Embargos culturais

Hans Kelsen e a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

21 de março de 2021, 8h01

Hans Kelsen nasceu em Praga, em 1891. As margens do Moldava ainda pertenciam ao Império Austro-Húngaro. Conviveu com os neopositivistas lógicos do Círculo de Viena. Defendeu a purificação das ciências em relação a preocupações metafísicas, na crise epistemológica que admitia que a ciência não poderia pronunciar juízos de valor. Essa pureza, no pensamento de Kelsen, enfatiza Lenio Streck, é da ciência do Direito, e não do Direito [1].

Spacca
Kelsen foi o autor intelectual da Constituição republicana austríaca. Lecionou na Universidade de Viena de 1919 a 1929. Foi juiz na Áustria por nove anos, de 1921 a 1930. Em 1934, publicou o emblemático livro "Teoria Pura do Direito". Escapou do nazismo e foi recebido nos Estados Unidos, em Berkeley, onde lecionou até 1952. Em outubro de 1973, aos 92 anos, morreu na Califórnia.

Entre nós, no Brasil, é talvez o autor mais citado, menos compreendido e mais injustiçado. Suas ideias foram equivocadamente associadas ao nazismo, no contexto do argumento da "reductio ad hitlerum", denunciado por Dimitri Dimoulis, um preparadíssimo professor grego que leciona Direito no Brasil [2]. Em linhas gerais, os críticos do positivismo identificariam contraditoriamente Kelsen com a ordem nazista. Kelsen deveria, assim, ser exterminado, do mesmo modo que essa mencionada ordem fora exterminada no fim da segunda grande guerra. Confundem causas com consequências, argumentos com fatos. Os nazistas processados no fim da guerra afirmavam que simplesmente cumpriam ordens, sem questioná-las. Esse argumento fora retomado pelos atiradores do muro de Berlim, quando processados logo no início da unificação alemã. Dimitri Demoulis explica bem o assunto.

Há também um "outro" Kelsen. Não se trata necessariamente do Kelsen das várias e dissonantes interpretações de sua obra. Há mesmo um Kelsen que se revela em escritos sobre temas variados da especulação jurídica. Exemplifico com suas digressões sobre a ilusão da justiça, sobre a verdade platônica, sobre o pitagorismo jurídico (a justiça como retribuição), sobre o conceito de Estado e a teoria do grupo em Sigmund Freud, e também sobre a ideia de justiça nas Sagradas Escrituras.

"A ideia de justiça nas Sagradas Escrituras" é um ensaio de Kelsen que foi publicado na revista jurídica da Universidade de Porto Rico. É também um dos capítulos do livro "What is Justice?", publicado pela Universidade da California, em 1957. No Brasil, o texto foi traduzido por Luís Carlos Borges,e publicado pela Martins Fontes.

Nesse livro, Kelsen reconheceu o caráter transcendental de uma justiça divina. A justiça seria qualidade essencial contida em um Deus absoluto. Segue que a justiça seria também absoluta, eterna e imutável. A onipotência divina  o que significa que nada ocorreria contra Seu desejo  resultaria em incompatível desejo divino para com a injustiça. E como injustiça é um fato, argumenta Kelsen que os fatos estão além de qualquer cognição de ordem racional. É o único modo de compreendermos como na natureza, e na história, os mais fortes destroem os mais fracos.

Nessa especulação, que vincula fé, dogma e expectativas de justiça, Kelsen aponta para contradições entre a ideia de justiça do Antigo Testamento em relação à ideia de justiça no Novo Testamento. A poligamia, a escravidão e a vingança de sangue que o Antigo Testamento tolera contrariam os sentimentos de justiça dos cristãos modernos e, de algum modo (acrescento) dos primeiros cristãos.

Paulo, por exemplo, na curtíssima carta que escreveu para Filemon, não negou objetivamente a escravidão, ainda que seu pedido em favor do escravo Onésimo possa ser considerado pedra fundadora de uma concepção universal de direitos humanos. No entanto, lembra Kelsen, Paulo evocou os servos a obedecerem a seus senhores, como se lê na Carta aos Efésios (6,5).

Kelsen fez crítica literária dos textos sagrados (e ao mesmo tempo teologia bíblica) insistindo em algumas antinomias entre as prescrições jurídicas do Antigo Testamento com os ensinamentos do Novo Testamento. Mais. Problematizou supostas antinomias dos textos canônicos. Opôs ao casamento de Jacó com Lia e Raquel (que eram irmãs) a prescrição de Levítico (18,18) que vedaria o que hoje se entenderia por bigamia.

Segundo Kelsen, o direito positivo do povo judeu expressava a ideia que Moises fazia de uma justiça divina. Kelsen percebeu um caráter teocrático na concepção de uma ideologia política, com comandos claros de obediência ao texto sagrado. Exemplificou com passagens do Salmo 119 (4: "Tu ordenaste os teus mandamentos, para que o cumpramos à risca"; 8: "Cumprirei os teus decretos; não me desempares jamais").

Haveria no Antigo Testamento uma concepção de justiça centrada na retribuição. Radicaria aí um arquétipo de pena, como se percebe nas passagens relativas ao dilúvio (Gênesis, 6, 5) e à torre de Babel (Gênesis, 11). A chuva interminável e a multiplicação das línguas seriam fórmulas de punição, nada metafóricas, na compreensão de uma interpretação literal e reducionista dos textos sagrados. De igual modo, o episódio de Ló, e de sua mulher, na fúria destrutiva de Sodoma e Gomorra (Gênesis, 23). Kelsen chamou também a atenção para com os castigos decorrentes da desobediência (Levítico 26, 14).

Kelsen argumentou que a Lei do Talião sugere a punição como um primeiro plano e a recompensa como um plano último. No Novo Testamento, prossegue, a lógica do Talião é contraposta com a lógica do perdão e do amor. Afinal, "se alguém te obrigar a andar uma milha, vá com ele duas" (Mateus 5, 38). No Novo Testamento haveria uma rejeição ao princípio da retribuição, no contexto de uma justiça centrada no amor, em forma de princípio, contraposto ao direito positivo. De acordo com Kelsen, enfrenta-se a "técnica específica do direito infligir ao malfeitor o mal da punição, se necessário pelo emprego da força".

No conjunto dos escritos de Hans Kelsen sobre a justiça nas Sagradas Escrituras, independentemente de seus acertos ou desacertos teológicos, revela-se um pensador que transcende o lugar comum que os desavisados lhe reservam, como mero propagador do culto à norma. Kelsen foi um intelectual humanista extremamente sensível.

Em "A ideia de justiça nas Sagradas Escrituras", depois de comentar excertos das Cartas de Paulo, Kelsen concluiu que para a teologia cristã "existe uma justiça humana, relativa, que é idêntica ao direito positivo, e uma justiça absoluta, divina, que é o segredo da fé". Para esse pensador do Direito, nas Sagradas Escrituras, não obstante contrastes ente o Antigo e o Novo Testamentos, a justiça seria um mistério, um dos muitos mistérios da fé.

 


[1] STRECK, Lenio, Dicionário de Hermenêutica, Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 17.

[2] DIMOULIS, Dimitri, Positivismo Jurídico- Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurídico-político, São Paulo: Método, 2006, pp. 257 e ss.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!