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Opinião: Covid-19, vacina e avanços legislativos

18 de março de 2021, 18h10

Por Redação ConJur

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A vacinação em massa é, sem sombra de dúvidas, a principal esperança para a contenção definitiva da pandemia da Covid-19. Ela é possível. A comunidade científica internacional envidou esforços e, em tempo recorde, produziu imunizantes capazes de derrotar o atual "inimigo número um" da humanidade, salvar vidas e estabelecer uma perspectiva temporal mais concreta para a recuperação da economia.

O desafio é fazer com que as vacinas sejam disponibilizadas em doses suficientes para toda a população, no menor prazo e sem interrupções. Ninguém pode ficar para trás. Para tanto, cabe ao poder público, tal como coube à ciência, envidar os devidos esforços administrativos e políticos, suplantando diferenças e engajando todos os setores da sociedade, seja público ou privado. Promover ações integradas, objetivas e eficazes, tendo em mente a interdependência de nossas economias e os imperativos de moralidade e humanidade, é o maior teste possível de liderança que ora se impõe à comunidade política mundial.

Em artigos anteriores sobre aspectos legais e pragmáticos para a operacionalização da vacina, havíamos sugerido como desafiador paradigma social a implementação de uma coalizão nacional harmônica, interpoderes e federativa para o enfrentamento da Covid-19. Nós a reiteramos aqui, não sem antes destacar a importância das intervenções legislativas para a promoção de políticas públicas marcadas pela eficiência, racionalidade regulatória e segurança jurídica, sobejamente necessárias na mais grave fase pandêmica do Brasil.

Introdução à MP nº 1.026/21
A Medida Provisória nº 1.026 foi editada pelo governo federal em 6 de janeiro de 2021 para dispor sobre medidas excepcionais relativas ao Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. Com imediata força de lei, por desiderato constitucional, a norma trouxe avanços essenciais ao combate da pandemia no Brasil e permitiu que outros importantes aspectos fossem discutidos e pautados, num ritmo legislativo acelerado.

Isso porque as medidas provisórias ainda que plenamente vigentes ao serem editadas devem ser submetidas à aprovação congressual, apreciadas por deputados e senadores no prazo de 60 dias, sendo seu conteúdo passível de alteração. Foi justamente isso o que ocorreu: a MP nº 1.026/21 foi aprovada, com alterações, e convertida em lei, de nº 14.124, de 10 de março de 2021.

Lei nº 14.124/21: ratificação e alterações à medida provisória
A essência da MP nº 1.026/21 foi mantida pelo Congresso Nacional. A Lei nº 14.124 a sucedeu com poucas alterações substanciais de conteúdo. Em análise comparativa, identificam-se 204 diferenças entre o texto constante da MP e o texto da lei em vigor. Em grande maioria, as intervenções foram relacionadas à forma, ao estilo de escrita, à técnica legislativa, à gramática e à concordância verbal. Não são desimportantes, porquanto modificações redacionais podem ensejar alterações semânticas. No caso em apreço, todavia, pode-se dizer que as alterações de fundo foram reduzidas.

A Lei nº 14.124/21 ratificou a autorização concedida ao poder público para firmar contratos e instrumentos congêneres com dispensa de licitação e possibilitar a aquisição de vacinas e insumos e a contratação de bens e serviços essenciais ao enfrentamento da Covid-19, todos em regime administrativo simplificado. A implementação há de observar o previsto no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação, elaborado e coordenado pelo Ministério da Saúde.

A lei incluiu no rosário de exceções aos regimes jurídicos vigentes os medicamentos contra a Covid-19 que, tal como as vacinas, insumos e outros itens essenciais, poderão ser previamente adquiridos ainda que pendentes de registro sanitário ou autorização de uso emergencial. Há, todavia, uma diferença fundamental entre os termos "aquisição" e "aplicação", sobretudo no que tange às vacinas.

De acordo com a novel legislação, a aplicação das vacinas no Brasil só deverá ocorrer após a Anvisa no prazo de até sete dias úteis ou até 30 dias, em determinados casos conceder autorização: 1) excepcional de importação; 2) temporária de uso emergencial; ou 3) de registro sanitário. A modalidade "excepcional de importação" não constava da medida provisória, tendo sido mais um caso de inclusão durante o processo legislativo.

Outra inovação promovida pelo Congresso Nacional foi permitir que os Estados, os municípios e o Distrito Federal pudessem adquirir, distribuir e aplicar vacinas contra a Covid-19, condicionados à eventual inoperabilidade prática da União em cumprir o plano de ação por si coordenado. Nesse ponto, em específico, há margem suficiente para variadas interpretações jurídicas, a amparar possíveis sendas políticas, impulsionadas pela vivência do momento mais severo da pandemia no país.

Nada obstante, imperioso destacar que o critério básico para regular a utilização, no Brasil, dos itens essenciais é a existência de registro ou autorização para uso emergencial aprovada por, no mínimo, uma autoridade sanitária estrangeira. O critério não desonera a apreciação técnica da Anvisa, mas simplifica os seus procedimentos internos.

A medida provisória contemplou, inicialmente, autoridades sanitárias de cinco países: Estados Unidos, União Europeia, Japão, China e Reino Unido. O Congresso, por sua vez, ampliou este rosário, homologando as autoridades sanitárias de diversos outros países, entre os quais: Rússia, Índia, Coreia do Sul, Canadá, Austrália e Argentina. Em todos os casos, condição para o reconhecimento da autorização conferida por autoridade sanitária estrangeira é a obtenção de certificação internacional nível IV pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ou pelo International Council for Harmonisation (ICH) e pelo Pharmaceutical Inspection Co-operation Scheme (PIC/S).

