Direito é divergência. Toda norma jurídica, lida no seu contexto, comporta diferentes interpretações e toda norma jurídica, antes de ser aplicada, precisa ser interpretada, para que, do enunciado, se extraia o mandamento. Partindo de diferentes princípios ou valorizando de maneira diferente os princípios que informam o sistema, é possível chegar a diferentes entendimentos ou conclusões. A prevalência de um determinado entendimento depende da consistência e coerência dos argumentos que sustentam a conclusão. Os princípios jurídicos servem, exatamente, para orientar a interpretação e a aplicação de toda e qualquer norma.
Ressalte-se, porém, que princípios não são panaceias, disponíveis para justificar qualquer decisão, manejáveis para justificar decisões preconcebidas ou ideológicas. Mesmo que agridam a essência do sistema jurídico. Recentemente, num determinado caso (MPT x Churrascaria Fogo de Chão — ACP 0100413-12.2020.5.01.0052) a empresa ré, no início da pandemia, que afetou duramente seu negócio, demitiu um grupo de empregados, com base na autorização expressa contida no artigo 477-A da CLT. No entanto a juíza prolatora da sentença, anulou as demissões, determinou a readmissão dos empregados e fixou a obrigação de pagamento de vultosa indenização de um suposto dano moral coletivo. Em sua argumentação ela destacou que "a disposição do art. 477-A da CLT agride diversos princípios constitucionais, tais como os da justiça social, da subordinação da propriedade a sua função social, da proporcionalidade, da valorização do trabalho e do emprego e da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica e na vida socioeconômica, além do princípio da dignidade da pessoa humana". O despropósito é gritante.
A manipulação de princípio jurídicos, seja pela desconsideração da relevância de princípios gerais de amplo espectro, seja pelo exacerbamento da positividade de princípios setoriais secundários, pode levar a absurdos evidentes, com uma aparência ou disfarce de juridicidade. Em nosso entendimento, é o que ocorre com a anulação de todas as condenações do ex-presidente Lula, proferidas pela 13ª Vara da Justiça Federal, de Curitiba, decretada, monocraticamente, pelo ministro Edson Fachin, por suposto vício na distribuição dos feitos. Note-se o detalhe; A decisão foi proferida no HC 193.726 – Paraná, tendo como ato coator Acórdão da 5ª Turma do STJ, em Embargos de Declaração, no Agravo Regimental ao Recurso Especial nº 1.795.139. O suposto vício, subitamente descoberto e revelado pelo ministro, já tinha sido objeto de exame, no conjunto dos quatro processos, por todas as instâncias. Sempre foi arguido e nunca reconhecido. De repente: "fiat lux".
Sustentam os impetrantes do Habeas Corpus que não há correlação entre os danos sofridos pela Petrobras e as obras realizadas no tríplex do Lula. Entretanto, a longa, detalhada e muito bem fundamentada, sentença proferida pelo juiz Sergio Moro, em 12 de julho de 2017, evidencia uma inegável conexão. Não é possível avaliar corretamente a decisão agora proferida, sem examinar os fundamentos da decisão condenatória em primeira instância, que foi devidamente referendada nos recursos apresentados. Com efeito é impossível separar qual ato de corrupção foi destinado a qual beneficiário. Houve, sim, um amálgama de corruptores e um amálgama de corruptos. Basta lembrar que a operação "lava jato" começou com a investigação de lavagem de dinheiro num posto de gasolina em Brasília, mas, exatamente pelas conexões, chegou aos danos causados à Petrobras. Ou seja: é inegável a existência de um pool de corruptores e de uma certa compensação entre eles, de maneira que todos se dessem por satisfeitos. Não há sombra de dúvida de que o Grupo OAS, beneficiário de contratos superfaturados danosas para a Petrobras, pagou propinas para dirigentes da estatal e, mais especificamente, custeou as reformas feitas no tríplex de Lula. Impossível, portanto, afastar a conexão entre os pagamentos que beneficiaram Lula e os danos sofridos pela Petrobras.
Mas isso não é o mais importante. O que merece maior atenção é a violenta e repentina agressão à estabilidade das relações jurídicas. Não por acaso a ordem jurídica consagra os institutos da prescrição e da decadência, admitindo também a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão judicial, aplicável exatamente em situações nas quais, por longo espaço de tempo, se houve como lícito um determinado comportamento, posteriormente julgado ilícito.
A segurança jurídica é um princípio bastante valorizado no âmbito do Direito Administrativo desde longa data. Seja permitida a transcrição, nos parágrafos que se seguem, de apenas duas (entre as muitas) manifestações doutrinárias nesse sentido ao longo do tempo.
"É importante que se deixe bem claro, entretanto, que o dever (e não o poder) de anular os atos administrativos inválidos só existem quando no confronto entre o princípio da legalidade e o da segurança jurídica o interesse público recomende que aquele seja aplicado e este não. Todavia, se a hipótese inversa verificar-se, isto é, se o interesse público maior for de que o princípio aplicável é o da segurança jurídica e não o da legalidade da Administração Pública, então a autoridade competente terá o dever (e não o poder) de não anular, porque se deu a sanatória do inválido, pela conjunção da boa fé dos interessados com a tolerância da Administração e com o razoável lapso de tempo transcorrido". ALMIRO DO COUTO E SILVA ("Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo”, Revista de Direito Público, nº 84, outubro-dezembro de 1987, página 61 e 62).
