Opinião

Gastos tributários e PEC Emergencial: continuísmo ou oportunidade?

Autor

  • Ricardo Castagna

    é advogado pós-doutorando e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da USP mestre pela PUC/SP pesquisador visitante do Max-Planck Institute for Tax Law and Public Finance em Munique (Alemanha) e professor de Direito Tributário do CEU Law School.

23 de março de 2021, 21h16

A gestão pública das renúncias fiscais decorrentes da instituição de gastos tributários, nas três esferas de governo, é caracterizada por reduzidos níveis de transparência, planejamento, avaliação ex ante de políticas públicas e de controles ex post de eficácia e eficiência. São raros os exemplos de gestão governamental adequada para aferir, no mínimo, os efeitos socioeconômicos alcançados com o gasto tributário, bem com sua comparação com o planejamento que lhe antecedeu.

Na tentativa de estabelecer ações e parâmetros para enfrentar esta realidade, o artigo 4º da EC 109, de 15/3/2021 (originada na PEC 186/2019, a "PEC Emergencial"), prevê algumas medidas que objetivam proporcionar melhorias na governança pública das renúncias de receitas tributárias no âmbito da União Federal. Em que pese as metas almejadas pelas novas normas constitucionais, é preciso reconhecer que as medidas selecionadas para as alcançar variam desde a clara insuficiência, em alguns casos, para questões mais graves de duvidosa constitucionalidade.

Inicia-se pelo caput do artigo 4º da EC 109, que exige do presidente da República o encaminhamento, ao Congresso Nacional, em até seis meses, de plano de redução gradual de "incentivos e benefícios federais de natureza tributária", acompanhado das correspondentes proposições legislativas e das estimativas dos respectivos impactos orçamentários e financeiros.

Num primeiro plano, é de se notar que não há previsão de qualquer penalidade para a hipótese de descumprimento da aludida obrigação por parte do presidente. E mesmo que seja encaminhado pelo chefe do Poder Executivo, o plano deverá naturalmente passar pela deliberação do Congresso, onde estará sujeito a toda sorte de negociações, e até mesmo à possível rejeição. Portanto, trata-se de norma de duvidosa utilidade, que apenas reflete deveres de governança pública já amplamente exigidos na CF/88, mas que jamais foram adequadamente observados.

O §1º do mesmo dispositivo traça parâmetros de redução gradual dos gastos tributários vigentes na data de promulgação a aludida EC 109: para o ano em que encaminhado o plano, uma redução de 10%; e para os oito anos subsequentes, uma redução em montante total que não ultrapasse 2% do PIB.

A norma em questão novamente esquiva-se de exigir qualquer espécie de análise de eficácia e eficiência dos gastos tributários para a escolha daqueles que serão eliminados ou reduzidos. Funda-se exclusivamente em critérios numéricos, cabendo ao Executivo propor uma redução gradual das renúncias de receita segundo parâmetros que não necessariamente se referem a uma adequada governança pública.

De igual modo, não há exigência para avaliação dos impactos socioeconômicos decorrentes da redução dos gastos tributários, que serão inevitáveis. Permite-se, assim, a perpetuação das práticas atualmente adotadas, nas quais a instituição, majoração, prorrogação, redução ou extinção de gastos tributários possuem baixíssimo nível de transparência e gestão.

O próprio parâmetro numérico eleito pela norma constitucional é de difícil aplicação, haja vista que a RFB utiliza, na mensuração das renúncias de receitas tributárias da União, o critério da perda de arrecadação (Revenue Forgone Method), o mais difundido entre os países integrantes da OCDE. Neste critério, é muito dificultoso para a RFB mensurar o ganho de arrecadação decorrente da redução ou extinção do gasto tributário, justamente pela impossibilidade de prever e avaliar as alterações comportamentais dos contribuintes frente à alteração ou eliminação do benefício.

O §2º do artigo em exame lista gastos tributários que ficaram a salvo do plano de redução gradual, a saber: o Simples Nacional, a imunidade de instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, aqueles relativos a programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, zonas francas e áreas de livre comércio, os benefícios relacionados à cesta básica e aqueles pertinentes à concessão de bolsas de estudo para estudantes de cursos superiores.

De plano, verifica-se que este dispositivo incorre em erro conceitual, ao considerar como "incentivos e benefícios federais de natureza tributária" determinadas provisões que não ostentam essa qualidade. Não se pode considerar inseridas nessa categoria as imunidades, tais como aquelas relativas a instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos (alínea "c" do inciso VI do caput do artigo 150 e § 7º do artigo 195, ambos da CF) e à zona franca de Manaus (artigo 40 do ADCT). Não há espaço para vislumbrar renúncia de receitas onde não há competência tributária, e por consequência, ainda que tenham função indutora, estas imunidades não encerram benefícios de natureza tributária. Não há como se renunciar a uma receita que não se pode obter, por expressa determinação constitucional.

