Garantias do Consumo

Contrato, consumo, pandemia e lockdown

Autor

  • Cristiano Heineck Schmitt

    é advogado doutor e mestre em Direito pela UFRGS professor de Direito da Escola de Direito da PUC-RS pós-graduado pela Escola da Magistratura do RS secretário-geral da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB-RS Membro do Instituto Brasilcon e do Ibdcont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual).

24 de março de 2021, 8h02

De todos os mecanismos jurídicos criados pelo ser humano, nenhum supera em essencialidade a figura do contrato. Desde tempos remotos onde imperava a troca, até a evolução para a cunhagem de moedas, e, posteriormente, a sua circulação, quando então emerge a perspectiva da compra e venda, o instituto do contrato é o fator que tem mantido a humanidade interligada.

Afora o Direito Civil, com formas seculares como locação, compra e venda, seguro, doação, figuras negociais que ainda conservam estruturas originais seculares, diversos outros relacionamentos humanos estão conectados pelo contrato. Assim, tem-se o contrato de trabalho, o contrato de casamento, de união estável, entre tantos.

A cada avanço em termos tecnológicos e de conhecimento, novas necessidades vão surgindo ao ser humano, em busca de melhores condições de vida, e intensificando a vulnerabilidade do mesmo quanto à capacidade de, por si só, atender estas exclusivamente do próprio desforço.

Num mundo onde o sujeito tivesse que captar água, providenciar alimento mediante caça e pesca, não sobraria tempo para investir em produção para a venda e diversos outros cenários tão presentes na realidade. Por outro lado, para além de necessidades reais, o sistema capitalista atual impõe metas de consumo infindáveis, e uma projeção de desejos por atender.

O sujeito do século 21 não é o "indivíduo do básico", conformado com sua situação, que poderia incluir até um estado de vassalagem medieval, quando se contentaria em estar vivo, uma vez provido de alimento, água, e um espaço para dormir. O nosso presente exige sejam atendidos diversos requisitos para que o cidadão possa se habilitar como membro ativo de uma sociedade que se pauta mais em forma do que conteúdo. Para ser, há que ter.

E, na medida que são adquiridos produtos e serviços, logo a seguir estes devem ser renovados, gerando um ciclo sem fim de investimentos. O afã do "ter" é intenso em projetar sujeitos superendividados, enganados com a promessa de felicidade a partir da posse de bens de consumo.

Diante do maior desafio da humanidade no século 21, a Covid-19, o consumo foi desafiado. Por outro lado, por maior que seja o sofrimento gerado pela perdas de vidas diante do coronavírus, este ainda não é mais debilitante do que outros eventos do século 20, que apresentou a 1ª e a 2º Guerras Mundiais, a Gripe Espanhola, e uma série de conflitos armados com perdas inestimáveis. Mas mesmo assim, a Covid-19 forçou o sistema capitalista a adotar mudanças e adaptações.

Pessoas perderam empregos, empresas fecham a todo instante, e indivíduos sem renda, não podem comprar — ou são forçados a mudar hábitos de consumo, com cortes que vão desde supérfluos a itens essenciais. Outros, vendo-se forçados a se manterem em isolamento, deixaram de despender com serviços como restaurantes, cinemas, viagens, hotéis, etc., que restaram drasticamente reduzidos a centros de consumo como shopping center, mercados, entre outros.

Problemas de uns, solução para outros. O momento nunca foi tão propício a startups e a apps de delivery, já que a vida tomou o rumo do contato digital. E disso, os que ainda resistiam à venda pela internet, ou se adaptavam, ou poderiam fechar as portas.

Medidas sanitárias empregadas a nível mundial impuseram restrições de locomoção de pessoas como forma de conter a disseminação da Covid-19. Embora não tendo potencial tão letal quanto outras patologias como câncer, o fato é que a sua rápida disseminação, não acompanhada da velocidade da vacinação (tida como a melhor solução preventiva), gerou um congestionamento grave em hospitais e UTIs, de forma que muitos indivíduos passaram a ir a óbito em face de não atendimento. Infelizmente, passado um ano de início de pandemia, decretada em março de 2020, o Brasil chega em 2021 com um número maior de mortos ao dia e com muito mais deficiências hospitalares no comparativo com o ano passado. E a economia, por sua vez, também está mais debilitada, carregando a ressaca advinda de 2020.

