Opinião

Da proteção ao bem de família à restrição de direitos do devedor

Autor

  • Wesley Bento

    é procurador do Distrito Federal advogado sócio do Escritório Bento Muniz em Brasília pós-graduado pela PUC-SP MBA em Parcerias Público-Privadas pela Fesp/SP e mestrando em Direito Constitucional pelo IDP.

24 de março de 2021, 6h33

Conta-nos a história que por volta de 326 a.C., com o advento daquela que ficou conhecida como Lex Poetelia Papiria, foi abolido o nexum na República Romana, que era uma espécie de acordo mediante o qual o devedor dava em garantia do crédito a escravidão de si mesmo ou de terceiro sobre o qual tinha autoridade [1]. Esse registro serve bem a demonstrar ser de longa data o conflito existente entre a necessidade e o interesse público no cumprimento das obrigações e, de outro lado, um mínimo de civilidade nos meios empregados para obter essa satisfação.

Uma breve atualização dos valores em conflito implicaria dizer que hoje a tensão seria entre a busca de efetividade da jurisdição e a proteção da dignidade da pessoa humana, ambos com lugar de destaque na Constituição Federal vigente e valores que, ao longo do tempo, vêm sendo ponderados pela legislação, pela doutrina e pela jurisprudência, em um movimento pendular que ora prestigia uma em detrimento da outra, a depender das circunstâncias históricas, sociais e econômicas.

A Lei nº 8.009/1990 é um marco nesse contexto de proteção ao devedor, quando instituiu um espaço mínimo de preservação de seu patrimônio, elegendo inequivocamente a dignidade em prejuízo do cumprimento das obrigações, ao resguardar da penhora o imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam. A impenhorabilidade não se restringiu à construção em si, mas contemplou ainda o imóvel sobre o qual está edificada, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis, desde que quitados, excluídos veículos, obras de arte e adornos suntuosos.

Ainda que tenha constituído um relevante ponto no histórico de proteção ao devedor, antes dessa lei, o Código de Processo Civil (CPC) de 1973 já encerrava uma longa lista de bens absolutamente impenhoráveis, em tradição que remonta ao CPC de 1939 (artigo 942).

O advento do CPC de 2015 não altera substancialmente o rol de bens impenhoráveis [2], mas inova de forma contundente ao oferecer ao juiz se valer da atipicidade de técnicas executivas em obrigações de natureza pecuniária, como consta no  artigo 139, inciso IV, no sentido de que pode o magistrado "determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária". E com base nesse dispositivo, juízes e tribunais passaram a adotar graves restrições a devedores inadimplentes, como a retenção de seu passaporte, de sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH), de seus cartões de crédito e até proibir sua participação em licitações públicas, tudo como forma de convencê-lo a pagar o débito exequendo.

Nesse sentido, o próprio Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão, no Recurso Especial nº 1.8654.289-PB, considerando possível a retenção da CNH do devedor recalcitrante, ainda que no caso concreto não tenha determinado a diretamente a medida por lhe faltar elementos fáticos a serem examinados pelo tribunal de origem.

Nesse contexto de permanente tensão e ao tempo em que a questão é colocada em debate nacional, inclusive em pauta no Supremo Tribunal Federal (ADI 5941), é interessante avaliar a evolução da jurisprudência do STJ em torno do aparente conflito entre a efetividade e a dignidade. Ao longo dos anos, as questões envolvendo a impenhorabilidade de bens e os limites nas medidas atípicas contra o devedor encontraram no STJ o campo largo para discussão, considerando que o STF possui uma pletora de precedentes afirmando se tratar de matéria infraconstitucional ou que envolveria reexame de provas.  

A investigação dos casos submetidos ao longo dos anos ao STJ deixa entrever aspectos curiosos da evolução no tempo, por exemplo sobre o que se veio a considerar como "adornos suntuosos" ou como objetos de luxo que escapassem da proteção conferida pela lei. Esses conceitos variam não apenas pelo momento histórico da sociedade, mas pela experiência própria dos julgadores.

Com o amadurecimento da jurisprudência, a distinção feita pelo tribunal passou a ser entre o supérfluo penhorável e os "equipamentos que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o indispensável para fazê-la habitável" [3], os quais mereceriam a chancela de impenhoráveis.

Por exemplo, para a 3ª Turma do Tribunal, no final do século passado e início do atual, na análise de recursos especiais, televisão em cores, congelador e videocassete eram bens insuscetíveis de penhora, mas desde que limitados a um único aparelho. Também na análise de recursos que chegavam à Corte, a 2ª Turma reputava aparelho de ar condicionado dispensável para a manutenção da vida digna das pessoas e, portanto, penhorável, enquanto a 4ª Turma considerou tuteláveis pela norma aparelho de som, forno micro-ondas, computador, impressora, jogo de sofá, freezer, máquinas de lavar roupa e de lavar louça e teclado musical, mesa de centro, passadeira, rádio toca-fitas e gravador; mas excluía videocassete, tapetes, quadros e painel de parede. Com a popularização desses itens domésticos, as discussões a esse respeito minguaram na Corte.

