Não responder a phishing ou a firewall defensivos não é abuso de autoridade
23 de março de 2021, 8h02
Após o advento da Lei nº 13.869/19 (nova Lei de Abuso de Autoridade), é preciso aos agentes públicos incumbidos da investigação criminal que redobrem a sua atenção, principalmente quando da análise de alguns requerimentos formulados por advogados.
Contudo, uma nova prática vem sendo realizada: o encaminhamento, por correio ou por e-mail, de requerimentos genéricos (sem ao menos informar o número do procedimento instaurado) e com o fito de saber se os seus clientes são investigados por aquela unidade policial. Diz-se isso pois tais requerimentos podem consistir nos famigerados phishing ou firewall defensivos.
Essa discussão só se torna mais importante porque existem duas metodologias clássicas para realizar uma investigação criminal: a top-down (de cima para baixo) e a bottom-up (de baixo para cima). A primeira modalidade indica uma investigação que tem como ponto de partida a existência de um grupo criminoso (não totalmente delineado) e, com o evoluir do inquérito, busca-se descobrir quem são todos os indivíduos envolvidos nesse grande quebra-cabeça ilícito, bem como quais são os crimes e condutas específicas por eles perpetrados no contexto de uma associação ou organização criminosa, por exemplo.
A top-down consiste em um processo de dedução, no qual se parte do aspecto geral para alcançar o mais específico. Inicia-se, portanto, na existência de um grupo criminoso e, por fragmentação, alcançam-se os crimes perpetrados na base da pirâmide. Essa forma velada de descoberta da verdade proporciona o efetivo combate a grandes contextos criminosos (e seus atores), vez que o caráter obducto das diligências proporciona uma maior amplitude probatória.
Já a investigação bottom-up inicia-se, amiúde, pela execução de uma medida cautelar em desfavor de uma determinada pessoa (prisão em flagrante, busca e apreensão, sequestro de bens e valores etc.) e, daí por diante, age-se no sentido de tentar alcançar o contexto maior do qual o suspeito faz parte (grupo criminoso). Essa é uma metodologia de investigação em que se traria dificuldades maiores para evoluir, vez que os criminosos (cientes da ação da polícia) tentam mascarar elementos dos crimes e da própria societatis sceleris, razão pela qual a sigilosidade em razão do firewall defensivo restaria comprometida.
Não se está dizendo que o advogado não possa ter acesso às informações de um investigado-cliente, contudo esse dado não pode ser fornecido enquanto os meios de obtenção de prova ainda estão em andamento. Ora, se a medida judicial foi deferida dispensando-se o contraditório em razão do perigo de ineficácia da medida, conforme artigo 282, §3º, do CPP, caso o delegado permitisse que a defesa tivesse acesso, estaria violando uma decisão judicial, passível de ser responsabilizado criminal e administrativamente por isso.
Nessa toada fica evidenciado que nas investigações top-down os efeitos do phishing ou do firewall defensivos são mais devastadores, porquanto a descoberta precoce da investigação em curso desnaturaria a sua essência low-profile.
De toda sorte, não pode o delegado de polícia se esquivar desses requerimentos sacando mão de informações inverídicas, sob pena de responder por crime da Lei de Abuso de Autoridade:
"Artigo 29 — Prestar informação falsa sobre procedimento judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de prejudicar interesse de investigado: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. (Lei n. 13.869/2019)".
Contudo, o falseamento de informações pode até consistir crime de abuso de autoridade, mas a omissão de resposta, não. Não só isso. Fica claro que o cerne do artigo 29 da Lei nº 13.869/2019 são as informações "sobre procedimentos devidamente instaurados", e não os dados sobre eventual pessoa investigada.
As informações a serem prestadas pelo delegado de polícia são as circunductas por um determinado procedimento, o qual necessita estar devidamente descrito no requerimento. Isso, de fato, pode inibir as práticas em comento, porquanto pode o delegado deixar de responder ao questionamento até que seja indicado o número do procedimento em comento.
Mesmo que o advogado se faça presente na unidade policial e peça para analisar os procedimentos que ali estão, já que essa é aparentemente uma prerrogativa sua (artigo 7º, inciso XIV, do Estatuto da OAB), isso não afasta a necessidade de demonstrar que não está a realizar essa captação espúria de causas e de clientes, já que a lei não lhe confere direito irrestrito de explorar, aleatoriamente, todo e qualquer procedimento que esteja em sede de delegacia [1]. O dever de sigilo das investigações mitiga o caráter quase absoluto que tentam dar a essa garantia da advocacia, restando necessário inclusive a prova da representação pelo instrumento de mandato respectivo, conforme orientação dos próprios paradigmas utilizados pelo STF para edição da súmula vinculante 14 [2].
De toda sorte, a ideia aqui não é a de prejudicar o exercício da defesa do investigado, nem muito menos criar embaraços à atividade dos causídicos; ao contrário, evitar práticas de phishing ou do firewall defensivos é evitar, inclusive, a banalização da advocacia por meio da captação espúria de clientela.
[1] "Por sua vez, estatui o inciso XIV, cuja leitura precisa ser feita em harmonia com o § 11 do mesmo artigo, que é direito do advogado "examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital". Integrando-o, preceitua o § 11: 'No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências'. VII – Parece estreme de dúvidas que o direito legitimamente deferido a advogados de acesso a autos de investigação — ainda que espelhe clara manifestação do direito ao devido processo legal substancial, ao contraditório e à ampla defesa —, não é absoluto, como, de resto, não são os demais direito fundamentais. O legislador ponderou os direitos fundamentais em colisão para restringir episodicamente os direitos de defesa em proveito do direito à eficiência das investigações de atos ilícitos". (AgInt no RMS 62275/RJ, STJ, 22/10/2020).
[2] "(…) verifico que, in casu, a irresignação do reclamante não merece acolhida. Isso porque o entendimento adotado no ato reclamado não constitui ato que ofendam a tese firmada no enunciado 14 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (…). Deveras, o direito de acesso aos dados de investigação não é absoluto, porquanto o legislador ordinário trouxe temperamentos a essa prerrogativa, consoante se infere da exegese do artigo 7º, §§ 10 e 11, da lei 8.906/1994 — Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, com a redação conferida pela Lei 13.245/2016, (…). Nesse contexto, cabe referir que o espectro de incidência do Enunciado 14 da Súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal não abrange diligências ainda em andamento e elementos ainda não documentados, mormente se considerados os dispositivos legais supramencionados, além de se fazer necessária a apresentação de procuração nas hipóteses de autos sujeitos a sigilo. (…) verifico que sequer se negou à defesa o direito de acesso a autos de investigação, razão pela qual não merece prosperar o presente intento reclamatório." (Rcl 30.957, rel. Min. Luiz Fux, dec. monocrática, j. em 10/8/18).
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