Opinião

Pessoa natural como amicus curiae no controle de constitucionalidade

Autor

  • Ravi Peixoto

    é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

21 de março de 2021, 9h11

O CPC de 2015, entre as suas novidades, trouxe a regulação da figura do amicus curiae, que já era admitida em alguns procedimentos específicos, como o controle concentrado de constitucionalidade, generalizando-o para que seja admitido em qualquer processo. Além disso, para efeitos do objeto deste texto, houve a expressa admissão da atuação da pessoa natural como amicus curiae no caput do artigo 138.

Passando para a análise da decisão do STF, na Adin 3.396, aparentemente, o STF acabou fixando duas importantes teses: a) a recorribilidade da decisão que inadmite o amicus curiae; e b) a inadmissão da pessoa física como amicus curiae no controle concentrado pela ausência de representatividade adequada. Em uma leitura da ementa desse julgado, seria possível concluir, com segurança, que esse é o entendimento do STF sobre o tema tendo por base a legislação atual que rege a matéria.

Ocorre que a leitura do inteiro teor revela um quadro bastante nebuloso sobre a matéria.

Assim, a proposta deste texto é específica: tentar compreender especificamente o entendimento do STF sobre a admissão da pessoa natural como amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade. Deixarei o problema da recorribilidade para um outro momento.

Uma premissa importante para lidar com essa decisão é a de que tanto o pedido quanto a apresentação do recurso pelo amicus curiae pessoa natural ocorreram antes da entrada em vigor do CPC. Por motivos óbvios, o CPC não deveria ser aplicável ao caso concreto, não regendo a discussão da irrecorribilidade e muito menos a admissibilidade da pessoa natural como amicus curiae.

O voto do ministro Celso de Mello, relator e condutor da maioria foi no sentido de que a pessoa física não seria admitida como amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade pela ausência de representatividade adequada (artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/1999). Essa ausência decorreria do fato de que o controle concentrado, por ser um processo objetivo, impediria "a apreciação de qualquer pleito que vise a resguardar interesses de expressão concreta e de caráter individual".

Aparentemente, a admissão de pessoa física como amicus curiae seria admitir a tutela de interesses de expressão concreta e de caráter individual, embora não reste claro quais interesses seriam esses. Afinal, em admitida a pessoa física como amigo da corte, pressupõe-se que ela vai atuar no sentido de contribuir para o debate do tema pelo seu conhecimento específico no tema e não para resguardar os seus interesses individuais.

Esse entendimento parece estar baseado em premissas incorretas, que seria a ideia de que a pessoa natural iria atuar como amicus curiae para resguardar interesses individuais. Não se pode negar que, em eventual questão de saúde, um médico especialista no tema a ser discutido pode ter aptidão de contribuir bastante para o debate, como até admitido pelo ministro Gilmar Mendes.

A divergência, inaugurada pelo ministro Marco Aurélio, não ingressa na discussão da admissibilidade da pessoa física como amicus curiae, porque simplesmente inadmite o recurso de agravo, muito embora, posteriormente, o próprio ministro acabe aderindo ao voto do ministro relator.

O ministro Edson Fachin acompanhou a divergência, mas fez algumas reflexões interessantes, ressaltando que o panorama normativo em vigor à época da ocorrência dos fatos era apenas a Lei 9.868/1999. Afirmou que o CPC ainda não tinha entrado em vigor naquele período, e que, a partir desse momento, caberia à corte refletir "com maior vagar sobre as vascularidades existentes entre o Processo Constitucional e o Processo Civil em geral", mencionando, como exemplo específico, o cabimento da pessoa natural como amicus curiae.

No entanto, como o panorama normativo à época da discussão sobre a admissão do amicus curiae ainda não levava em conta a incidência do CPC de 2015, seria o caso de levar em conta unicamente a Lei 9.868/1999 e a jurisprudência do STF, que inadmitia a pessoa física como amicus curiae. Até o ressalta em outro momento: "Neste caso, trata-se de pessoa física; portanto, manifestamente inadmissível em recurso anterior ao novo CPC".

Logo depois, o ministro Marco Aurélio se manifestou para apontar que, de fato, essa análise seria necessária, mas, aparentemente, já adiantou sua conclusão ao afirmar que, como a Lei nº 9.868/1999 é especial em relação ao CPC, não seria revogada por ele.

A ministra Carmen Lúcia, ao proferir o seu voto, no sentido de não conhecer do recurso, destacou, entre os fundamentos para tanto, o artigo 138 do CPC de 2015, que reforçaria a irrecorribilidade da decisão.

Por fim, a ministra Rosa Weber, que havia acompanhado a divergência, acabou alterando o seu voto. Para tanto, pelo que se pode inferir do seu voto, o fundamento foi o CPC de 2015, que permite que o amicus curiae, ao menos em tese, possa ser pessoa natural. Assim, admitiria o recurso, mas negaria a representatividade adequada.