Também o Simples Nacional, inserido na lista acima comentada, não se traduz em benefício ou incentivo de natureza tributária, mas em regime tributário alternativo, expressamente previsto no artigo 146, III, "d" da CF/88 (que o qualifica como "regime especial ou simplificado").

Superada a questão conceitual, não se vislumbra razão de interesse público para cristalizar determinados gastos tributários por oito anos, eximindo-os de uma adequada governança pública. Se não atenderem a seus objetivos constitucionais, não há dúvidas de que devem ser objeto de avaliação e controle, promovendo-se os ajustes porventura necessários, inclusive eventuais reduções (ponderando-se os limites possíveis e as exigências relativas a alterações de imunidades).

Passando-se ao §3º do artigo 4º da EC 109, tem-se disposição segundo a qual, para os efeitos desse artigo, considera-se incentivo ou benefício de natureza tributária "aquele assim definido na mais recente publicação do demonstrativo a que se refere o § 6º do artigo 165 da Constituição Federal". Em consequência, a norma cristalizou e constitucionalizou a definição inserta no último Demonstrativo de Gastos Tributários (DGT) elaborado pela RFB para acompanhar o PLOA 2021, como referência para a elaboração do plano de redução gradual de incentivos e benefícios federais de natureza tributária.

Do ponto de vista metodológico, no entanto, o DGT incorre em problemas conceituais graves, que comprometem de modo significativo os resultados obtidos.

Destaca-se que o DGT considera como gastos tributários determinadas provisões do sistema tributário que não se enquadram como tal. O item com maior representatividade no DGT é o Simples Nacional, que corresponde a 24,13% do total dos gastos mensurados. Como visto acima, trata-se de um regime tributário alternativo, sem característica de gasto tributário. O quarto item mais representativo está, ao menos em grande parte, na imunidade de entidades sem fins lucrativos de assistência social, equivalente a 9,5% do total apurado, que como visto antes, não representa renúncia de receitas tributárias, por se tratar de imunidade. O mesmo se aplica ao quinto item mais representativo, referente à ZFM, correspondente a 7,87% do total.

Somando-se apenas estes três itens, tem-se que ao menos 41,5% de todo o gasto tributário apurado no DGT é fruto de erro metodológico, pois se refere a disposições da lei tributária nas quais não há renúncia de receitas derivadas. Em termos de participação destes três itens no PIB projetado de 2021, temos um total de 1,48% (Simples Nacional: 0,96%, ZFM: 0,3% e entidades sem fins lucrativos: 0,22%).

Considerando que o mesmo DGT aponta gastos tributários equivalentes a 4,02% do PIB, e a meta do plano de redução prevista no artigo 4º da EC 109 é de limitar os gastos tributários em 2% do PIB em oito anos, temos que a meta total do período (considerando o DGT e o PIB de 2021) é de redução de gastos tributários em montante equivalente a 2,02% do PIB.

Ocorre que somente nos três itens acima mencionados (Simples Nacional, ZFM e imunidade de entidades assistenciais), decorrentes de erros de metodologia, já se tem 1,48% do PIB em desvios conceituais, de modo que apenas com a retirada destes itens do DGT já se cumpriria com 73% da meta estabelecida no artigo 4º da EC 109.

É preciso ainda salientar que as dificuldades inerentes à identificação e mensuração de gastos tributários faz com que o DGT sofra alterações conceituais constantes de um ano para outro, de forma que tornar permanentes as premissas utilizadas no atual DGT, para fins de um planejamento federal de oito anos, significa ignorar as mutações e evoluções constantes que marcam esta matéria.

Ademais, gastos tributários constituem modalidade de subvenção, matéria de direito financeiro disciplinada nos artigos 12, 17 e 18 da Lei n.º 4.320/64. As renúncias de receitas decorrentes de benefícios tributários, a seu turno, estão definidas no artigo 14, §1º da LRF, que traz um parâmetro normativo capaz de orientar a elaboração dos demonstrativos exigidos pelo artigo 165, §6º da CF. Desse modo, ao invés da eleição isolada do DGT para a elaboração das políticas de redução de gastos tributários, se mostraria mais adequado utilizar, em conjunto, os parâmetros estabelecidos nas leis complementares editadas com base no artigo 163 da CF/88.

Por derradeiro, o §4º do artigo 4º da EC 109 atribui à lei complementar a tarefa de estabelecer determinados parâmetros de governança pública de gastos tributários. Inicia-se no inciso I com a definição de "critérios objetivos, metas de desempenho e procedimentos para a concessão e a alteração de incentivo ou benefício de natureza tributária, financeira ou creditícia para pessoas jurídicas do qual decorra diminuição de receita ou aumento de despesa".

Se bem elaborada, a mencionada lei pode realmente contribuir com os instrumentos de gestão e controle de gastos tributários nas três esferas de governo, concedendo aos gestores públicos melhores critérios de planejamento de políticas relacionadas a gastos tributários.

