Trabalho Contemporâneo

A ideologia na área trabalhista: os extremistas do "bem" e a necessidade de inimigos imaginários

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23 de março de 2021, 8h01

Spacca
Ano passado publiquei o texto abaixo no jornal Valor Econômico, refletindo sobre o ativismo judicial e como os magistrados trabalhistas usam as arguições de inconstitucionalidades para superar as regras impostas pelo legislador.  Após a enorme repercussão do artigo aqui publicado quanto à dispensa em massa de empregados, em crítica a decisão judicial no caso MPT e Churrascaria Fogo de Chão, vale voltar à discussão e tecer algumas considerações.

"É muito comum na área trabalhista encontrarmos textos defendendo a inconstitucionalidade de leis que alteram o conteúdo tradicional do Direito e do Processo do Trabalho. 

Há um padrão de pensamento, que chamo de 'cultura trabalhista', no sentido de que qualquer nova escolha do legislador, que possa em tese afetar os direitos e procedimentos estabelecidos, produzirá fatalmente a precarização das relações de trabalho, com aumento da desigualdade social e o possível fim da Justiça do Trabalho.

Fica clara uma cultura de medo, como se qualquer tentativa de nova abordagem do fenômeno da exploração capitalista do trabalho humano, com novas formas de regulamentação, fosse produzir, inexoravelmente, o retorno à era da escravidão ou, ao menos, do trabalho em condições degradantes.  E não estou exagerando.

Óbvio que a total desregulamentação da área trabalhista geraria um retrocesso.  Evidente que deixarmos atores privados, com desiguais potencialidades, absolutamente livres para pactuar, produziria um desequilíbrio contratual.  Tudo isso já aconteceu na história e não há motivos para supor que não aconteceria novamente.

O atual debate sobre as mudanças na legislação trabalhista, que se acirrou em 2017 com a Lei 13.467, conhecida como 'Reforma Trabalhista', demonstrou, entretanto, não apenas a cultura acima mencionada, como expôs a classe jurídica na sua forma de interpretar, buscando alternativas para não aplicação das novas escolhas do legislador com argumentos de inconstitucionalidades. Chegou-se até a produzir evento jurídico com enunciados que negavam constitucionalidade integral à nova lei, pasmem.

Claro que há passagens duvidosas no texto legal citado, a bem da verdade em quase todos há, mas ficou muito claro que a comunidade jurídica, em grande parte, exacerbou o argumento da inconstitucionalidade simplesmente por não concordar com as escolhas do legislador, esperando que, em juízo, pudesse-se obter supostas melhores escolhas pelo juiz. Como se o juiz tivesse o poder de alterar o programa legislativo validamente criado pelo Poder competente.

Uma nova lei, para ser inconstitucional, deve agredir a Constituição da República de forma irreconciliável, ou seja, de forma que não seja possível encontrar congruência entre a norma fundamental e o novo texto legal.  Muitas das escolhas feitas pelo legislador trabalhista podem não ter agradado aos especialistas, podem inclusive não ter sido as melhores escolhas, mas obviamente isso não torna a lei inconstitucional.

Utilizar de argumentos abstratos, calcados em princípios, que conhecidamente possuem baixa densidade normativa, conceitos abertos que permitem múltiplas interpretações, é buscar uma justificativa para desqualificar a escolha legítima do legislador, politizando a questão fora da instituição própria para tal, o Congresso Nacional, que produz as normas em Direito e Processo do Trabalho.

Permitir e, pior, querer que um juiz se torne ativista para ignorar o Poder Legislativo e produzir as supostas melhores escolhas é afrontar o próprio regime democrático, que preconiza a separação dos Poderes, criando-se uma figura extremamente perigosa e arbitrária, o juiz herói.

Saber diferenciar inconstitucionalidades de discordâncias das escolhas do legislador é tarefa essencial dos juristas e magistrados, para preservação do sistema e viabilização de mudanças que podem, no futuro, levar a melhores condições de trabalho, pois não se pode imaginar que a área trabalhista esteja no nirvana da legislação, em estado de sublime perfeição.

