Opinião

A politização camuflada

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17 de março de 2021, 16h10

Texto recente assinado pelo juiz do trabalho Otávio Calvet faz duras críticas à sentença proferida por outra colega do mesmo Tribunal Regional do Trabalho. Trata-se de uma ação em curso, ainda sujeita a recurso(s) e individualizada pela indicação das partes e do número do processo. Já no início, o autor adjetiva a manifestação de "breve artigo científico" e ressalva que não se trata de um ataque pessoal. 

Sempre acreditamos que a ciência fosse avessa a exortações emocionais, pautando-se pela fria racionalidade. E emoção é o que não falta no artigo, a começar pela suposta adoção do ponto de vista do cidadão comum, o cumpridor de seus deveres que, mesmo assim, se vê enredado por um sistema legal arbitrário no qual juízes fabricam e impõem obrigações na falta ou contra a lei.

Os excessos transbordam por toda parte do artigo, do uso de expressões dramáticas às ironias. Em dado momento, a fundamentação da sentença é comparada com um filme de terror. Não é de se admirar que o autor termine dizendo que morre de medo dos juízes do trabalho. Com isso, o texto se aproxima muito mais do jornalismo militante do que da produção científica. A lógica é do "nós" e "eles". A bandeira que carrega é a defesa do positivismo, em nome do cidadão comum, o famoso homem de bem.

Tamanho é o desconforto que a elaboração de respostas coloca problemas éticos: temos de fixar balizas para não incorrer em agravos ainda maiores. O principal autolimite que nos impomos é não questionar a manifestação à luz do artigo 36, inciso III, da Loman. Não nos cabe o papel de corregedores ou censores.

Para além de manifestar solidariedade a colega atingida, uma das magistradas mais cultas, compromissadas e diligentes do TRT da 1ª Região, nos interessa desmitificar a premissa abraçada pelo subscritor, qual seja, que a Justiça do Trabalho está assolada pelo ativismo, uma resposta emocional às transformações do mundo do trabalho que se ampara no uso e abuso de princípios constitucionais, conceitos abertos por definição. O remédio prescrito é o retorno ao positivismo, o império da lei.

Acreditamos no exato oposto: todo o universo do Direito do Trabalho tem sofrido ataques em nome de princípios implícitos, deduzidos não da Constituição, mas de uma suposta "modernidade". Dentro dessa lógica, não há lugar para o Direito do Trabalho no futuro, a despeito do seu fundamento constitucional.

Vamos recapitular pontos elementares: a Constituição representa o ápice do sistema legal e suas normas se sobrepõem às demais, por isso chamadas de infraconstitucionais. Acima dela, só a norma fundamental, como hipótese lógica (Kelsen) ou decisão política (Hart). Kelsen e Hart, frisem-se, são positivistas em estado puro. 

Por outro lado, não é nenhuma ideia nova, nenhuma jabuticaba brasileira, o entendimento que podem ser reconhecidas obrigações mesmo na aparente falta de normas legais e que todo ato normativo precisa ser interpretado. Modernamente, admite-se que os princípios constitucionais, além do tradicional papel de vetores interpretativos, são capazes de investir particulares em direitos e obrigações.

A jurisprudência nem sempre é firme ou coerente, faltam nortes seguros e todos temos a dificuldade de, aqui ou ali, identificar ou concordar com as razões de decidir. Tensões existem e não são poucos os que entendem que o Judiciário falha em não traçar limites claros. A experiência constitucional brasileira ainda é um campo em construção.

Mas se esse é o cenário geral, há um contexto específico, particular, do Direito do Trabalho: a despeito da Constituição, o Direito do Trabalho enfrenta uma tentativa de deslegitimação, feita em nome da modernidade. Provas? Podemos começar com a reforma trabalhista. O modesto projeto de lei da Presidência da República, submetido ao Congresso em 26 de dezembro de 2016, transformou-se numa reforma de mais de cem pontos da CLT. O texto final foi aprovado pelo Senado, a toque de caixa, no dia 11 de julho de 2017. O Código Civil de 2002 tramitou por 27 anos. O Código de Processo Civil de 2015 tramitou por cinco anos e foi precedido de um amplo cronograma de consultas e debates.

