Será que a burrice tem limites? Uma epistemologia da estultice
18 de março de 2021, 8h01
Todos já devem ter lido os conselhos que um pai dá ao seu filho Janjão ao completar 21 anos: você que tem inópia mental, será um medalhão. Em síntese, o pai diz ao seu filho que ele será um idiota com chances de se dar bem. Confiram no conto "Teoria do Medalhão", de Machado de Assis.
Preocupados em medir a burrice humana, um pool de universidades (Shimun University, Scheißwald Universität e Universidad de Matocagao III) e institutos (Imperial Instituto Brás Cubas e Navah Institute) está pesquisando o tema.
Miremos bem a foto. Os pesquisadores ficaram horas observando-a. Ainda não se sabe como será realizada a pesquisa. Os cientistas sabem que há dados objetivos, como o da foto, que podem dar o start. Um dos cientistas sugere voluntários e pessoas pesquisadas passivamente. Isto é, os voluntários serão analisados em blind review (uma parte recebe fake news e outra parte a mesma notícia trocando apenas os personagens). Outros serão analisados sem que saibam — o problema será ao final conseguir a autorização dos pesquisados. Ou se saberão entender o que assinarão.
Também será feita uma pesquisa sobre se é possível apreender a ser burro. Isto é: seria burrice uma ciência? Voluntários serão submetidos a aulas com currículo como "negacionismo I, II e III", "formação de grupos de WhatsApp I, II e III" e coisas desse jaez. Ao final, a pesquisa buscará responder à pergunta: o participante saiu mais burro do que entrou? Outra equipe analisará simplesmente alunos de algumas faculdades, como participantes passivos. No Direito isso será muito mais fácil de fazer.
O texto-base para o pool que fará as pesquisas é "Teoria do Medalhão", de Machado. Haverá teste sobre o conto. Aquele participante que não entender já irá para a classificação sênior. Pulará etapas.
2) Da ficção à realidade
Fazendo uma epistemologia sobre a imagem acima e falando, agora, a sério, digo que não concordo com a frase "uma imagem vale mais que mil palavras". Uma palavra é que vale mais que mil imagens.
Sim. Mas, todavia, porém, contudo, entretanto… Palavra já não há. Vejam de novo, por favor, a imagem.
O que dizer? "No hay banda", como em "Mulholland Drive" (D. Lynch). Mas mesmo assim… Ouvimos a banda tocar. E segue esse espetáculo diário da barbárie.
Uma democracia tão jovem que logo já se transformou em um arremedo de pequenos Leviatãs. E se todos são Leviatãs, se todos são auctoritas — rejeitam o Direito, a ciência, a astronomia, só aceitam a própria autoridade num empirismo mequetrefe —, não há legem: só há um estado de natureza piorado.
Pior: uma democracia jovem atacada de dentro por pequenos Leviatãs, a partir de seus próprios fundamentos. Porque é isso. A "liberdade de expressão" usada para atacar o Supremo Tribunal do país, o Parlamento, as instituições. A "liberdade de ir e vir" usada para infectar os outros sem máscara por aí. E se exibir dando tiros. E ameaçando ministros do STF de impeachment(?). E fazendo passeatas buzinando na frente da casa de ministros. E quando um sujeito desses é processado, diz que está doente, usa remédios e que está arrependido. E grita pela liberdade de imprensa. Para poder a extinguir…
Como chegamos a esse ponto? Como é possível que tenha virado normal a cena de um policial tirando foto de um reacionário pedindo "julgamento militar" (sic) para ministros do STF? Julgamento militar? Baseado em quê? Como assim? Do que esse sujeito está falando? E o policial achou bonito? Palavra, que falta me faz. Que nada seja onde fracassa a palavra, dizia meu poeta preferido. E a máscara? O policial errou duas vezes. E outro é conivente. E os de trás, que olham a cena, são cúmplices.
Mas sabem o que é pior? Temos culpa nisso. Uma imprensa sem critério, que fez — e faz — pouco caso do discurso público e, em geral, sempre quis impor suas próprias narrativas de momento sobre quaisquer critérios compartilhados. Antes do julgamento das ADCs, a imprensa dizia: "Vão liberar 190 mil criminosos"… E faculdades, nos mais variados cursos, formando fascistoides. Muitos janjões.
E aí há não há discurso público. Não temos uma linguagem compartilhada. Não falamos as mesmas coisas. Na nossa Babel, é aceitável vermos cenas como essas. Porque perdemos a capacidade de comunicação. E de indignação. Prova disso é a inutilidade desta coluna. O sujeito da foto é que está certo, dirão alguns.
O filósofo Heidegger chamava a isso de Gerede, tagarelice. Falatório. O dito por aí. "Dizem que…". A repetição em jargão daquilo que só faz sentido num contexto que já não existe mais. "Democracia", "AI-5", "julgamento militar". Essa gente nem sabe o que é isso. São slogans para demonstrar apoio a alguma coisa. Não falam nos conceitos de verdade. Só falam sobre o que é dito como tal.
O problema é que só há falatório. E aí quem tenta reconstruir a história institucional do nosso vocabulário é que está errado. Claro: num país de fugitivos, como é visto quem anda na contramão?
O solipsismo venceu. O homem comum, o solus ipse, o viciado em si mesmo, ganhou a parada.
Como em Kafka, a arma mais mortal das sereias hoje só pode ser o silêncio.
E estamos tão perdidos que Kafka hoje, fosse ensinado nas escolas, teria perdido seu caráter de absurdidade.
Alô Atwood, Orwell, Huxley: nossa distopia é verdadeira e é um mundo em que falar sobre distopias já virou quase Gerede. Puro falatório.
É ou não é kafkiano?
Por isso, a tal pesquisa desse pool, de mera ficção aqui desenvolvida, pode se tornar realidade. E pode trazer respostas para tanta perplexidade.
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