Opinião

Não incidência de ICMS na cisão de empresas sem trânsito físico de produtos

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20 de março de 2021, 7h14

Segundo o artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96, não há incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre "operações de qualquer natureza de que decorra a transferência de propriedade de estabelecimento industrial, comercial ou de outra espécie".

Não há, entretanto, disposição clara quanto à incidência (ou não incidência) do ICMS nas operações de cisão de empresas, em especial quando a nova empresa é constituída a partir do patrimônio (mercadorias) da empresa cindida, ocasião em que há, bem ou mal, alteração da titularidade jurídica dessas mercadorias.

Ao se deparar com a situação, o Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais entendeu pela não incidência do ICMS [1], desde que não haja movimentação física das mercadorias em questão. Fê-lo, o Conselho de Contribuintes mineiro, ao dizer que "em consonância com as orientações já emanadas por esta superintendência, não é necessária a emissão de notas fiscais relativas à transferência do estoque de mercadorias e do ativo permanente para a empresa incorporadora, inexistindo movimentação física de mercadorias".

O Fisco paulista, por sua vez, em antiga resposta à Consulta nº 280/94, também se posicionou pela não incidência do ICMS às situações em que uma empresa (cindida) transfere o seu patrimônio (mercadorias e ativos imobilizados) à formação de uma outra empresa. Também nessa manifestação a não incidência foi condicionada à inexistência de movimentação física das mercadorias. O entendimento se sustentou na afirmativa de que a então consulente estaria procedendo "à sua cisão parcial desmembrando seu estabelecimento situado em …., neste Estado, transferindo para outra empresa, que irá ser constituída, a parte correspondente à atividade de recauchutagem e recuperação de pneus, compreendendo instalações, máquinas, equipamentos e estoque de materiais nelas utilizados, que continuará sendo explorada no mesmo local, não havendo, portanto, movimentação física de mercadorias". Mais ainda, segundo consta da decisão, "o estabelecimento desmembrado em decorrência da cisão, por seu turno, prosseguirá operando normalmente sua parte e atividades remanescentes no memos local onde se encontram atualmente, providenciando-se a separação física de ambos, que passarão a constituir estabelecimentos distintos e independentes". Com essas premissas, o Fisco paulista decidiu que "formalmente, a transação focalizada, relativamente à transmissão da propriedade das mercadorias, inclusive de bens do ativo imobilizado, configura operação de circulação de mercadoria (…) No caso vertente, contudo, inexistindo saída de mercadorias, nem se caracterizando qualquer uma das saídas fictas previstas legalmente, não ocorrerá a exteriorização do fato gerador do imposto. As mesmas mercadorias já se encontram no local onde vão continuar permanecendo até que ocorra uma futura e efetiva saída. A alteração de situação das mercadorias é meramente escritural. Nesse caso, portanto, não há que se cogitar da incidência do imposto, nem da emissão de documento fiscal, que se substitui pelo rol de mercadorias adjeto ao contrato".

Ou seja, segundo a firme convicção do Fisco paulista manifestada na aludida resposta à consulta, se, na operação de cisão, não há movimentação física de mercadorias e ativos entre a empresa cindida e a nova empresa surgida da cisão, não haverá a incidência do ICMS, tampouco será devida a emissão de documentos fiscais. O contrato em que se firmou a cisão é instrumento suficiente a sustentar a alteração da titularidade jurídica dos bens.

Tal decisão fora proferida ao tempo da vigência dos artigos 1º e 2º da Lei Paulista 6.374/89 (que ainda estão em vigor), que disciplinam a incidência do ICMS na saída de mercadorias do estabelecimento a qualquer título, bem como da vigência do artigo 223 do antigo RICMS/SP (Decreto nº 33.118/91), que contava com a seguinte redação:

"Artigo 223 Na hipótese de fusão, incorporação, transformação, cisão ou aquisição, o novo titular do estabelecimento deverá comunicar à Secretaria da Fazenda, na forma por ela estabelecida, até o último dia útil do mês subseqüente ao da ocorrência, a transferência, para o seu nome, dos livros fiscais em uso, assumindo a responsabilidade por sua guarda, conservação e exibição ao fisco.
§1º.
 O novo titular assumirá, também, a responsabilidade pela guarda, conservação e exibição ao fisco dos livros fiscais já encerrados, pertencentes ao estabelecimento.
§2º.
 É permitida a adoção de livros novos em substituição aos que se encontram em uso".

