Opinião

O consumidor e os tribunais

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18 de março de 2021, 16h13

O mês no qual este artigo é submetido aos leitores da ConJur tem relevância aos consumidores brasileiros, seja no campo comemorativo, seja no plano das conquistas efetivas.

A última segunda-feira (15/3) foi reservada, nos calendários oficiais, à comemoração do Dia Mundial do Consumidor.

A data é lembrada pelo discurso seminal do ex-presidente norte-americano (15/3/1962) John Kennedy, dirigido ao Congresso daquele país, o qual teve larga repercussão internacional.

A fala de John Kennedy potencializou o valor jurídico em torno da necessidade de proteger consumidores (como categoria jurídica), sob a quimera da vulnerabilidade. Lá se vão quase 60 anos.

Os grandes marcos protetivos do Brasil, nessa área, estão na Constituição de 1988 e na edição do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

A Lei Federal nº 8.078/1990 teve início de vigência, em terras brasileiras, há 30 anos, no dia 11/3/1991.

Entre as seis décadas do discurso kennediano e os 30 anos de vigência do CDC, fato é que a proteção legal dos consumidores brasileiros tem (e teve) concretude perante seus tribunais [1].

A relação de consumo é um fenômeno social que, de tão antigo, confunde-se até mesmo com o surgimento das primeiras economias organizadas [2].

O tempo obviamente se incumbiu de modelar diferentes sentidos para o termo jurídico consumidor, que só ganhou o atual significado com a feição massificada do capitalismo [3].

A relação jurídica de consumo, ao menos no Brasil, ganhou relevância no campo do Direito quando o Judiciário passou a dirimir conflitos entre consumidores e fornecedores, com soluções de intervenção para reequilibrar situações de abusos praticados contra os cidadãos [4].

Em patamar constitucional, a Carta de 1988 disciplinou pioneiramente a proteção jurídica do consumidor nas suas relações de mercado (artigos 5º, XXXII; 170, V; 24, VIII; e 48, ADCT).

O termo consumidor teve aparição em constituições anteriores, por exemplo, no campo tributário (artigo 22, §6º, CF/1967), aliás, como ainda hoje existe (artigo 155, VII, da CF/1988) [5].

Entretanto, os pleitos de cidadãos para corrigir distorções mercadológicas contra eles praticadas, por fornecedores de bens e serviços, antecede a Carta Política de 1988.

O Supremo Tribunal Federal, em julgado datado de 1941 (ACi 7.303, relator ministro Octávio Kelly), embora no campo do Direito Marcário, já dava garantia de proteção cidadã contra a inexatidão de informações de modo a evitar:

"… Confusão ou dúvida no espírito do consumidor, conduzindo-o a um engano na aquisição do produto, em prejuízo de sua legítima preferência".

O extinto Tribunal Federal de Recursos editou, em 1984, enunciado sumular (n° 172) que manteve a atuação obrigatória de farmacêuticos no fornecimento de medicamentos para consumidores, no que já se poderia considerar um prelúdio da hipossuficiência:

"As empresas distribuidoras de drogas, que não manipulem fórmulas nem forneçam medicamentos aos consumidores, não estão sujeitas à assistência técnica de farmacêutico".

O interesse jurídico sobre as relações de consumo não foi acidental. Desde o início da grande migração urbana (1950) [6], ano a ano, intercorrências contra consumidores só crescem[7].

O exemplo brasileiro de menosprezo aos direitos dos consumidores infelizmente é frondoso.

A fragilidade do consumidor brasileiro é aguçada por um inegável traço cultural de desrespeito ao cliente, dentro da lógica de se levar "vantagem em tudo" [8].

Outro problema quase congênito (e insolúvel) é a pouca capacidade dos atores de regulação, sobretudo do Poder Executivo, de acertar em medidas efetivas de restrição contra abusos no mercado [9].

Um desafio constante, ao leitor, é recordar de qualquer medida regulatória oriunda de agência regulatória nacional que tenha pacificado algum litígio relevante de consumo.

Cidadão brasileiro compra e, não raro, envolve-se em prejuízos conflituosos cuja solução real só é alcançada pela intervenção da Justiça. O traçado do tempo evidenciou esta realidade.

O volume de demandas é tanto que naturalmente desafia o Poder Judiciário a estabelecer e executar políticas públicas específicas para saldar o alto estoque desses litígios.

Os macrolitígios brasileiros, é bom lembrar, decorrem mais do comportamento coletivo de grandes fornecedores que assumem todo e qualquer desafio jurídico (o que é empiricamente atestado [10]), que de uma suposta cultura beligerante do brasileiro (o que é uma retórica).

A semana do consumidor mereceria, por parte dos grandes anunciantes, levar ao cidadão inovações para redução de litígios, mas, do contrário, tornou-se apenas uma nova black friday.

A transição entre o desafio de desjudicializar a solução de conflitos entre cidadãos e empresas não é fácil e está longe de soluções de alta efetividade.