Por fim, no que atine à Lei 14.124/2021, cumpre observar que ela se aplica, in verbis, aos atos praticados e aos contratos ou instrumentos congêneres firmados até 31 de julho de 2021, independentemente do seu prazo de execução ou de suas prorrogações. A partir de então, restará inócua para novos atos. Ao que tudo indica, far-se-á necessário intervenção legislativa para dilação desse prazo, o qual, cogita-se, foi assim estipulado para pressionar o poder público a agir em caráter de urgência urgentíssima.

Resolução nº 475/21: a regulamentação da Anvisa
Nos termos da Lei nº 14.124/2021, a Anvisa publicou a Resolução nº 475, de 10 de março de 2021, que dispõe sobre procedimentos administrativos e requisitos técnico-operacionais, e se aplica, sobretudo, às empresas aptas e interessadas a titular registros no Brasil, fabricar ou importar medicamentos, relacionados ao enfrentamento da Covid-19.

Para que a autorização seja concedida pela autoridade sanitária brasileira, a empresa deve apresentar pedido de acordo com as diretrizes normativas e disponibilizar informações, relatórios, dados e resultados, capazes de comprovar as boas práticas de fabricação, qualidade, eficácia e segurança do medicamento ou da vacina objeto da solicitação. A Anvisa, vale constar, poderá conceder autorização, de acordo com seus critérios, independente de aprovação prévia de outra autoridade sanitária internacional.

No que tange ao prazo de análise decisória, a resolução estabelece que, tratando-se de vacina, há que se efetivar a autorização em até sete dias úteis, quando o desenvolvimento clínico for realizado no Brasil ou o parecer técnico de autoridade estrangeira comprovar padrões de qualidade, de eficácia e de segurança. Caso não haja relatório estrangeiro ou o produto não seja desenvolvido no Brasil, o prazo será de até 30 dias o mesmo atribuído a todos pedidos relacionados à medicamentos contra a Covid-19,

Dentro do prazo estabelecido, fica a critério da Anvisa aprovar pedido de autorização sob compromisso de posterior atendimento a condicionantes, ou requerer a realização de diligências para eventual complementação de documentos e esclarecimentos técnicos, caso em que a contagem do prazo é suspensa.

Consta da regulamentação, ainda, que medicamentos e vacinas autorizados devem ser destinados, preferencialmente, a programas de saúde pública do Ministério da Saúde. Não se vê, portanto, qualquer proibição legal ou normativa à utilização por parte da iniciativa privada. O Poder Legislativo, por sua vez, se debruçou sobre o tema ao apreciar o Projeto de Lei nº 534, de 23 de fevereiro de 2021, de autoria do senador, e ora presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, o qual foi transformado em norma jurídica no mesmo 10 de março, com a promulgação da Lei nº 14.125/2021.

Lei nº 14.125/21: responsabilidade civil e inserção da iniciativa privada

A Lei nº 14.125 dispõe sobre a responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19; e a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado.

Na prática, a norma ampliou o rol de cláusulas especiais admitidas nos instrumentos contratuais de excepcionalidade pandêmica para, em notório atendimento a condicionantes apresentadas pela fabricante Pfizer que já detém registro sanitário definitivo autorizado pela Anvisa garantir a disponibilidade de mais doses de vacinas e propiciar segurança jurídica aos servidores e gestores públicos.

Noutra vertente, a lei permitiu a aquisição direta de vacinas pela iniciativa privada, com regramentos específicos: a) até que finalizada a imunização dos grupos prioritários, qualquer eventual dose adquirida há de ser doada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e inserida no plano nacional de vacinação; e b) após imunização dos grupos prioritários, metade das doses adquiridas devem ser também doadas ao SUS e, as demais distribuídas e aplicadas gratuitamente pela entidade.

Importante registrar que a Lei nº 14.125/21 foi objeto de três vetos presidenciais, a serem apreciados a qualquer momento em sessão do Congresso Nacional. Atenção especial é devida à possibilidade de o Parlamento tornar eficaz dispositivo que permite dessa vez, enquanto perdurar a pandemia —a  Estados, municípios e Distrito Federal adquirir vacinas em caráter suplementar e com recursos da União. Permite, ainda, a aquisição direta e, excepcionalmente, com recursos próprios, caso o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação atrase ou seja descumprido.

Reflexões conclusivas
Os esforços legislativos são muitos e devem ser reconhecidos. Decerto distam do horizonte do ideal, mas oferecem avanços inegáveis, os quais permitem a efetivação de políticas públicas emergenciais. Em plena pandemia, o Congresso Nacional se reinventou e passou a deliberar de forma 100% remota ou híbrida. Os sistemas de deliberação remota do Senado Federal e da Câmara dos Deputados do Brasil foram respostas pioneiras e tempestivas à crise mundial.

No caso concreto sob análise, há ainda diversas lacunas e incertezas, as quais, em grande parte, serão judicializadas. Cabe ao Poder Judiciário, portanto, agir com a urgência requerida, mas também com a responsabilidade e o equilíbrio esperados, para uniformizar entendimentos e pacificar relações.

Não basta que a vacina exista, ela precisa estar disponível, chegar a todos e ser aplicada, no menor prazo e sem interrupções. Para tanto, compete a todos os poderes estarem de mãos dadas, com independência e harmonia, insertos numa coalizão nacional interinstitucional e com efetivo engajamento da sociedade civil, da iniciativa privada e das instâncias diplomáticas. O inimigo de todos é invisível, mas tem nome e pode ser derrotado: Covid-19.

Thomas Law
Bruno Barata
Sóstenes Marchezine
Bruno Martins
Clarita Costa Maia

são advogados e, juntos, compõem a diretoria da Comissão Especial Brasil/ONU de Integração Jurídica e Diplomacia Cidadã da OAB Nacional (Cebraonu)