No fim das contas, qual seria a posição do STF? Afinal, é ou não possível a admissão da pessoa natural como amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade?

A partir dessa decisão e do atual panorama normativo, em especial a entrada em vigor do CPC, é difícil de responder. Em uma questão de concurso, a resposta seria fácil: não se admite. Mas do ponto de vista de uma ratio decidendi consistente, a resposta não é fácil.

Uma premissa que deve ser levada em conta é a de que o CPC não seria aplicável ao caso concreto. Ao menos, não incidiria, salvo se se levar em conta a possibilidade de uma incidência no período anterior à vigência, com um caráter meramente persuasivo [1], mas, na decisão ora analisada, apenas as ministras Carmen Lúcia e Rosa Weber utilizaram o CPC expressamente como fundamento de suas decisões.

Destaca-se inicialmente que a votação de admissão do recurso se deu por maioria (Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso, Gilmar Mendes e Rosa Wever, vencidos os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Ayres Britto, Edson Fachin e Cármen Lúcia). Significa que os ministros vencidos sequer se manifestaram adequadamente sobre o cabimento da pessoa natural como amicus curiae.

O ministro Celso de Mello, em seu voto, não faz nenhuma referência ao CPC de 2015, motivo pelo qual não se pode inferir, automaticamente, que a conclusão seria a mesma tendo por base a alteração normativa. Além disso, o próprio ministro se aposentou. Mais ainda, votaram, nessa decisão, os ministros Ayres Britto e Cezar Peluso, que também já se aposentaram, não votando os que os sucederam, nos termos do artigo 941, §1º, do CPC.

Afinal, há alguma ratio decidendi ainda vigente sobre admissão da pessoa natural como amicus curiae? Para situações regidas antes do CPC de 2015, parece possível afirmar que sim, não se deve admitir a pessoa natural, o que confirmaria a jurisprudência da corte. No entanto, para as situações posteriores à entrada em vigor do CPC de 2015, essa ratio decidendi torna-se incerta, pois dependerá da análise da relação entre o artigo 138 do CPC e o artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/1999.

Caso o STF entenda que a previsão da "manifestação de outros órgãos ou entidades" no artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/1999, por ser lei especial, prevalece sobre o artigo 138 do CPC, como parece sugerir o ministro Marco Aurélio, a ratio decidendi será mantida. A ministra Rosa Weber, aparentemente, acolhe a conclusão do ministro Celso de Mello mesmo após o CPC de 2015, embora admita que a pessoa natural tenha legitimidade recursal para discutir o tema.

No entanto, como visto, o ministro Edson Fachin suscitou a necessidade de nova discussão sobre o tema, com base no CPC e essa nova legislação foi suscitada ao menos pela ministra Carmen Lúcia, que sequer conheceu do agravo, então não opinou sobre a admissibilidade do amicus curiae como pessoa física. O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, embora não tenha conhecido do recurso, afirmou que "não fixaria a opção no sentido de excluir qualquer pessoa física". Os demais ministros, como visto, sequer suscitaram o problema, que deve ser reanalisado tendo por base o CPC de 2015. Assim, se esses três ministros alterarem seus votos, para admitir a pessoa natural como amicus curiae, teríamos a superação do entendimento anterior do STF.

Para sabermos a resposta, só resta dar tempo ao tempo e esperar a próxima decisão do STF sobre o tema, dessa vez tendo por base a eventual incidência do artigo 138 do CPC, para que a ratio decidendi seja reafirmada ou abandonada.

Antes de encerrarmos esse texto, pretendemos contribuir minimamente para o futuro debate.

Inicialmente, deve-se admitir que a interpretação sugerida pelo ministro Marco Aurélio está dentro da moldura interpretativa do eventual conflito entre a Lei 9.868/1999 e o artigo 138 do CPC. É plausível a interpretação de que, o artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/1999 é especial em relação ao CPC [2] e, por isso, a legislação específica ao fazer menção apenas a atuação de "órgãos ou entidades" não seria alterada pela autorização dada pelo CPC a atuação da pessoa natural como amicus curiae [3].

Uma outra possibilidade é a utilização da teoria do diálogo das fontes, desenvolvida por Erik Jayme e difundida no Direito brasileiro por Claudia Lima Marques, que tem por objetivo gerar um sistema jurídico, eficiente, coerente e justo no contexto de um Direito com fontes legislativas plúrimas, permitindo uma adequada coordenação entre elas [4]. A proposta é a de permitir a aplicação simultânea e coordenada das diversas legislações de forma a dar efetividade aos dispositivos da constituição, impondo soluções harmonizadas e funcionais ao sistema. Essa forma de visualizar a relação entre as leis viria a atualizar os conflitos clássicos de leis no tempo, não mais capazes de solucionar todos os conflitos [5].

