Opinião

A batalha entre servidores e jurisdicionados: cadê o espírito de servir?

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18 de março de 2021, 10h49

"The country can't pretend to ignore its people's cries. You are the government. You are jurisprudence. You are the volition. You are jurisdiction. And I make a difference too" [1].

O trecho da música indica bastante o caminho seguido pelo Judiciário brasileiro, na contramão da democracia participativa — que deveria ser uma das tônicas do nosso Estado democrático de Direito [2]. Ao contrário do que a doutrina deseja, e como se não bastasse a decadência (não tão) silenciosa do contraditório [3], a pandemia acelerou também o esvaziamento do espírito de servir nos tribunais.

Enquanto o CNJ tenta — numa atuação contrafática [4] , por meio da Resolução 372/2021 (que institui o Balcão Virtual), estabelecer a prática do atendimento remoto, a realidade se mostra muito distante dessa pretensão. Até pouco tempo, prestigiavam-se os atos normativos que impediam o fornecimento de informações por telefone e por e-mail [5], talvez a prática mais fielmente seguida pelos servidores do Judiciário. Aliás, o costume se tornou tão forte, que a Corregedoria do TJ-SP precisou dizer que os servidores não deveriam impedir a comunicação por telefone [6].

O mais surpreendente, no entanto, não é essa atitude dos servidores; afinal, nunca fez parte da cultura do Judiciário brasileiro a ideia de "espírito de servir". Aliás, verdade seja dita, poucas instituições do serviço público pregam essa ideia. A afirmação não depende de comprovação empírica; basta perguntar aos magistrados se eles se identificam como "servidores" (seja no sentido literal ou no sentido de "servidor público") e se entendem que trabalham para os jurisdicionados e advogados. O Estatuto da Advocacia e da OAB sempre foi vilipendiado pela dificuldade em se obter contato direto com o juiz (artigo 7º, VIII, da Lei 8.906/94) [7]… O muro da assessoria se mostra intransponível por muitas vezes.

Na verdade, o que surpreende é ver que se aproveitaram da pandemia para aniquilar, de uma vez por todas, o espírito de servir, de modo que a situação piorou. Não se nega que há cartorários, assessores e magistrados que incorporaram à sua rotina o dever de atender partes e advogados mesmo à distância. Todavia, diversos juízos estão incomunicáveis até mesmo por telefone ou por e-mail, não obstante provimentos das corregedorias estabelecendo que essa forma de atendimento ao público é prioritária [8]. Alguns magistrados se recusam a fazer qualquer atendimento ao vivo (seja por telefone ou por videoconferência), limitando-se a receber as razões escritas, por memorais ou por e-mails; o contato pela via oral vem sendo dizimado.

Confirma-se, paulatinamente, a ideia de que o jurisdicionado se tornou verdadeiro inimigo do Judiciário [9]: não consegue se comunicar pessoalmente; as petições não são mais lidas; as decisões não são fundamentadas; os embargos de declaração são etiquetados; os artigos do CPC que privilegiam o contraditório têm sua eficácia reduzida pela jurisprudência (artigos 9º, 10º e 489º, §1º) [10] [11].

A solução, no entanto, vem na forma de um anti-herói: as corregedorias e o CNJ somente admitem reclamações não anônimas, mediante identificação completa do reclamante (algumas exigem até indicação do número do processo!). Ora, qual advogado —– em sã consciência — dará esse presente de grego ao seu cliente, declarando guerra pública aos servidores que atuam no caso? Os órgãos de controle e de fiscalização não devem atuar apenas quando os advogados atingiram grau de insatisfação que lhes permita ignorar a possibilidade de uma retaliação processual; os tribunais funcionam para os jurisdicionados, e não para os servidores; os mecanismos de abertura/recebimento de reclamações não podem existir para proteger os servidores, mas, sim, para melhorar a qualidade da função desenvolvida (função que precisa se desenvolver mediante participação). Nunca é demais lembrar que "corregedoria" vem de "co-reger" (comandar em conjunto), e não de "proteger".

A jurisdição — perdoe-se a insistência — é função do Estado, que opera numa lógica de democracia participativa; participação que se desenvolve por meio do diálogo (oral e escrito). Juiz não pode ser juiz sozinho; servidores não são oniscientes, tampouco imunes a erros. Por isso, o contato constante com os advogados é indispensável como mecanismo de melhoria da prestação jurisdicional.

Aliás, evitando-se argumentos falaciosos, eventual falta de recursos (humanos e financeiros) não pode servir como justificativa para essa postura antidemocrática. Isso porque a falta de recursos, em última análise, prejudica o tempo útil do processo; sacrificar a qualidade para ganhar em tempo não é uma solução. A bem da verdade, por força do afã de servidores para cumprirem metas em seus próprios juízos, os processos têm recebido decisões piores e o suposto tempo que se ganharia pela supressão do contraditório (e de qualquer tipo de contato) acaba se convertendo em recursos. De todo modo, ainda que o tempo fosse efetivamente reduzido, isso não poderia ser feito com o sacrifício do contraditório (esse não pode ser um jogo de soma-zero).

Enfim, o presente texto é um grito de desespero e de ajuda, para que medidas sejam tomadas com a finalidade de criar/restaurar espírito de servir nos servidores, já que ninguém é obrigado a ingressar ou a permanecer no serviço público; fica quem quer e serve quem fica. Para isso, não só atos normativos devem ser editados (normalmente, atuando "para inglês ver"), mas a fiscalização deve ser recorrente e efetiva, permitindo-se reclamações anônimas para provocar a apuração de irregularidades.