E a questão que se coloca é o que se pode consumir em um cenário destes? O uso frequente dos meios digitais tem ampliado golpes de internet [1], com subtração de senhas e perfis — considerando-se que as principais redes sociais pertencem a uma ou pouquíssimas empresas, que fornecem a clientes a movimentação do usuário da plataforma pela internet.

No Brasil, desde 2020, resta vigente a Lei nº 13.709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados, um perfil vasto de medidas a serem adotadas por aqueles que guardam dados variados de pessoas, sob pena de punições diversas. Trata-se de uma norma que, tal como ocorre com países europeus, coloca o Brasil no século 21 em termos de proteção de dados, especialmente no meio digital. Ainda assim, é uma lei recente, objeto de debates e adaptações, e que, como todo norma de impacto maior, demora a ser assimilada pela sociedade. O meio digital pode reforçar a vulnerabilidade do consumidor? Provavelmente sim, se não houver regulação e fiscalização do seu uso.

Mas, a questão que se apresenta é analisar até que ponto medidas de lockdown, quarentena e restrições de circulação podem afetar o consumidor, registrando-se que mesmo o indivíduo mais saudável do ponto de vista psicológico, ainda assim desenvolve sofrimentos variados diante do cenário presente [2], desde ansiedade e medo de contrair o vírus, até a depressão em face do distanciamento de parentes e amigos. Isso sem contar que tenha convivido com a perda de parentes ou amigos para a Covid-19, ou ele próprio  passado por necessidade de internação, intubação e tratamentos penosos aplicados contra o vírus.

Como bem acentua Miragem, vivemos um momento propício ao "consumo de vingança" (revenge spending), aquele praticado como ato de recompensa emocional por sacrifícios de um período de perdas, sendo que este é um cenário bastante visível no caso da pandemia da Covid-19 [3].

Inclusive, o distanciamento social tem ampliado o consumo de determinados bens, e alguns lesivos, como é o caso das bebidas alcóolicas. Há registros de pesquisas realizadas com indivíduos durante a pandemia que argumentam, em face da solidão e a consequente depressão, dobraram o recurso ao álcool [4]. Ou seja, o mundo pós-covid será um momento de necessário tratamento de traumas psicológicos diversos, problemas decorrentes de má- alimentação, falta de exercícios, ampliando doenças cardíacas, câncer, problemas gástricos entre outros, e de recuperação de empregos e renda, como forma de enfrentamento da pobreza.

Recentemente, no Estado do Rio Grande do Sul (Brasil), o Governador editou o Decreto nº 55.782/21 [5], impondo a proibição de vendas de produtos não essenciais em mercados, com vista as restringir a aglomeração de indivíduos, fazendo com que somente se dirijam a estes estabelecimentos aqueles que pretendem adquirir basicamente alimentos e bebidas, com algumas outras exceções, além de limitar o horário de funcionamento.

Importante registrar também que as suspensões de atividade em face da Covid-19 reduziram matérias-primas à indústria, fazendo com que muitos produtos faltem ao consumo [6]. Ou seja, vivemos tempos em que o sujeito não consegue comprar tudo o que quer, ou, se assim resolver insistir, mesmo tendo recursos, somente lhe restará o mercado digital, que talvez não lhe supra tudo.

A vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo é um dos indicativos da necessidade de sua proteção, exercida principalmente por meio de intervenção estatal nas relações de consumo. E, ao menos nesse ainda início de século 21, o ser humano, e por decorrência natural, o consumidor nunca foi tão hipervulnerável. Isso impõe que mecanismos criados em épocas de tragédias humanas, como a Teoria da Imprevisão, normatizada na França ao final da Primeira Guerra Mundial, através da Lei Falliot, e hoje melhorados e atualizados no Código de Defesa do Consumidor (artigo 6º, inciso V), sejam colocados em prática. Assim, deve ser permitida a revisão contratual de cenários negociais que tenham se tornado sobrecarga ao sujeito frágil do mercado, viabilizando a redução de suas prestações, ou mediante moratórias, expandindo o tempo de pagamento sem a inclusão de juros, correção monetária, multas, etc. Sob essa ótica, Claudia Lima Marques, Káren Rick Danilevicz Bertoncello e Clarissa Costa de Lima afirmam ser do tipo força maior "agravada ainda pelas medidas de 'isolamento social', com a parada do comércio, doença em massa e fragilidade dos empregos, especialmente, os informais, liberais e autônomos" [7]. O entendimento de Priscilla Chater é de que "deve haver um impedimento real e comprovado que justifique a impossibilidade de cumprimento do dever contratualmente assumido" [8]. Essa é a exata situação do trabalhador que se encontra impossibilitado de auferir renda em razão do isolamento social que, na sua figura de consumidor, encontra uma impossibilidade justificada para o cumprimento do dever assumido de contraprestação de serviços.