"A LPA federal estabeleceu o prazo quinquenal para que a Administração anulasse atos que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. O princípio da segurança jurídica, enfatiza Gilmar Mendes, impõe limites à possibilidade de a Administração anular atos administrativos não apenas em face de direitos subjetivos (efeitos favoráveis) regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa-fé e a confiança (Treue und Glauben) dos administrados. Segundo Otto Bachof, o tema despertou interesse na doutrina e na jurisprudência da década de 1950, gerando a tendência em se substituir o princípio da possibilidade de anulamento pela impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica". (IRENE PATRÍCIA NOHARA, THIAGO MARRARA, Processo Administrativo, Editora Atlas, São Paulo, 2010, p. 347/348).
Em muitos escritos (artigos e pareceres), sempre sustentei que o princípio da segurança jurídica era, na verdade, um super princípio, de excepcional hierarquia, pois é em função dele que se tem uma ordem jurídica, uma pluralidade de direitos e garantias e, especialmente, os institutos destinados à manutenção de situações posteriormente havidas como irregulares.
Mas há quem vá ainda mais além, conforme a lição de Ricardo Marcondes Martins, que se transcreve: "A segurança é uma necessidade humana básica, considerada uma das principais causas da própria existência do Direito. Se a existência do ordenamento jurídico decorre da necessidade humana de segurança, não há como conceder um ordenamento em que ela não esteja presente: seja um ordenamento autoritário ou democrático, seja um ordenamento escrito ou não-escrito, a existência do ordenamento jurídico dá-se pela necessidade de segurança — e, por isso, pressupõe esse valor. Em outras palavras, pode-se afirmar que, enquanto a concretização da segurança é a causa final do Direito, a necessidade de segurança é sua causa eficiente. Dentre os denominados princípios jurídicos destaca-se, assim, a importância da segurança jurídica". "Por ser ínsita à ideia de Direito, independe de qualquer valoração do constituinte, e, por isso, o chamado princípio da segurança não é um princípio, mas um postulado jurídico. Independe de qualquer positivação, pois é uma imposição conatural à própria Constituição; em outras palavras, a segurança é um pressuposto epistemológico do Direito. Eis sua verdadeira natureza jurídica: trata-se de um postulado jurídico, chamado tradicionalmente de princípio". RICARDO MARCONDES MARTINS, Efeitos dos vícios do ato administrativo, Temas de Direito Administrativo 19, Malheiros, São Paulo, 2008, p. 306 e 307.
Como se pode notar, a doutrina sempre evoluiu no sentido de reforçar os princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações jurídicas. Mas a legislação também evoluiu nesse mesmo sentido. O vetusto Decreto-Lei nº 4.657, de 04/09/42, agora designado como Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, foi alterado para que nele se acrescentasse mandamentos destinados exatamente a reforçar o acatamento ao mencionados princípios. Para demonstrar essa tendência, basta transcrever aqui o disposto no "caput" do artigo 20: "Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Note-se a menção expressa à esfera judicial. Note-se também, que não mais se está no campo restrito do Direito Administrativo, mas, sim, a todo o direito brasileiro.
Não basta a simples possibilidade abstrata da desconstituição de situações jurídicas consolidadas. É essencial verificar, diante do caso concreto, se, em nome do princípio da legalidade (da estrita legalidade), não se estará violando o super princípio ou o postulado da segurança jurídica. Na hierarquia dos princípios, sem dúvida alguma, este é o mais valorizado pela ordem jurídica. O sopesamento das consequências da decisão não é mera recomendação, mas determinação legal, conforme destaca a doutrina: "Mais do que uma deferência ao consequencialismo, o dispositivo presta homenagem à responsividade da decisão. Prospectar os efeitos da decisão não é irrelevante. O dever de motivar (geral a toda decisão) passa a ser reforçado, nos casos de decisão baseada em valores abstratos, com o dever de indicar as consequências antevistas pelo decisor. Mais do que isso, o dispositivo obriga a que as consequências possíveis sejam avaliadas e sopesadas. E, assim exigindo, torna a decisão baseada na aplicação de princípio controlável (e censurável) quando não vier acompanhado da análise das consequências". FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO; RAFAEL VÉRAS DE FREITAS, "Comentários à Lei nº 13.655/2018 — Lei da Segurança para a Inovação Pública”, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2019, p. 32, 33.
No caso em exame, da súbita, surpreendente e abrangente nulidade decretada pelo ministro Fachin, é preciso ponderar o impacto de um simples vício de competência relativa (meramente territorial) e a desordem jurídica que dela pode emanar, pois certamente outros réus vão postular o mesmo "abre-te, sésamo". Por último, cabe mencionar que se trata de uma decisão monocrática, o que é altamente questionável, pois a Constituição não confere competência a este ou aquele ministro, nem para uma ficção designada Turma, mas sim ao órgão, à instituição ou ao colegiado. Salta aos olhos o absurdo em se aceitar que, num lapso, uma pessoa, possa colocar por terra algo que foi examinado e mantido por toda a estrutura do sistema judiciário e, assim, aniquilar a segurança jurídica.