolsonaro confunde conceito e prejudica país em ação contra estados, diz jurista”. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/03/19/bolsonaro-confunde-conceito-e-prejudica-pais-em-acao-contra-estados-diz-jurista

[3] Sobre o tema da capacidade postulatória, ver “Presidente pode mover ADI, mas precisa ser representado por advogado”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-mar-20/presidente-mover-adi-representado-advogado.

[4] STF, ADI 127 MC-QO, rel. Min Celso de Mello, j. 10/11/1989.

[5] Sobre as modificações na sistemática processual em virtude das críticas ao tratamento dado pelo CPC/73 ver: NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre, PEDRON, Flávio Quinaud. Teoria geral do processo: com comentários sobre a virada tecnológica no direito processual. Salvador: Juspodivm, 2020.

[6] STF, ADI 2906, rel. Min. Marco Aurélio, j. 1º-6-2011, P, DJE de 29-6-2011.

[7] Em uma decisão recente, na ADI 4409, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 06/06/2018, ficou consignado no acórdão: “Os legitimados listados no artigo 103, I a VII, da Constituição têm capacidade postulatória na ação direta de inconstitucionalidade. A exigência de procuração com poderes específicos e indicação do ato normativo impugnado é vício sanável”. No entanto, a questão discutida era a alegação da preliminar agitada pela Advocacia Geral da União no sentido de que a procuração tivesse poderes específicos e indicasse expressamente os dispositivos impugnados. Tendo a parte autora, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil apresentado posteriormente procuração com poderes específicos para advogado, tem-se que a referida questão preliminar foi superada, embora conste tal passagem na ementa do julgado. Demonstra-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal confunde sistematicamente legitimidade (CFOAB), capacidade processual (quem representa o órgão, no caso da CFOAB, o seu presidente) e capacidade postulatória em sede de controle de constitucionalidade. Nos parece que o mais correto é adoção da posição do Ministro Marco Aurélio externada no julgado de 2011 e no presente caso.

[9] CLÉVE, Clémerson M. A atividade legislativa do Poder Executivo. 2ª ed. SP: RT, 2000. p. 270.

[10] STF, ADI 996 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 11-3-1994, DJ. de 6-5-1994.

[11] Sobre essa temática, inclusive diferenciando a emergência constitucional e o estado de sítio e defesa, ver: BACHA E SILVA, Diogo; BAHIA, Alexandre. Direito à saúde, jurisdição constitucional e estado de emergência constitucional: uma perspectiva crítica da pandemia. Revista Direito e Práxis, Ahead of print, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/50341/34048. Acesso em: 22 de março de 2021. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/50341

[12] STF, ADPF/MC 672, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 13/10/2020.

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