Se pela Constituição o Direito do Trabalho é protetivo em comparação ao Direito Comum (Cível), a reforma não se furta a inverter essa lógica. Vamos tomar como exemplo o dano moral, que é tarifado e limitado na reforma trabalhista, enquanto no Direito Civil vigora o princípio da reparação integral e a recusa à hierarquização dos danos. Ou seja, a Lei 13.467/2017 cria uma exceção para aquém da regra geral.

Quando falam na obediência à lei, estão se referindo à obediência dessa lei, da Lei 13.467/2017 contra princípios constitucionais (que são Direito positivo, regra posta) e também por exceção a normas de outras fontes. Como, dentro da mais estrita lógica jurídica formal, podemos admitir que um diploma legal que adota como princípio a igualdade entre os particulares pode ser mais protetivo que a CLT, cujo princípio é a compensação da desigualdade estrutural entre as partes no contrato do trabalho?

Para driblar essa objeção, invoca-se a autoridade do Supremo Tribunal Federal. Do ponto de vista da lógica do sistema, cabe ao STF a palavra final. Contudo, o argumento "positivista" apela para uma corte abertamente criticada pelo seu "ativismo" ora tido como progressista, como na união homoafetiva, ora conservadora, como no caso do Direito do Trabalho, ora contraditória, como nas decisões em matéria penal, que oscilam entre o garantismo e o punitivismo.

Entre muitos outros, vamos citar um exemplo aberto de ativismo, o voto de um ministro do STF a favor das regras que restringem a assistência judiciária gratuita, trazidas na reforma trabalhista. Até aquele momento, a jurisprudência de STF, STJ e TST era uniforme quanto ao direito integral à assistência, com a dispensa do pagamento de custas e emolumentos ou  deferida até para um determinado ato, conforme a situação particular da parte. Segundo o ministro, a alteração proposta pela reforma era oportuna para desestimular lides temerárias, já que o Brasil seria, na sua opinião — não comprovada estatisticamente, diga-se de passagem —, campeão de lides trabalhistas em todo o mundo capitalista ocidental.

Os exemplos são inúmeros, exaustivos. Para resumir, temos um positivismo sui generis em que: a) norma infraconstitucional pode se impor às normas constitucionais; b) valores e princípios abrigados pela Constituição podem ser ignorados; e c) normas legais e vigentes podem ser ignoradas em nome do princípio implícito da modernidade.

O pretenso rigor e formalismo defendidos pelo autor, nesse e em outros artigos, que representam o "núcleo científico" do seu argumento, ao fim e ao cabo restringem o debate à defesa da reforma e dos seus vetores ideológicos (a dita "modernidade"), numa clara adesão ao seu ideário. 

Em vez de arbitrários, românticos irresponsáveis ou ignorantes, os juízes do Trabalho que se contrapõem a essa lógica o fazem em nome da legalidade, que tem como ápice a Constituição. É claro que ninguém tem o monopólio para erros e acertos e para isso existe um vasto sistema recursal. Todos os dias, milhares de sentenças são reformadas. Não é disso que se trata. O verdadeiro alvo desse artigo são todas as posturas de resistência — feitas em nome da CLT e da Constituição — o que, por definição, é um objetivo político. Dentro da lógica do "nós" e "eles", atingir uma  estimada colega é apenas um grave e triste dano colateral.

Por fim, confessamos que também temos medo. Medo do autoritarismo que nos assombra e que procura corromper a Constituição por dentro, como uma ferrugem. A verdade é que estamos todos perdidos em meio a tantas crises, tateando caminhos. Para que possamos superá-las, o mínimo que se exige é serenidade e respeito.

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