Paradoxo da Corte

Interpretação contra legem como desnecessária fonte de recursos

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

23 de março de 2021, 8h03

Afirma-se correntemente que os advogados conspiram contra o princípio da duração razoável do processo, visto que interpõem muitos recursos infundados e, ainda, contra decisões que não admitem impugnação.

A esse respeito, no entanto, importa observar que a realidade da praxe forense revela um sem número de atos decisórios que, paradoxalmente, afrontam o texto legal, implicativos da imediata interposição de recurso, diante do potencial dano irreparável que causam ao litigante que tem razão.

E isso decorre, não raro, pela interpretação visceralmente equivocada que os tribunais insistem em fazer ao arrepio da literalidade da lei, dando uma solução inovadora que não se sustenta.

Dispõe, com todas as letras, o artigo 4º, inciso II, parágrafo 2º, da Lei estadual nº 11.608/2003:

"O recolhimento da taxa judiciária será feito da seguinte forma:
II – 4% (quatro por cento) sobre o valor da causa, nos termos do artigo 511 do Código de Processo Civil [artigo 1.007 do CPC/2015], como preparo da apelação e do recurso adesivo, ou, nos processos de competência originária do Tribunal, como preparo dos embargos infringentes…
2º – Nas hipóteses de pedido condenatório, o valor do preparo a que se refere o inciso II, será calculado sobre o valor fixado na sentença, se for líquido, ou, se ilíquido, sobre o valor fixado equitativamente para esse fim, pelo MM. Juiz de Direito, de modo a viabilizar o acesso à Justiça, observado o disposto no § 1°".

Assim, por exemplo, no âmbito da justiça do Estado de São Paulo, numa ação de procedimento comum, se a sentença julgou procedente o pedido, impondo ao réu a condenação de R$ 200 mil, a título de reparação de dano moral, caso a parte vencedora pretenda interpor recurso de apelação, visando à elevação do valor fixado na sentença, terá de recolher, à guisa de preparo, o equivalente a 4% da condenação, que soma a quantia de R$ 8 mil.

Dúvida não há, em tais hipóteses, quanto à exegese da regra do parágrafo segundo acima transcrito, vale dizer: "…Nas hipóteses de pedido condenatório, o valor do preparo a que se refere o inciso II, será calculado sobre o valor fixado na sentença, se for líquido…".

A despeito da meridiana clareza desse texto legal, os advogados têm sofrido verdadeira incompreensão, quanto a esse entendimento, nas situações em que o recurso é interposto pelo patrono da parte vencedora, abrangente apenas do capítulo da sentença que fixou a verba honorária de sucumbência.

Diante da legitimidade que lhe é outorgada pelo artigo 23 do Estatuto da Advocacia ("Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor"), o advogado ou a sociedade de advogados por ele integrada tem o direito autônomo de recorrer, em seu próprio nome (ou, até mesmo em nome de seu constituinte), do capítulo da sentença relativo à condenação em honorários.

Desse modo, se naquela mesma demanda, acima referenciada apenas como exemplo, o patrono do autor desejar impugnar a sentença na parte em que fixou os honorários em R$ 5 mil, aquém, portanto, da disposto no artigo 85, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil, terá o ônus de recolher, como preparo, R$ 200, vale dizer, 4% sobre o valor líquido da condenação de R$ 5 mil.

Tal cálculo, na verdade, é bem simples, pouco importando a pretensão almejada pelo advogado apelante, no que concerne à majoração dos honorários. A rigor, o apelante, nessas ocasiões, formula pedido, requerendo, em regra, o provimento da apelação para que seja aplicado, ao menos, o parâmetro mínimo (10%) estabelecido no já mencionado parágrafo 2º do artigo 85 do diploma processual.

É essa de fato a orientação que tem sido sufragada nos domínios do Tribunal de Justiça de São Paulo, como se infere, e. g., de recente acórdão da 15ª Câmara de Direito Privado, no julgamento do recurso de Apelação nº 1003592-77.2017.8.26.0539, relatado pelo magistrado Jairo Brazil Fontes Oliveira, in verbis:

"Afasto a preliminar de insuficiência do preparo.
Isso porque, por se cuidar de apelo que impugna unicamente a questão relativa à condenação às verbas de sucumbência, razoável que o percentual de 4% previsto na Lei Estadual nº 11.608/03 incida sobre o montante a que foi condenado o apelante a título de honorários advocatícios".

Em senso análogo, aresto da 30ª Câmara de Direito Privado, da relatoria do desembargador Lino Machado, no Agravo Interno nº 1079272-90.2018.8.26.0100, assentou que, textual:

"No caso do preparo de recursos interpostos na Justiça Estadual de São Paulo, seu fato gerador é a interposição do recurso (Lei Estadual nº 11.608/03, artigo 1º), sua base de cálculo é o valor da causa (Lei Estadual nº 11.608/03, artigo 4º, II) ou o valor fixado na sentença em caso de pedido condenatório (Lei Estadual nº. 11.608/03, artigo 4º, § 2º).
No caso de insurgência quanto aos honorários sucumbenciais, correto o recolhimento do preparo com base no quantum fixado em sentença neste título".

Em suma: a lei estadual de custas judiciais, como se observa, não traça qualquer distinção entre as condenações líquidas para incidência da alíquota de 4% relativa ao preparo do recurso de apelação.

Cabendo invocar o velho e sábio aforismo, ubi lex no distinguit nec nos distinguere debemus, as custas de preparo devem ser recolhidas sobre o valor líquido da condenação, seja ela decorrente de indenização, de qualquer natureza, e, assim, também, de honorários advocatícios de sucumbência.

Entre muitos precedentes, bem é de ver também que a 9ª Câmara de Direito Privado, ao ensejo do julgamento do Agravo de Instrumento nº 0052925-90.2011.8.26.0000, com voto condutor do desembargador José Luiz Gavião de Almeida, há quase uma década já sufragava o entendimento majoritário que prevalece no Tribunal de Justiça bandeirante:

"A pretensão do legislador foi não deixar o preparo vinculado, exclusivamente, ao valor da causa. Por isso garante que o índice tomado pode ser o valor da condenação, se líquido.
O valor na condenação a que se refere o capítulo da sentença que está sendo combatido é dois mil reais, qual seja, o valor da verba honorária. Esse o valor que deve servir ao cálculo do preparo sobre o valor de qualquer condenação líquida…".

Não obstante, apesar da singeleza da questão, tendência minoritária da mesma corte paulista, continua a impor ao advogado recorrente o recolhimento, como preparo, do percentual de 4% sobre o proveito econômico que ele pretende no recurso de apelação.

Não é difícil constatar que há, ao menos, dois equívocos de percepção nesta linha de pensamento, a saber: 1) em primeiro lugar, confunde-se claramente o proveito econômico buscado pelo autor, na petição inicial, para fins de atribuir o correto valor à causa, com a pretensão do advogado à majoração da verba honorária, no âmbito do recurso de apelação, cujo pedido, geralmente (mais ainda que não fosse), desponta ilíquido; e, ademais, 2) como acima exposto, a lei não autoriza tal esdrúxula interpretação, aliás, contra a mens legislatoris.

E, assim sendo, além de obstar ao advogado recorrente o acesso à plenitude da tutela jurisdicional, evidencia-se que tal posicionamento, contrário ao disposto no indigitado artigo 4º, inciso II, parágrafo 2º, do Estatuto da Advocacia, acaba sendo uma fonte judicial absolutamente desnecessária de interposição de recursos, em detrimento do exame mais tempestivo de muitas outras impugnações sobre questões de maior relevância!

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