Dentre os critérios a serem definidos, é essencial estabelecer um planejamento estrutural básico para os benefícios, com observância das bases estabelecidas pela política pública subjacente, incluindo 1) definição de objetivos e metas, de acordo com a política fiscal, 2) articulação com planos de desenvolvimento, 3) definição de quadro jurídico-institucional, incluindo o período de vigência, 4) análise de viabilidade econômica (custo-benefício estimado), 5) impacto orçamentário e financeiro e medidas de compensação (artigo 14 LRF), 6) análise de riscos fiscais, 7) análise de sensibilidade (piores e melhores cenários), 8) medidas de gestão (avaliação periódica), monitoramento e controle, 9) plano de ações e estratégia de implantação, e 10) integração no âmbito do federalismo fiscal.

Mostra-se também fundamental exigir medidas de governança dos benefícios no âmbito do processo orçamentário, que atualmente não passam por qualquer controle. Isto inclui inserir e articular os gastos tributários e outros benefícios no PPI, na LDO e na LOA, bem como do demonstrativo exigido pelo artigo 165, §6º CF, com clareza de critérios e de metodologias, que devem estar também definidos na lei complementar.

De igual modo, parâmetros objetivos auxiliam os controles interno e externo na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial quanto à aplicação das subvenções e renúncia de receitas, na forma do artigo 70 da CF/88.

É também muito salutar a referência aos benefícios de natureza financeira e creditícia, que estão submetidos às mesmas regras de transparência no processo orçamentário, conforme artigo 165, §6º da CF, e exigem uma análise comparativa de eficácia e eficiência com os gastos tributários.

O que não parece se justificar no mencionado dispositivo é a restrição da norma apenas aos benefícios concedidos a pessoas jurídicas. Não há plausibilidade para excluir, dos critérios de gestão e controle, os benefícios atribuídos a pessoas físicas, que são também numerosos e apresentam impacto orçamentário relevante. Espera-se que a lei complementar a ser editada inclua igualmente os benefícios concedidos a pessoas físicas, como se exige de qualquer prática apropriada de governança pública.

O inciso II deste §4º do artigo 4º da EC 109 atribui à mesma lei complementar a competência para definir atinentes à avaliação periódica obrigatória dos impactos socioeconômicos dos incentivos ou benefícios tratados o inciso anterior, com divulgação irrestrita dos respectivos resultados.

É essencial que ditas regras incluam 1) os parâmetros jurídicos e econômicos para aferir os impactos socioeconômicos dos benefícios, 2) a comparação com as metas definidas no planejamento, 3) a periodicidade de avaliação, 4) as medidas obrigatórias de gestão para cada cenário encontrado nos processos de avaliação, e 5) a definição dos órgãos de controle interno e externo afetados aos controles de eficácia e eficiência, com a descrição clara e pormenorizada de suas competências e poderes.

É de amplo conhecimento que as diversas tentativas de avaliação e controle de eficácia e eficiência de gastos tributários, incluindo pelo TCU, apesar de louváveis, não foram capazes de enfrentar eficazmente o problema, em especial pela falta de poderes concretos de controle a respeito das medidas de governança dos benefícios.

O inciso III do §4º do artigo 4º da EC 109, por fim, atribui à lei complementar estabelecer uma "redução gradual de incentivos fiscais federais de natureza tributária, sem prejuízo do plano emergencial". Apesar disso, não parece recomendável a criação de uma diretriz permanente de redução de gastos tributários como um fim em si mesmo, se não estiver diretamente relacionada a mecanismos de avaliação e controle periódicos.

Exceto na hipótese de benefícios tributários com desvio de finalidade, ineficácia ou ineficiência comprovados, não há sentido em exigir sua redução gradual e permanente, porque se trata de mecanismo relevante na promoção dos fins da Constituição Financeira e dos objetivos da República. A CF/88 fez claras escolhas por gastos tributários em diversos setores e políticas, de modo que a mera redução contínua, em nossa visão, é medida que somente se justifica na demonstração de que despesas diretas e efetivamente incorridas estão atingindo resultados melhores.

Em síntese, dentre erros e possíveis acertos, o artigo 4º da EC 109 pode ser aproveitado como uma oportunidade de estabelecer um caminho mais seguro na governança pública de gastos tributários, cuja ausência de sistemas de avaliação e controle comprometem a gestão e a qualidade das receitas e das despesas públicas e atentam contra os mais elementares fundamentos da governança orçamentária, em prejuízo da concretização dos objetivos da República.

Autores

  • Brave

    é sócio da LACLAW, doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP, pesquisador visitante do Max Planck Institute for tax Law and Public Finance em Munique, Alemanha, mestre pela PUC/SP, professor do Departamento de Direito Tributário do CEU Law School e advogado em São Paulo), membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e da International Fiscal Association (IFA).

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