Examinando a decisão contida na resposta à Consulta nº 280/94 frente à legislação que gerava efeitos à época, é de se assumir que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, ao interpretar os artigos 1º e 2º da Lei Paulista nº 6.374/89, entendeu que não há fato gerador do ICMS na hipótese de versão do patrimônio de uma sociedade à formação de uma outra empresa (cisão), especialmente porque, naquele caso, não houve saída física do estabelecimento da empresa cindida à nova resultante da cisão. E, a despeito de não estar expressamente mencionado na aludida resposta à consulta, é intuitivo concluir que, em face do artigo 223 do antigo RICMS/91, caberia ao contribuinte apenas fazer a transferência de livros fiscais ao novo estabelecimento, nada mais, nem mesmo emitir notas fiscais.

Atualmente, os artigos 1º e 2º da Lei Paulista nº 6.374/89 continuam em vigor e, por outro lado, as normas contidas no artigo 223 do antigo RICMS/91 também vigem, mas agora na letra do artigo 232 do RICMS/SP (Decreto nº 45.490/00):

"Artigo 232 Na hipótese de fusão, incorporação, transformação, cisão ou aquisição, o novo titular do estabelecimento deverá comunicar à Secretaria da Fazenda, na forma por ela estabelecida, até o último dia útil do mês subseqüente ao da ocorrência, a transferência, para o seu nome, dos livros fiscais em uso, assumindo a responsabilidade por sua guarda, conservação e exibição ao fisco.
§1º.
 É permitida a adoção de livros novos em substituição aos que se encontram em uso.
§2º.
 O novo titular assumirá, também, a responsabilidade pela guarda, conservação e exibição ao fisco dos livros fiscais já encerrados, pertencentes ao estabelecimento, bem como dos substituídos nos termos do parágrafo anterior".

Ocorre que, apesar de o contexto normativo da legislação paulista ser exatamente igual, fato é que a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo modificou o seu posicionamento ao proferir a resposta à Consulta nº 561/01. Segundo a novel manifestação, há incidência do ICMS mesmo que a versão de patrimônio (mercadorias) na cisão não implique em movimentação física dessas mercadorias. A ementa da referida manifestação foi vazada nos seguintes termos:

"Transmissão de propriedade de bens e mercadorias  integralização de capital em outra sociedade  versão parcial do patrimônio do estabelecimento  empresa nova situada no mesmo prédio  incidência do ICMS  necessidade da emissão de Notas Fiscais".

Esse texto chama a atenção porque, conforme já dito, marca uma agressiva mudança de entendimento da Secretaria da Fazenda do Estão de São Paulo (Sefaz-SP). De sua leitura fica claro que a motivação inicial do fisco para se posicionar contra a antiga resposta à Consulta nº 280/94 foi aquilo que denominou falsa cisão, assim considerada como "cisão parcial, em que uma sociedade transfere uma parcela do seu ativo ou patrimônio para outra, permanecendo com uma parcela do patrimônio que não foi vertido". Segundo o entendimento firmado, a versão apenas de mercadorias não conforma, em si, a versão de todo o estabelecimento, nos termos do artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96, razão pela qual haveria a incidência do ICMS na transferência de titularidade das mercadorias e ativos da empresa cindida.

Em 2013 a Secretaria da Fazenda Paulista voltou a se deparar com a mesma indagação, em especial se há, ou não, ICMS em operações societárias de cisão. Fala-se, aqui, da resposta à Consulta nº 2.509/13, na qual o fisco, adotando a premissa de que lá se tratava de transferência integral do estabelecimento em razão da cisão, aplicou o artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96 para declarar a não incidência do ICMS.

Em 2016 o Fisco paulista voltou a se manifestar sobre o tema ao dar a resposta à Consulta nº 11.713/16. Lá se posicionou pela incidência do ICMS porque, naquele caso, havia a caracterização factual do que seria a dita falsa cisão, nos termos colocados na anterior resposta à Consulta nº 561/01. Com essa premissa, o fisco sustentou que, para a legislação do ICMS, o evento relevante não é a existência de uma cisão, total ou parcial, mas sim se o estabelecimento, como unidade autônoma, foi integralmente transferido, ou se apenas sofreu destaque de determinada parcela. Se foi integralmente transferido, então se aplica a não incidência do ICMS, nos termos do artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96. E, com isso, afirmou que, naquele caso específico, embora não tenha ocorrido o deslocamento físico, ou a saída de mercadorias e bens do ativo que foram apartados do estabelecimento original para ingressarem no estabelecimento existente, sediado no mesmo endereço  o Fisco considerou como saída a mudança de posse em função da alteração cadastral do estabelecimento.

Em 2018 foi publicada nova resposta à Consulta sobre o tema, a de número 17.276/18. Nela, o Fisco paulista entendeu pela não incidência do ICMS porque a operação lá analisada se revestia da condição de cisão integral, ou seja, na cisão houve a versão integral do estabelecimento, não apenas dos bens lá existentes. Havia, portanto, naquela oportunidade, a aplicabilidade do artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar 87/1996.