Exemplo atual, em que a polarização novamente ganha corpo, e já com lados bem marcados, é o debate sobre uma possível regulamentação do trabalho via plataformas digitais.  Os defensores reconhecem uma nova forma de trabalhar que não se amolda ao modelo subordinado preconizado pela CLT, enquanto o lado oposto entende que tais trabalhadores devem receber os mesmos direitos trabalhistas clássicos e, caso venha uma nova regulamentação, esta seria inconstitucional por ferir o princípio da isonomia, diante do tratamento diferenciado entre seres humanos trabalhadores.

Mais uma vez, portanto, já se descortina o ativismo, mas agora para tentar impedir uma nova regulamentação, sob a cultura de que qualquer lei diferente da CLT com direitos “menores” levaria ao fim da proteção trabalhista, precarização e, por último, das instituições trabalhistas.  A salvação?  Inconstitucionalidade, pois a Constituição ainda não foi revogada.

Este tipo de conduta, bastante generalizada no meio trabalhista, dificulta a evolução da proteção social necessária a quem gasta energia de trabalho em novas modalidades, deixando à míngua milhões de trabalhadores com a tênue esperança que se conseguir, a fórceps, e através do Poder Judiciário, o manto celetista para solução de todos os problemas. Pura ilusão.

Esquecem os ativistas que enquanto perdurar essa discussão, que pode levar década, os novos trabalhadores digitais não conseguirão qualquer tipo de proteção; que as modificações na forma de trabalhar são cada vez mais rápidas, sendo possível até não existir esta modalidade de trabalho ao fim da discussão jurisprudencial; e, finalmente, que cabe à sociedade, através dos representantes por ela eleitos, em cada época, deliberar sobre as escolhas acerca da regulamentação do trabalho humano, um verdadeiro direito de cada geração.

Enquanto discutimos teoricamente e rebuscamos os argumentos com novas hipóteses, princípios e argumentos, a vida simplesmente passa.  E chegam as necessidades, as angústias e o sofrimento.  Se bradar em teclados teses de inconstitucionalidades resolvesse o problema da sociedade, a área trabalhista estaria em estado de perfeição.  Que tenhamos coragem de reconhecer nossos problemas, que deixemos a politização do direito para os atores próprios, que sigamos propositivos e abertos para mudanças.  Que sejamos, nós do Direito, eminentemente técnicos, deixando a política para quem dela vive."

Este apelo final obviamente não foi atendido.  Após a crítica ao caso Fogo de Chão, ficou clara a tentativa de superar os argumentos técnicos efetuados através de artigo acadêmico com alegações levianas e políticas, atacando o mensageiro, como se a mensagem pudesse ser calada.

Passados meses da publicação original deste artigo, o que se percebe é apenas que radicais, de qualquer sentido, continuam a bradar suas ideias como verdade, a fim de se sentirem satisfeitos consigo mesmos, ainda mais aqueles cujo salário está garantido todo mês pelo Estado. E para que os radicais possam fazer algum sentido, precisam criar inimigos, pois qualquer voz sensata, que fala e critica o óbvio, dentro das regras da ética e do ordenamento jurídico, constitui um novo perigo a ser sufocado. 

Pessoas moderadas passam, portanto, a ser um elemento de desestabilização da guerra ideológica e precisam ser rotuladas em alguns dos lados do combate. Estranho é que defender que o juiz em regra deve cumprir a lei, que o ativismo judicial gera insegurança jurídica e deve ser combatido transforma o mensageiro em radical ideológico de direita. Realmente tempos estranhos os que vivemos. Talvez a única forma de entendermos tudo isso seja nos socorrendo a um famoso grupo cômico, o Monte Python, que há décadas (1987) conseguiu de forma magistral sintetizar a questão.  Assistam ao vídeo e reflitam, ao menos dá para extrair alguma risada da tragédia jurídica que vivemos.

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