Opinião

Fraternidade e políticas públicas: a experiência de sucesso das Apacs

Autor

  • Renata Lyra Alves Xavier

    é mestranda em Direito Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB) especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera e analista judiciária no Superior Tribunal de Justiça.

19 de março de 2021, 6h04

Inicialmente é preciso consignar o que a doutrina entende por princípio da fraternidade. A despeito de sua origem remontar à doutrina cristã, no Brasil pode-se perceber que a própria Constituição de 1988 aponta detalhes sobre a incidência desse princípio no nosso ordenamento. O preâmbulo constitucional fala em sociedade fraterna e o artigo 3º, I, do mesmo diploma afirma como um dos objetivos fundamentais do país a construção de uma sociedade solidária. 

Esses aspectos positivados do princípio da fraternidade no ordenamento constitucional apresentam, pelo menos, dois escopos da norma: 1) demonstram a intenção de que as normas, a partir da promulgação da Constituição, passem a observar o princípio da fraternidade no âmago de sua elaboração pelo legislador; e 2) evidenciam que o jurista também deve observar esse princípio como norteador na aplicação do direito. 

Dessa maneira, pode-se concluir que a fraternidade deve ser entendida como categoria política, eis que é um objetivo a ser buscado no país, de uma sociedade fraterna e solidária, e, portanto, deve estar presente na escolha do legislador e do chefe do Executivo ao determinar a realização de uma política pública. 

Mas também se encaixa como categoria jurídica, eis que se encontra positivada na Constituição como um escopo geral que orienta a sociedade, tornando sua observância, portanto, obrigatória por juízes e tribunais no momento da aplicação da lei.

Nesse sentido, o estudo do princípio da fraternidade dentro do Direito tem ganhado espaço, especialmente após experimentarmos uma maior consolidação do Estado social de Direito em que vivemos. Isso porque, ao nos recordarmos do tripé filosófico que foi o lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), é possível enxergarmos grande evolução e solidificação dos direitos de primeira e segunda gerações, que seriam correspondentes, respectivamente, aos direitos de liberdade e igualdade, mas a terceira geração, ou os direitos de fraternidade, ainda não detém muita robustez no nosso ordenamento.

Dessa forma, para um conceito mais concreto de fraternidade podemos dizer que elementos como solidariedade, no sentido de que é preciso ser responsável pelo outro e da não indiferença para o outro, são essenciais. Assim, é preciso olhar para o outro enxergando as diferenças e limitações e reconhecendo o outro como ele é. Na verdade, deve gerar a obrigação de cuidado e solidariedade entre os membros da sociedade.

Tendo isso em mente, existe um campo específico na nossa sociedade que há muito tempo salta aos olhos de todos os estudiosos da área social, que é a esfera penal. 

O sistema carcerário nacional enfrenta uma crise incessante há décadas. Os presos encaram a superlotação de presídios, muitas vezes sem uma sentença condenatória, o que agrava ainda mais a situação. O sistema penal brasileiro é injusto com o criminoso, pois não há dignidade alguma no cumprimento da pena — que não raras vezes é antecipado pela prisão preventiva —, tampouco há a necessária ressocialização do condenado — essencial para sua reinserção na sociedade —, ao mesmo tempo em que não satisfaz e nem se compadece da dor da vítima, que não se sente ouvida e não consegue falar, fato que é essencial para a superação de seu trauma. 

Nesse contexto, surge a ideia da justiça restaurativa, que traz uma alta carga do princípio da fraternidade. No entendimento do ministro e professor Reynaldo Soares da Fonseca, trata-se de um sistema em conceito aberto e em melhoria contínua. 

O presente texto não busca demonstrar os pilares técnicos da Justiça restaurativa, mas apenas fazer uma breve análise de um de seus casos de sucesso: a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac).

A APAC é uma entidade civil de direito privado, com personalidade jurídica própria, dedicada à recuperação e à reintegração social dos condenados a penas privativas de liberdade. Ela ainda opera como entidade auxiliar dos Poderes Judiciário e Executivo, respectivamente na execução penal e na administração do cumprimento das penas privativas de liberdade. 

Ela conta com uma metodologia pautada em conceitos de responsabilidade, autovaloração, trabalho e religiosidade na busca pela recuperação dos condenados e pode, a princípio, atuar em qualquer presídio. Os condenados são responsáveis pela sua recuperação, mas contam com a ajuda de toda a comunidade. 

A própria estrutura do local de cumprimento de pena é diferente, já que, por vezes, não conta com a presença de agentes penitenciários, e a presença de mulheres e outros voluntários etc. Essa é uma experiência que demonstra a possibilidade de haver um viés fraterno no regime de cumprimento de pena, que no nosso país, em geral, é moldado pelo esquecimento do preso e ausência de dignidade, fatores que são determinantes ao seu retorno ao meio criminoso e consequente fomento ao ciclo de crime sem fim em que se vê o Brasil.

Hoje existem 60 Apacs completamente implementadas no Brasil e um dos dados mais chocantes obtidos é a média de reincidência de seus membros, apenas 15% dos condenados que passaram por uma Apac voltam a delinquir, contra uma média de 80% no cenário nacional. 

A crescente criminalidade noticiada no Brasil junto com a superlotação de presídios, nos faz indagar por que não há maior interesse em propagar as Apacs por mais unidades da federação como uma eficiente política pública de diminuição de criminalidade e ressocialização do condenado?

No estudo da formação das políticas públicas, Howlett nos mostra que a montagem da agenda é parte essencial no ciclo de formação dessas políticas públicas. A agenda vai compreender um conjunto de fatores que determinam se vai ser do interesse (social, cultural, financeiro etc.) dos governantes e da sociedade a integração de determinado tema ou debate durante aquela legislatura, no intuito de gerar leis e políticas públicas necessárias para a boa gestão do país. Todas as figuras políticas vão participar (governantes, população, imprensa, instituições etc.), mas, claro, que cada um vai ter o seu peso, a depender da voz, do poder e da vontade que cada ator traz e representa. 

Nesse sentido, vislumbra-se a dificuldade que a comunidade carcerária tem de fazer voz na agenda nacional (a despeito da análise de qualquer ideologia que esteja atualmente no governo). Em geral, o que se vê é o espírito vingativo que o crime suscita, demonstrado por uma urgência na punição do culpado, sem preocupação quanto à sua recuperação. 

A experiência com a Apac envolve uma visão maior do crime e do sistema punitivo do nosso país. Apesar da necessidade de punição, a reeducação e reinserção do condenado, quando possível, também é um objetivo a ser almejado por toda a sociedade, com o intuito de se aproximar cada vez mais daquela sociedade solidária que determina a nossa Constituição. Veja que com isso não se quer dizer para deixar de lado a dor do trauma carregado pela vítima do crime. No entanto, a punição aliada à ressocialização do condenado traz consigo a diminuição da criminalidade e a possibilidade de uma sociedade mais pacífica e fraterna.

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  • é mestranda em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB), especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera e analista judiciária no Superior Tribunal de Justiça.

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