Opinião

A nova Lei de Licitações e a decretação da revelia contra a Fazenda Pública

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22 de março de 2021, 6h04

É um entendimento tradicional e consolidado no STJ [1] o de que "ainda que a contestação apresentada pela Fazenda Pública tenha sido reputada intempestiva, diante de direitos indisponíveis do ente estatal, os fatos da causa não comportam confissão, tampouco estão sujeitos aos efeitos da revelia".

O inciso II do artigo 345 do CPC inclusive é muito claro ao afirmar que o efeito material da decretação da revelia (o de presumir verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor) não incide quando o litígio versar sobre direitos indisponíveis.

Ao comentar o aludido dispositivo, a doutrina [2] esclarece que "o efeito material da revelia não se opera contra direito que não é passível de transação (artigo 392 do nCPC e artigo 213 do CC), chamados direitos indisponíveis; direitos que comportam tutela absoluta do ordenamento, como a vida, a dignidade da pessoa humana e o bem comum. Na solução de casos tais, os fatos devem ser comprovados".

Para Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni [3], direito indisponível "é aquele que não se pode renunciar ou alienar. Os direitos da personalidade (artigo 11,CPC) e aqueles ligados ao estado da pessoa são indisponíveis. O direito da Fazenda Pública, quando arrimado em interesse público primário também o é. O direito da Fazenda Pública com esteio no interesse público secundário não é indisponível".

Por outro lado, vozes importantes na doutrina [4] [5] [6] sempre defenderam a disponibilidade dos interesses patrimoniais contidos nos contratos administrativos.

Pois bem, nesse cenário, diga-se que a futura Nova Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública (cujo projeto de lei seguiu para sanção ou veto do presidente da República) trouxe em seu artigo 151, caput e parágrafo único o seguinte:

"Artigo 151  Nas contratações regidas por esta lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações".

Como se vê, o Novo Regime Jurídico das Licitações e Contratos trouxe um rol exemplificativo de direitos patrimoniais disponíveis que podem ser objeto de transação por parte do poder público em sede de conciliação, mediação, comitê de resolução de disputas (dispute boards) e arbitragem.

Ora, se há a caracterização de que há direitos patrimoniais disponíveis em sede de licitações e contratos administrativos, resta óbvio que o inciso II do artigo 345 do CPC deixa de ser aplicável.

Nesse particular, se, por exemplo, um particular ajuizar uma ação ordinária de cobrança, uma ação de obrigação de fazer (pagar) ou mesmo uma ação monitória em razão de um inadimplemento da Administração Pública com relação aos pagamentos previstos num contrato administrativo (algo que, por óbvio, caracteriza o inadimplemento de uma obrigação contratual referido pelo parágrafo único do artigo 151 da futura Nova Lei de Licitações), nos parece evidente que, se a Fazenda Pública não contestar o pedido no prazo devido, deverá sofrer o efeito material da decretação da revelia.

Portanto, nos parece muito claro que a futura Nova Lei de Licitações provocará uma alteração disruptiva no tratamento que tem sido consagrado à decretação da revelia da Fazenda Pública.

 


[1] Vide v.g. AgRg no REsp 817402/AL.

[2] Campos, Rogério [et. al.], Novo código de processo civil comentado na prática da Fazenda Nacional, [livro eletrônico], São Paulo: RT, 2017.

[3] Mitidiero, Daniel; Marinoni, Luiz Guilherme. Código de processo civil: comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2009, pág. 326.

[4] “(…) a indisponibilidade do interesse público não se confunde com a disponibilidade dos direitos subjetivos concretamente atribuídos à Administração Pública. A indisponibilidade do interesse público significa que os fins últimos que justificam a existência do Estado se constituem em balizas insuperáveis, que não podem ser objeto de renúncia, transação ou alienação. Mas o ordenamento jurídico atribui a todos os sujeitos, inclusive ao Estado (em suas diversas manifestações) posições jurídicas concretas, que se traduzem inclusive na titularidade de bens e de direitos subjetivos. Esses bens e direitos subjetivos comportam renúncia, transação e alienação, desde que respeitados os limites determinados pela própria ordem jurídica. (…) a indisponibilidade do interesse público significa a vedação à busca pelo agente administrativo de qualquer finalidade distinta do interesse coletivo. Daí não se segue que todos os direitos subjetivos atribuídos ao Estado sejam indisponíveis. O Estado é investido da titularidade de bens e de direitos de dimensão patrimonial que podem ser objeto de alienação, renúncia e disposição.” (Justen Filho, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/93, 3ª ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, Apud MAIA, Alberto Jonathas, Fazenda Pública e arbitragem: do contrato ao processo, Salvador: Editora JusPodivm, 2020, págs. 33/34).

[5] “não há qualquer relação entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais e disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público. (…) sempre que puder contratar, o que importa disponibilidade de direitos patrimoniais, poderá a Administração, sem que isso importe disposição do interesse público, convencionar cláusula de arbitragem” (Grau, Eros Roberto, Arbitragem e contrato administrativo, RTDP 32/14-20, São Paulo, Malheiros, 2000 Apud Oliveira, Gustavo Henrique Justino de, A arbitragem e as parcerias público-privadas, In: Sundfeld, Carlos Ari (Coord.), Parcerias público-privadas, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2011, pág. 622).

[6] “Na medida em que é permitido à Administração Pública, em seus diversos órgãos e organizações, pactuar relações com terceiros, especialmente mediante a estipulação de cláusulas financeiras, a solução amigável é fórmula substitutiva do dever primário de cumprimento da obrigação assumida. Assim como é lícita, nos termos do contrato, a execução espontânea da obrigação, a negociação – e, por via de consequência a convenção de arbitragem – será meio adequado de tornar efetivo o cumprimento obrigacional quando compatível com a disponibilidade de bens. Em suma, nem todos os contratos administrativos envolvem, necessariamente, direitos indisponíveis da Administração”. (Tácito, Caio, Arbitragem nos litígios administrativos, RDA 210/111-115, Rio de Janeiro, outubro-dezembro/1997 Apud Oliveira, Gustavo Henrique Justino de, A arbitragem e as parcerias público-privadas, In: Sundfeld, Carlos Ari (Coord.), Parcerias público-privadas, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2011, págs. 622/623).

Autores

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    é advogado no escritório Mello Pimentel Advocacia, membro da Comissão de Direito à Infraestrutura da OAB-PE, especialista em Direito Público e autor do livro "Processo Administrativo e o Novo CPC — Impactos da Aplicação Supletiva e Subsidiária", publicado pela Editora Juruá.

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