No julgamento de diversos casos sobre o tema, o Tribunal da Cidadania ainda abrigou um conceito amplo de família ao considerar protegido pela norma o imóvel pertencente a pessoas solteiras. Admitiu, ao tratar das hipóteses de impenhorabilidade absoluta, se tratar de questão de ordem pública, podendo ser alegada a qualquer tempo e mediante simples requerimento, não se sujeitando a preclusão, exceto a consumativa. Afastou da penhora sobre o único imóvel familiar, ainda que esteja alugado a terceiros, cedido a familiares ou até desocupado por motivo alheio à vontade do devedor; e desonerou o devedor do ônus de provar ser a sua única propriedade. A jurisprudência chega a proteger imóvel de propriedade de pessoa jurídica, desde que seja pequeno empreendimento familiar, cujos sócios são seus integrantes a sua sede se confunde com a moradia deles.

A Corte também se manteve firme em afastar a penhora do único imóvel residencial da família em razão de seu alto padrão ou valor de mercado, com a única ressalva de imóveis que podem ser desmembrados em unidades autônomas ou quando houver mais de um imóvel destinado à residência familiar, prestigiando uma interpretação estrita da Lei nº 8.009/90 [4].

Apesar de o STJ, em grande parte de suas decisões, ter preferido conferir interpretação bastante literal aos dispositivos legais sobre impenhorabilidade, pontualmente já vinha corrigindo distorções graves que a literalidade poderia acarretar. No Recurso Especial nº 1440786/SP, o Tribunal se colocou diante da seguinte situação de fato: o proprietário de único imóvel residencial prometeu vendê-lo a terceiro, recebeu o sinal, mas não deu sequência ao contrato, restando condenado a restituir o valor recebido. O tribunal de origem manteve a impenhorabilidade do imóvel ante a falta de previsão do caso no estrito rol de exceções, mas a decisão foi revertida no STJ.

A jurisprudência da Corte se manteve por longo tempo prestigiando a vedação absoluta da penhora de salários e equivalentes, apenas com as ressalvas expressamente consignadas na lei, com exceções muito pontuais que admitiram manter decisões de origem que determinaram penhora de percentual baixo do vencimento dos devedores.

Outra mudança de destaque veio sobre a nova interpretação dada pela Corte sobre a impenhorabilidade de imóvel oferecido voluntariamente pela entidade familiar como garantia de dívida de sociedade empresária. O STJ construiu e manteve jurisprudência que tungava a segurança jurídica de contratos, ao assentar que a exceção da impenhorabilidade prevista no artigo 3º, V, da Lei nº 8.009/90, "não se aplica à hipótese em que a hipoteca foi dada para garantia de empréstimo contraído pela empresa, da qual é sócio o titular do bem, onde reside sua família" porque presumia que a garantia hipotecária não teria sido constituída em benefício da família.

No entanto, a Corte acabou por alterar esse posicionamento e impor ao devedor um ônus probatório quase impossível, ao assentar pela sua Segunda Seção que "o bem de família é penhorável, quando os únicos sócios da empresa devedora são os titulares do imóvel hipotecado, sendo ônus dos proprietários a demonstração de que a família não se beneficiou dos valores auferidos" [5], impondo um revés considerável aos titulares de imóveis sujeitos à excussão por dívida de terceiros, em prol da segurança jurídica e da efetividade do processo.

É possível observar que o STJ vem paulatinamente superando uma abordagem meramente positivista no julgamento de casos envolvendo a temática da impenhorabilidade e de outras medidas que busquem a efetividade da jurisdição, com apego extremado à letra da lei, para adotar um paradigma pós-positivista. Há, ainda, uma tendência da Corte a preservar um núcleo essencial da dignidade da pessoa humana, mas assegurar a efetividade do processo, com a revisão de antigos posicionamentos que acarretavam insegurança jurídica nos contratos e prestigiavam, em demasia, a figura do devedor em detrimento do cumprimento das obrigações.

E independentemente da decisão que o STF venha a adotar no julgamento da ADI 5941, esses dados já são relevantes para justificar um olhar mais atento no evoluir da jurisprudência do STJ em matérias relacionas à execução, especialmente sobre as regras de impenhorabilidade e as medidas atípicas, ante a forte convicção demonstrada nos julgados em se emprestar maior efetividade ao processo e se abandonar fórmulas pré-concebidas, o que tende a possivelmente alterar, no futuro, outros entendimentos da Corte sobre a matéria.  

 

[1] ALVES, José Carlos Moreia. Direito Romano. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 382

[2]  Artigo 833. São impenhoráveis:

a – Os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;

b – Os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;

c – Os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;

d – Os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º ;

e – Os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;

f – O seguro de vida;

g – Os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;

h – A pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

i – Os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;

j – A quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

k – Os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;

l – Os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

[3] RESp 131645/MG, rel. min. Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª Turma, DJ 22/6/1998

[4] "Além da lei 8009/90 não ter previsto ressalva ou regime jurídico distinto em razão  do valor econômico do bem, questões afetas ao que é considerado luxo, grandiosidade, alto valor estão no campo nebuloso da subjetividade e da ausência de parâmetro legal ou margem de valoração". REsp 1351571/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 11/11/2016

[5] EAREsp 848.498/PR, rel. ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe de 7/6/2018

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    é advogado, procurador do Distrito Federal, sócio do escritório Bento Muniz Advocacia, pós-graduado pela PUC-SP e mestrando em Direito Constitucional no IDP.

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