ADI de Bolsonaro

Atuação de estados na pandemia já foi regulada e confirmada pelo Supremo

Autor

19 de março de 2021, 19h03

A ação direta de inconstitucionalidade apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro contra decretos estaduais que restringiram a mobilidade e a atividade econômica nos estados não tem fundamento jurídico, pode apresentar vícios formais e ainda atropela decisão do próprio Supremo Tribunal Federal, segundo especialistas consultados pela ConJur.

Alan Santos/PR
Alan Santos/PR

Nesta sexta-feira (19/3), o presidente protocolou, em seu próprio nome, uma ADI questionando decretos de três estados (DF, RS e BA), que restringiram atividades comerciais e circulação de pessoas, diante da emergência sanitária enfrentada pelo país e da iminência do colapso do sistema de saúde.

No entanto, na opinião de especialistas, o pedido não se sustenta nem às análises preliminares.

A primeira incongruência, apontada pela advogada constitucionalista Vera Chemim, é o fato de que a própria Lei 13.979/2020 (que dispõe sobre as medidas para o combate à crise da Covid-19), invocada por Bolsonaro em sua petição, já prevê que as autoridades de cada ente federativo (União, estados e municípios) são competentes para operacionalizar as medidas que forem necessárias para proteger a saúde da população.

Elival Ramos, professor de Direito Constitucional da USP, explica que os decretos administrativos devem, sim, se reportar às leis, mas que não há qualquer necessidade de que eles passem pelo Legislativo estadual, justamente por já estarem autorizados pela lei federal, editada pelo próprio presidente.

"Não faz nem sentido ele lembrar só agora que deveria ter editado lei estadual própria para fundamentar os decretos, um ano depois de ter saído a lei federal. A interpretação da Constituição, completamente equivocada, que parece estar sendo feita, é a de que decretos estaduais precisam se reportar a leis estaduais, e decretos federais, a leis federais, o que não acontece. Tome-se o pregão eletrônico, por exemplo, que é regulado por decreto em São Paulo e não tem uma lei estadual disciplinando", explica.

"É necessário, sim, apresentar fundamento legal para restringir liberdades. E se a lei federal não tivesse sido editada, os estados poderiam cada um editar sua lei estadual disciplinando isso, com debate legislativo. Não precisa porque já houve esse debate na esfera federal, e a autorização legislativa foi nacional."

Além disso, o próprio STF já decidiu que estados e municípios têm competência para administrar a crise sanitária em conjunto com a União, adotando todas as medidas indispensáveis, "desde que amparadas por orientações de autoridades médicas e sanitárias e dentro dos parâmetros peculiares a cada Ente Federativo, no que diz respeito à proporcionalidade e razoabilidade daquelas medidas", resume Chemim.

"Me parece que é equivocada a pretensão de Bolsonaro, na medida que os entes federativos ostentam competência para implementar essas medidas restritivas, como, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal", concorda Rafael Valim, especialista em Direito Administrativo, sócio do Warde Advogados. "Naturalmente, desde que isso seja feito com base em provas científicas, e não em meras opiniões dos governantes."

Maristela Basso, professora de Direito Internacional da USP, endossa esse ponto de vista. "Os decretos já estão autorizados por decisão do STF, ampla o suficiente para permitir qualquer medida de defesa das vidas que se encontram nos limites de seus estados e municípios", afirma. "Bolsonaro tenta criar cortina de fumaça para desacreditar governadores e prefeitos em uma clara disputa genocida de forças."

Para Elival Ramos, a própria premissa da ADI é "estapafúrdia". "Chega a ser diabólico um presidente dizer 'eu não tomo as medidas para conter uma emergência sanitária, e vocês [governadores e prefeitos] também não podem tomar'." 

"O que eu acho mais estarrecedor", prossegue, "é termos que discutir uma pandemia pelo viés de filigranas jurídicas, quando o esforço do Estado deveria estar sendo dirigido para comprar e distribuir vacinas". "O que Bolsonaro está fazendo é se preparar para a grave crise econômica que se anuncia: ele quer poder colocar a culpa nos prefeitos, nos governadores, na imprensa e no Supremo."

Vício formal
Para Saulo Stefanone Alle, especialista em Direito Constitucional do Peixoto & Cury Advogados, é possível que nem seja necessário analisar o mérito do pedido de Bolsonaro, porque ele pode padecer de um vício formal.

"É discutível a possibilidade de utilização de ação direta de inconstitucionalidade para confrontar decretos estaduais em cotejo com lei federal. Vale lembrar que o decreto deve sempre estar relacionado a uma lei, e sujeita-se normalmente a controle de legalidade. A lei é que, pela regra geral, está sujeita a controle de constitucionalidade. Há um problema formal, aqui", explica.

Mérito inquestionável
Diante das previsões já estabelecidas e do cenário de crise, no qual governadores e prefeitos se veem compelidos a agir por falta de coordenação de esforços em âmbito nacional, o Supremo ainda pode decidir sobre o principal argumento de Bolsonaro, o de que a edição dos decretos demandaria análise legislativa.

Nesse caso, explica Vera Chemin, os ministros podem adotar dois caminhos: um deles é o mesmo defendido por Elival Ramos, que parte do pressuposto de que já existe a Lei Federal 13.979/2020 disciplinando o tema e, portanto, governadores e prefeitos podem expedir seus respectivos decretos para regulamentar aquelas medidas de acordo com a sua realidade regional.

A outra possibilidade é que a Corte admita que é necessário o aval do Legislativo local para que as medidas sejam regulamentadas por decreto. Mas, "a despeito desse possível 'óbice' reconhecido como 'questões de caráter processual', ou preliminares, a verdade é que o 'mérito', isto é, as medidas regulamentadas nos decretos serão corroboradas pela Corte, por razões óbvias acima comentadas", opina Vera.

"É importante observar que nenhum direito fundamental previsto na Carta Magna é absoluto. Ou seja, o direito de ir e vir, que se encontra restringido pelos decretos impugnados junto ao STF, encontra amparo na própria Constituição, a partir do momento em que se pondera o direito à saúde e à vida relativamente à liberdade de ir e vir, diante da gravidade da situação em cada ente federativo", ressalva.

"Nada do que se está restringindo pode remeter a uma similaridade com um estado de exceção, como é o caso de decretação de estado de sítio e de defesa", conforme alegado por Bolsonaro na petição. "Cabe destacar que as restrições impostas durante um estado de defesa ou de sítio adquirem um caráter muito mais amplo e incisivo do que a restrição da liberdade de ir e vir (à noite), para evitar uma catástrofe ainda maior."

Clique aqui para ler a inicial
ADI 6.764

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!