Apenas a título de exemplificação atual, o ano de 2020, que se desenhava como o ápice de uma catástrofe sanitária brasileira anunciada, já está sendo superado pelo ano de 2021, a partir do cenário gravíssimo de apagão dos principais atores regulatórios do Executivo.

A conta da ineficiência, não há dúvidas, sempre será paga pelo consumidor brasileiro, dispensando-se, aqui, exemplificar mortes evitáveis por Covid-19 e um mercado em queda livre.

Os desafios do sistema de Justiça não são poucos, afinal, grandes problemas aos consumidores brasileiros pululam sem solução ordinária, o que inevitavelmente aportará aos tribunais.

E, voltando ao mês de março deste ano, ele foi palco de uma solução jurídica do Supremo que muito alenta ao cidadão brasileiro.

O STF começou a examinar, no dia 4, um dos principais temas envoltos com a proteção do consumidor brasileiro: o limite territorial das sentenças coletivas.

O início do julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.101.937/SP, da relatoria do ministro Alexandre de Moraes, desenha a conclusão de que os grandes problemas jurídicos tratados nas chamadas ações civis públicas continuarão a trazer soluções para todo território brasileiro.

Embora ainda faltem os votos de três ministros, está-se formando maioria no sentido de enterrar a vergonhosa pretensão dos bancos brasileiros de impedir que um juiz tome conhecimento de uma situação de amplitude nacional e sentencie apenas em sua comarca.

A luz inicial dessa solução, é bom lembrar, foi dada pelo competente ministro Luiz Felipe Salomão [11], do Superior Tribunal de Justiça, ao relatar a tese fixada no REsp n. 1.243.887/PR, que destacou que:

"O benfazejo instrumento da ação civil pública, que deve facilitar o acesso do consumidor à justiça, acabaria por dificultar ou mesmo inviabilizar por completo a defesa do consumidor em juízo, circunstância que, por si, desaconselha tal interpretação".

A importância desse tema é particular. O Brasil, longe de países europeus, tem brasileiros que não têm acesso à Justiça e, em alguns casos excepcionais, só serão reparados de graves injustiças quando alcançados por sentenças coletivas em seu favor [12].

 


[1] ALMEIDA, João Batista de, Manual de direito do consumidor. Saraiva Educação SA, 2017.

[2] ERDKAMP, Paul PM. Beyond the Limits of the 'Consumer City'. A Model of the Urban and Rural Economy in the Roman World. Historia: Zeitschrift fur Alte Geschichte, p. 332-356, 2001.

[3] ERDKAMP, Paul PM. Beyond the Limits of the 'Consumer City'. A Model of the Urban and Rural Economy in the Roman World. Historia: Zeitschrift fur Alte Geschichte, p. 332-356, 2001. Ver, também: SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Ed. Unesp, 2017.

[4] SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. Ed. Atlas, 2013.

[5] No campo infraconstitucional, o termo é encontrado com facilidade também em normas de Direito Penal, referenciando-se aos crimes relacionados com entorpecentes (tráfico e consumo).

[6] MARQUETTI, Adalmir A. Progresso técnico, distribuição e crescimento na economia brasileira: 1955-1998. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 32, n. 1, 2002.

[7] RICE, David A. Exemplary Damages in Private Consumer Actions. Iowa L. Rev., v. 55, p. 307, 1969. Em continuidade ao estudo: HOWELLS, Geraint; WEATHERILL, Stephen. Consumer protection law. Routledge, 2017.

[8] FREDDO, Antonio Carlos. O Brasil hoje: uma visão sociológica. Brazilian Journal of Public Administration, v. 32, n. 3, 1998.

[9] CARDOSO, Adalberto Moreira; LAGE, Telma. As normas e os fatos: desenho e efetividade das instituições de regulação do mercado de trabalho no Brasil. FGV Editora, 2007. Eu tive, também, oportunidade de descrever a fragilidade da regulação brasileira, especificamente no campo da proteção dos consumidores: in, Segurança Jurídica e Protagonismo Judicial: desafios em tempos de incertezas. Estudos em homenagem ao Ministro Carlos Mário da Silva Velloso. Jurisdição em conflitos de consumo massificados: paternalismo ou adequação do mercado a marcos legais de convívio equilibrado com sujeitos vulneráveis?. Rio de Janeiro, Ed. GZ, p. 1029 (Werson Rêgo, Coord).

[10] Conferir, a respeito, o brilhante “Relatório Analítico Propositivo do Conselho Nacional de Justiça acerca dos maiores litigantes em ações consumeristas: mapeamento e proposições, 2018”.

[11] Com toda licença e homenagens sinceras, Ministro este que aniversaria exatamente no dia 18/03 – data na qual está programada a publicação deste artigo.

[12] Sentenças provenientes, naturalmente, de ações propostas pelo Ministério Público, Defensorias Públicas, Ordem dos Advotados do Brasil e Entidades da Sociedade Civil Organizada (ONGs).

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