Medidas como ampliação de linhas de crédito consignado e majoração do percentual de margem consignável [9], como anunciado recentemente, têm o condão de endividar ainda mais parcela da população, como idosos. Um sujeito que não busca mútuo para investir em produção com retorno econômico, é um consumidor de crédito cujo resultado é a convivência com pagamentos de juros durante longo período. Num contexto destes, ninguém supera a pobreza se endividando mais. Por outro lado, mecanismos essenciais, como a aprovação do Projeto de Lei nº 3.515/15, de contenção do superendividamento, gerando responsabilização pelo mal fornecimento de crédito, não restam incorporados por falta de interesse político. Nesse sentido, esta lacuna legislativa deixa o Brasil atrasado, em descompasso com países de primeiro mundo, que já detêm meios de contenção de superendividamento. A respeito desta situação, Cláudia Lima Marques ensina: "Boa-fé: em regra, quando contrata-se o crédito ou adquire-se o produto ou o serviço em prestações o consumidor tem condições de honrar sua dívida. Trata-se de uma boa-fé contratual que é sempre presumida. Em todos os países que possuem leis sobre a prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores, aquele que é protegido é sempre o consumidor pessoa física de boa-fé contratual. A boa-fé é a base do combate ao superendividamento dos consumidores." [10].

Em épocas de crise, não se pode ser contemplativo exclusivamente com grandes grupos econômicos, onerando ainda mais a população. Justiça é algo que somente floresce de equilíbrios. Se setores da economia restam beneficiados por verdadeiras moratórias legitimadas pelo Parlamento e Poder Executivo, essa mesma principiologia deve também beneficiar consumidores que estejam em manifesta dificuldade e de honrar compromissos em face ressaca econômica do isolamento imposto pelo Covid-19. Como exemplo de medidas protetivas de setores atingidos pelos efeitos da pandemia, tem-se a Lei nº14.034/20, focada no transporte aéreo, e a Lei nº14.046/20, voltadas aos serviços turísticos, eventos e de entretenimento em geral.

Encerra-se a presente narrativa com os seguintes questionamentos: quão livre é o consumidor diante do mercado de consumo da pandemia Covid-19? Estaríamos diante de um novo paradigma de vulnerabilidade? As respostas a tais indagações vão medir o nível de interferência estatal que deve ser aplicada na proteção do sujeito frágil do mercado no atual cenário pandêmico. Preservar o consumidor é crucial para a manutenção do mercado de consumo, o qual não funciona sem seu principal player.

 


[7] MARQUES, Claudia Lima; BERTONCELLO, Káren Rick Danilevicz; LIMA, Clarissa Costa de. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da Pandemia de COVID-19: Pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor. vol. 129/2020, Maio –Jun, 2020DTR20206377, online, p. 2. Disponível em: <https://revistadedireitodoconsumidor.emnuvens.com.br/rdc/article/view/1039/908> Acesso em: 18/3/2021.

[8] CHATER, Priscilla. Coronavírus e força maior: o que diz o seu contrato? Opinião. Revista Consultor Jurídico. p. 19 de março de 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-19/priscilla-chater-coronavirus-forca-maior-contrato> Acesso em: 18/3/2021.

[10] MARQUES, Claudia Lima. Algumas perguntas e resposta s sobre prevenção e tratamento do superendividamento dos consumidores pessoas físicas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, a. 19, n. 75, p. 23, jul-set. 2010

Autores

  • é advogado, doutor e mestre em Direito pela UFRGS, professor de Direito da PUC-RS, secretário-geral da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/RS, membro da Câmara de Saúde Suplementar da Agência Nacional de Saúde Suplementar e diretor financeiro do Instituo Brasilcon.

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