Opinião

Autonomia do Banco Central: uma questão delicada

Autor

  • Marina Michel de Macedo Martynychen

    é professora de graduação e de pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil (Unibrasil) doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e advogada associada ao escritório Clèmerson Merlin Clève.

19 de março de 2021, 12h12

A Lei Complementar 179/2021 dispõe a respeito da autonomia do Banco Central do Brasil (Bacen), órgão responsável pela estabilidade dos preços, eficiência do sistema financeiro e pelo controle das flutuações do nível de atividade econômica. Com isso, a autarquia de natureza especial passa a ser competente, também, pelo fomento ao pleno emprego.

A autonomia do Bacen, centrada nos pilares da "inconsistência temporal" e do controle da emissão monetária, serve como uma proteção ao órgão, de forma a evitar interferências indevidas, como ocorreu, semanas atrás, na Petrobras, pelo presidente da República. Essa autonomia evita, também, que os governos recorreram a mecanismos de senhoriagem para financiar déficits fiscais, o que pode contribuir para a geração de inflação.

A Lei 179/2021 estabeleceu pilares bem definidos para a gestão técnica, independentemente de movimentos políticos transitórios. O mesmo não se pode afirmar no que diz respeito ao mercado financeiro. A nova lei delimitou em seis meses o prazo exigido como quarentena dos profissionais que deixarem os cargos de comando. O ideal seria um prazo maior, como ocorre em outras carreiras técnicas da Administração Pública.

A questão, contudo, é complexa e o atual contexto, envolvendo a pandemia de Covid-19, talvez não tenha sido o mais adequado para a análise. O tema foi debatido e sancionado em poucas semanas, mais como resposta do mercado à instabilidade política presente hoje no plano federal. A rápida aprovação não significa a ausência de desafios para o Direito Financeiro.

Não se fala, aqui, em desafio em razão de possíveis discussões envolvendo a captura do órgão pelo mercado financeiro em detrimento do sistema político e do controle democrático. O ponto é outro: o argumento que serve como base da autonomia do BC (independência da política monetária) não diz respeito ao contexto dos últimos anos, em especial a 2020. O discurso tem origem em um momento no qual o excesso de liquidez (década de 1970) contribuiu para a materialização não só de um movimento inflacionário único, como, também, para uma forte crise da dívida pública na década seguinte, enfraquecendo os Estados.

Contudo, o atual momento é único. As décadas de 1990 e 2000 foram marcadas por baixa inflação, ocasionada pelo controle monetário, pela globalização de mercados, pela concorrência entre agentes e pelo aumento da produtividade, derrubando o mito de que "a política monetária é o principal fator que influência a inflação". Mas não é só. A crise de 2008 e, agora, a pandemia garantiram aos Bancos Centrais um papel peculiar: substituir o Fundo Monetário Internacional (FMI) por um modelo de cooperação monetária mundial com mecanismos contratuais mais flexíveis (rede de swaps cambiais), conforme ensina Camila Villard Duran. Diante desse novo rearranjo, os Bancos Centrais passam a ser uma peça política fundamental no âmbito internacional. 

Por outro lado, a capacidade contratual do Bacen leva a questionamentos a respeito do seu funcionamento, em especial, da sua relação com o Tesouro Nacional. Nesse sentido, destaca-se estudo elaborado por Leandro Maciel do Nascimento segundo o qual o campo jurídico nacional, por meio dos artigos 164 da CF e 39 da LRF, impedem o endividamento explícito do Tesouro Nacional perante o Banco Central. Contudo, há mecanismos sofisticados e implícitos de financiamento.

Tal financiamento gerou três consequências para as finanças nacionais: 1) aumento das operações compromissadas por parte do Bacen; 2) ocorrência de resultados positivos derivados da equalização cambial, o que levou ao depósito de bilhões na conta única do Tesouro Nacional; e, por fim, 3) o aumento expressivo na carteira do Bacen de títulos da dúvida pública. As três consequências contribuem de forma expressiva para elevar a dívida pública da União Federal.

Eis as razões pelas quais a autonomia do Banco Central é um desafio para o Direito Financeiro: além de acender o debate a respeito do papel político da atividade financeira do Estado, ela traz também questões contábeis e financeiras que tratam do orçamento da União, relacionadas ao controle do endividamento público — que, também, não pode ser deixado de lado ao se tratar de controle monetário e em um período de escassez de recursos.

A defesa da oposição à autonomia, nos tempos atuais, é utópica. Contudo, a sua aprovação, no atual contexto, é delicada. Ainda mais diante da formação de uma economia informacional, global e em rede, conforme destaca Manuel Castells. Tal situação agrava-se porque há, ainda, aspectos da relação entre Bacen e Tesouro Nacional, no Brasil, que devem se tornar mais claros para a sociedade brasileira, em especial, as condutas que promovem a dívida pública. E. sobre isso, a Lei 179/2021 pouco trata, eis que regula apenas formas de registros de operações.

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