Ao cabo do que fora apresentado até aqui, é possível dizer que, segundo o Fisco paulista: a) apenas se aplica a não incidência do ICMS, na forma do artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar 87/96, quando, na cisão, houver versão integral do estabelecimento; e b) caso não haja versão integral do estabelecimento, apenas dos bens nele constantes, haverá a incidência do ICMS porque, neste caso, haverá caracterização da cisão parcial ou falsa cisão, como dito na Resposta à Consulta nº 561/01.

Penso, contudo, que o entendimento do Fisco não carrega fundamentos válidos.

Peço escusas aos colegas que atuam diariamente com Direito Societário. Mas entendo que a tal falsa cisão em verdade não existe, afinal, o destaque apenas parcial do patrimônio de uma empresa para outra é característica da própria cisão e, por essa específica razão, deve remanescer a aplicabilidade dos artigos 1º e 2º da Lei nº 6.374/89, bem como do artigo 232 do atual RICMS/SP, na forma interpretada pela resposta à Consulta nº 280/94.

Realmente, de acordo com o artigo 229 da Lei nº 6.404/76, a cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para outras sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, podendo a companhia cindida ser, ou não, extinta, a depender da versão total ou parcial de seu patrimônio. Ou seja, faz parte da natureza jurídica da cisão, ou melhor dizendo, da própria definição de uma cisão, a versão apenas parcial do patrimônio da empresa cindida a uma outra, de modo que o que o Fisco paulista chamou de cisão parcial, em verdade é uma das espécies de cisão, que pelo fato de ser apenas parcial não modifica em nada a sua natureza jurídica.

Assim, a falsa cisão não existe, porquanto nada mais é do que uma cisão. E, por isso, então a essas operações deve ser aplicado incontestavelmente o artigo 232 do RICMS/SP, pelo simples fato de o dispositivo disciplinar as obrigações acessórias relativas aos livros fiscais na hipótese de cisão. Esse dispositivo, aliado aos artigos 1º e 2º da Lei nº 6.374/89, leva à inexorável conclusão de que não pode (e não deve) incidir o ICMS nas versões de mercadorias a uma outra empresa no contexto da cisão, desde que não haja trânsito físico da empresa cindida à resultante da cisão. Admitir o contrário, como fez a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo na resposta à Consulta nº 561/01, é fazer letra morta de dispositivos expressos da legislação do próprio Estado de São Paulo.

Outro fundamento relevante a se opor à incidência do ICMS nessas operações.

A interpretação dada pelo Fisco ao artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar 87/96 não se alinha aos elementos basilares do próprio ICMS. É que o fato gerador do ICMS é a circulação de mercadorias. Nesse sentido, se esse é o fato gerador do ICMS, então as normas de não incidência do imposto devem objetivar, por óbvio, livrar a incidência dos fatos geradores que caracterizam o próprio tributo  a circulação de mercadorias.

Embora primárias, essas reflexões se afiguram relevantes porque dão a exata conta das operações que, não fossem normas de não incidência, seriam efetivamente tributadas. E essas operações só podem ser a circulação de mercadorias.

A alienação de um estabelecimento, de um fundo de comércio, não se assemelha em nada a uma operação de venda de mercadorias. É verdade que, com a alienação do estabelecimento, o adquirente recebe também as mercadorias que fazem parte do fundo de comércio. Entretanto, a vontade implícita ao negócio jurídico não é a aquisição de meras mercadorias, mas, sim, de todo o complexo de bens, ativos, instalações, ponto comercial, marcas, entre outras, que compõem o fundo de comércio. Ou seja, o negócio jurídico em questão é a alienação do fundo de comércio, não de mercadorias.

Por isso, a alienação de estabelecimento, mesmo que por via de cisão, já não estaria sujeita ao ICMS por motivo simples: não configura circulação de mercadorias, não significa venda de bens inseridos na mercancia. Ora, e se já não estaria no âmbito da incidência do imposto, não haveria razão nenhuma a um dispositivo legal trazer a não incidência tributária.

Disso resulta uma indagação relevante: qual o real conteúdo do artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96? Quais as operações que, em razão de seus termos, estão livres do ICMS?

Considerando as regras de incidência do ICMS, a única resposta correta é a de que o referido dispositivo legal exime do imposto a versão de mercadorias a terceiros no âmbito de uma cisão. É a única hipótese em que haveria a configuração do fato gerador, que só não vem a surtir efeitos pela existência do citado artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96.

Nesses termos, em uma cisão, a versão de mercadorias da empresa cindida a uma nova empresa é isenta de ICMS, devendo-se aplicar o artigo 3º, inciso VI, da Lei Complementar nº 87/96 e, no caso do Estado de São Paulo, também o 232 do RICMS/SP.

 


[1] CC/MG. Acórdão 20.057/10/1ª. PTA/AI 01.000156027-43.

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