De acordo com o artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, tem-se a garantia do devido processo legal e, no inciso IV, a previsão do direito fundamental ao contraditório nos processos judiciais. Atualmente, o contraditório é visto não como apenas uma exigência formal, mas como mecanismo de legitimação das decisões [6] e é nesse contexto que aparece a figura do amicus curiae. Bem antes do CPC de 2015, Cassio Scarpinella Bueno já defendia a admissão dessa intervenção de terceiro sob o fundamento do papel de legitimação conferido pela participação do amicus curiae, como mecanismo de ampliação do contraditório e, por consequência, da legitimação da decisão [7].

Não se pode ignorar que a fundamentação para o surgimento do amicus curiae foi a de ampliação da participação dos indivíduos que não estão participando do processo, mas que serão atingidos pela decisão. No common law, o instituto foi desenvolvido em razão dos reflexos da força vinculativa dos precedentes [8], tendo sido, aparentemente, a principal inspiração do CPC.

Essa importância aumenta ainda mais no controle concentrado de constitucionalidade, em que a decisão terá eficácia erga omnes, com potencial de expurgar a legislação do ordenamento jurídico, além da eficácia vinculante da ratio decidendi. Ou seja, seus impactos são consideravelmente maiores do que os decorrentes de uma decisão judicial que se transforme em precedente vinculante.

Assim, a participação do amicus curiae permite que o contraditório se amplie para além das partes, permitindo que a sociedade civil participe da formação da decisão, dialogando com o prolator da decisão, afinal, os efeitos dessa decisão serão sentidos por todos [9].

É com base nessas considerações que nos parece possível realizar uma aplicação conjunta do artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/1999 e do artigo 138 do CPC. Não faria sentido, do ponto de vista de valorização do contraditório previsto na Constituição e, ainda mais no contexto do controle concentrado e dos seus potenciais efeitos na sociedade, simplesmente excluir a possibilidade de participação da pessoa natural.

Por mais que o artigo 7º, §2º, da Lei 9.868/1999 não faça menção a atuação da pessoa natural, ele também não a exclui expressamente e, ao mesmo tempo, não há uma incompatibilidade de sua admissão com o procedimento do controle concentrado de constitucionalidade. Assim, como uma forma de permitir uma atuação harmônica do instituto do amicus curiae nas várias leis em que essa intervenção de terceiro é admitida, impõe-se que haja a admissão, também no controle concentrado, da participação da pessoa natural.

 


[1] Sobre o tema, cf.: DIDIER Jr., Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Revista de Processo, v. 236, 2014; CABRAL, Antonio do Passo. Pré-eficácia das normas e a aplicação do Código de Processo Civil de 2015 ainda no período de vacatio legis. Revista de Processo, v. 246, 2015.

[2] Regra clássica de resolução de conflito de leis no tempo, nos termos do artigo 2º, §2º, da LINDB.

[3] Com a mesma conclusão: CRUZ, Gabriel Dias Marques da. Amicus curiae, pessoa física e ação direta de inconstitucionalidade: uma relação possível? Revista Colunistas Direito do Estado, n. 349, 2017, disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/gabriel-dias-marques-da-cruz/amicus-curiae-pessoa-fisica-e-acao-direta-de-inconstitucionalidade-uma-relacao-possivel, acessado em 25 de fevereiro de 2021. No entanto, sustenta o autor que “É possível invocar uma leitura generosa da Lei n° 9.868/99 no sentido de que órgãos e entidades ali mencionados como amigos da Corte são apenas exemplos, não taxativos” de forma a admitir pessoas físicas.

[4] MARQUES, Claudia Lima. A teoria do ‘diálogo das fontes´ hoje no Brasil e seus novos desafios: uma homenagem à magistratura brasileira. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (coords.). Diálogo das fontes: novos estudos sobre a coordenação e aplicação das normas no direito brasileiro. São Paulo: RT, 2020, p. 18-19.

[5] Idem, ibidem, p. 23.

[6] Com as devidas referências doutrinárias, cf.: PEIXOTO, Ravi. Os caminhos e descaminhos do princípio do contraditório: a evolução história e a situação atual. Revista de Processo, v. 294, 2019; PEIXOTO, Ravi. Rumo à construção de um processo cooperativo. Revista de Processo, v. 219, 2013.

[7] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Amicus curiae no processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 78-85.

[8] CABRAL, Antonio do Passo. O amicus curiae no novo Código de Processo Civil. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; BEDAQUE, José Roberto dos Santos; CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro; ARRUDA ALVIM, Teresa. (Org.). O novo processo civil brasileiro: estudos em homenagem ao Professor, Jurista e Ministro Luiz Fux. Rio de Janeiro: GZ, 2018, v. 1, p. 85-87.

[9] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Amicus curiae no processo civil brasileiro. cit., p. 82-83.

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