Em outras palavras, não se defendem punições descabidas, tampouco instauração de processos administrativos de forma irresponsável, mas apenas um canal de reclamações e de acompanhamento da atividade de apuração dessas reclamações, com as providências cabíveis.

 


[1] Bad Religion, "You Are (the Government)". Tradução livre: “O país não pode ignorar o choro de seu povo. Você é o governo. Você é jurisprudência. Você é a vontade. Você é jurisdição. E eu também faço a diferença.”

[2] “O Estado democrático não se compraz com a ideia de atos repentinos, inesperados, de qualquer dos seus órgãos, mormente daqueles destinados à aplicação do Direito. A efetiva participação dos sujeitos processuais é medida que consagra o princípio democrático, cujos fundamentos são vetores hermenêuticos para aplicação das normas jurídicas.” (CUNHA, Leonardo Carneiro. A atendibilidade dos fatos supervenientes no processo civil: uma análise comparativa entre o sistema português e o brasileiro. Coimbra: Almedina, 2012, p, 61-62.)

[3] LIPZST, Marcos. Réquiem do contraditório e da participação. Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/marcos-lipzst-requiem-contraditorio-participacao.

[4] “O sistema processual brasileiro é um ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz imerso na busca por otimização numérica de seus julgados e as partes (e seus advogados) no âmbito de uma litigância estratégica (agir estratégico1) com a finalidade de obtenção de êxito. Esta patologia de índole fática não representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo, como garantia, deve ofertar. Ao se partir desta constatação cabe ao direito, dentro de seu pressuposto contrafático, ofertar uma base normativa que induza um comportamento de diálogo genuíno no qual estes comportamentos não cooperativos sejam mitigados.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 3ª ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 61.).

[5] Consolidação Normativa da Corregedoria do Estado do Rio de Janeiro – Parte Judicial: “Art. 150. Ao Escrivão ou Responsável pelo Expediente Chefe de Serventia, hierárquica e funcionalmente subordinados ao Juiz, incumbe, dentre outras funções e deveres: (…) XXI – prestar informações sobre o andamento dos processos ou designar servidor para fazê-lo, sendo vedada a prestação de informação por telefone ou por e-mail”.

[7]Art. 7º São direitos do advogado: (…) VIII – dirigir-se diretamente aos magistrados nas salas e gabinetes de trabalho, independentemente de horário previamente marcado ou outra condição, observando-se a ordem de chegada;”

[8] A título exemplificativo, merece destaque o Ato Normativo Conjunto TJ/ CGJ n. 25/ 2020: “Art. 13. A primeira etapa do Plano de Retorno programado às Atividades Presenciais do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, terá início em 29 de junho de 2020, observando o percentual máximo de 25% (vinte e cinco por cento) do quadro da respectiva unidade judiciária ou administrativa, com efetivo mínimo de ao menos 1 (um) servidor por unidade, devendo o quantitativo remanescente funcionar em regime obrigatório de trabalho remoto (home office). (…) 2º. Não haverá atendimento presencial ao público, que deverá ser realizado remotamente pelos meios tecnológicos disponíveis. (…) Art. 21. Os atos processuais como audiências, sessões dos órgãos julgadores do Tribunal de Justiça e da Turma Recursal serão realizados, preferencialmente, por meio de recurso tecnológico de videoconferência ou sessão de julgamento virtual por meio eletrônico, de acordo com a normatização interna. Parágrafo único. As audiências e sessão serão realizadas, sempre que possível, por videoconferência, preferencialmente pelo sistema CISCO/WEBEX disponibilizado pelo CNJ, possibilitando-se que o ato seja efetivado de forma mista, com a presença de algumas pessoas no local e participação virtual de outras que tenham condições para tanto, observando-se o disposto no artigo 18 da Resolução CNJ nº. 185/2017. Art. 22. Somente em caso de impossibilidade para a realização de atos processuais por meio dos recursos tecnológicos disponíveis, e desde que devidamente fundamentados pelo magistrado e tendo alcançado a terceira etapa de retorno das atividades presenciais, poderão ser realizados na forma presencial os seguintes atos: I – audiências que envolvam réu preso; II – audiências relativas a processos que envolvam adolescentes internados em conflito com a lei; III – outras situações reconhecidas pelo magistrado, para fins de evitar perecimento de direito.”

[9] “A percepção geral é de que a advocacia se tornou um exercício diário de humilhação e o Judiciário tem visto o jurisdicionado como um inimigo a ser abatido, mediante decisões genéricas que satisfaçam apenas as estatísticas do juízo.” (LIPZST, Marcos. Réquiem do contraditório e da participação. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-07/marcos-lipzst-requiem-contraditorio-participacao.) STRECK, Lenio. Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos. ConJur. Publicado em: 28.7.16. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jul-28/senso-incomum-advocacia-virou-exercicio-humilhacao-corrida-obstaculos.

[10] AInt no REsp 1.695.519/MG; REsp 1.755.266/SC; EDcl no RESP nº 1.280.825/RJ. Merecem destaque os absurdos enunciados aprovados pela ENFAM que bombardeiam, de forma inconstitucional, as previsões legislativas do CPC em prol do contraditório: https://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/ENUNCIADOS-VERS%C3%83O-DEFINITIVA-.pdf.

[11] Fazendo crítica pertinente a essa postura: PEIXOTO, Ravi. Os Caminhos e Descaminhos do Princípio do Contraditório: a evolução histórica e a situação atual. Revista de Processo, n. 294, 2019, p. 121-145. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 27-28. NUNES, Dierle; DELFINO, Lúcio. Enunciado da Enfam mostra juízes contra o contraditório do novo CPC. ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-03/enunciado-enfam-mostra-juizes-contraditorio-cpc.

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