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Mendes: Negativa de quitação eleitoral em prestação extemporânea

17 de março de 2021, 6h04

Por Anna Paula Oliveira Mendes

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Não há dúvidas de que a Constituição de 1988 conferiu aos direitos políticos, previstos em seu artigo 14, o status de direitos fundamentais. O Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 23, dedicado aos direitos políticos, afirma que todos os cidadãos devem gozar do direito de "votar e ser eleito em eleições periódicas e autênticas".

Assim, dado o caráter fundamental dos direitos políticos, tem-se que eventuais restrições devem ser impostas por lei (nesse caso, refere-se à lei em sentido formal), com fundamento direto na Constituição, e devem respeitar o princípio da proporcionalidade.

No entanto, não é isso que se verifica no caso dos candidatos que cumprem integralmente o seu dever de prestação de contas em processo de regularização de contas, o qual, embora ocorra posteriormente ao momento em que deveriam prestar contas da campanha, é previsto expressamente na legislação eleitoral. Em razão de previsão inaugurada por resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sem que haja disposição correspondente em sede legal ou constitucional, tais candidatos estarão impedidos de disputar um novo pleito ao longo de todo o curso do mandato para o qual concorreram anteriormente, isto é, por ao menos quatro anos, ainda que nesse lapso de tempo tenham prestado integralmente contas da campanha, em processo de regularização de contas.

Isso porque o artigo 80, I, da Resolução TSE 23.607/2019 prevê que "a decisão que julgar as contas eleitorais como não prestadas acarreta, ao candidato, o impedimento de obter a certidão de quitação eleitoral até o fim da legislatura". Apenas após esse período é que se poderá obter a certidão, caso haja a efetiva apresentação das contas. Ocorre que, nos termos do artigo 11, §1º, VI, da Lei 9.504/97, a certidão de quitação eleitoral é documento indispensável ao requerimento do registro de candidatura, de modo que a ausência desse documento implica na impossibilidade de ser candidato e, portanto, em restrição ao direito político fundamental de elegibilidade.

A questão aqui colocada atinge milhares de pessoas em todo o Brasil. É intuitivo, ademais, que muitos daqueles que não apresentaram originariamente as suas contas de campanha são candidatos de menor poder econômico ou mesmo hipossuficientes, que sequer tinham conhecimento do dever de prestar contas à Justiça Eleitoral no caso de pouca ou nenhuma movimentação financeira.

Ademais, a previsão também produz impacto desproporcionalmente negativo em face das mulheres que foram lançadas candidatas sem o seu consentimento, usadas apenas para viabilizarem um maior número de candidatos homens, de modo que, por ignorarem as suas candidaturas, igualmente não tinham conhecimento do dever de prestação de contas no momento oportuno.

A restrição ao direito político fundamental de elegibilidade trazida pelo artigo 80, I, da Resolução TSE 23.607/2019 se mostra incompatível com a ordem jurídica brasileira, pois apresenta vícios de legalidade e constitucionalidade. Isso porque a norma: 1) representa uma exorbitância do poder regulamentar do TSE; 2) viola a reserva de lei complementar em matéria de inelegibilidade; e 3) não passa pelo crivo do princípio da proporcionalidade.

Em primeiro lugar, a exorbitância do poder regulamentar do TSE se descortina quando se percebe que o artigo 80, I, da Resolução TSE 23.607/2019 consiste em disposição normativa completamente inovadora, não havendo nas leis eleitorais nenhum dispositivo análogo a esse. Nos termos do artigo 105 da Lei 9.054/97, a função normativa da Justiça Eleitoral tem caráter estritamente regulamentar, não podendo restringir direitos especialmente direitos fundamentais ou estabelecer sanções distintas daquelas previstas em lei. Em suma, as resoluções não podem inovar na ordem jurídica.

Muito embora o artigo 11, §7º, da Lei 9.504/1997 preveja que a quitação eleitoral abrangerá a "apresentação de contas de campanha eleitoral", este não aborda que o impedimento à obtenção da quitação eleitoral perdurará, ao menos, por uma legislatura, caso haja a efetiva apresentação das contas em momento anterior a esse prazo. E na hipótese de apresentação integral das contas de campanha eleitoral, no âmbito do processo de regularização de contas, estará evidentemente atendido o requisito previsto no artigo 11, §7º, da Lei 9.504/1997. Não há dúvidas, portanto, da ilegalidade da previsão trazida exclusivamente pela resolução.

Em segundo lugar, a impossibilidade de obtenção da certidão de quitação eleitoral por ao menos uma legislatura, mesmo que haja a efetiva apresentação das contas em momento anterior ao término desse prazo, inaugura, por meio de ato infralegal, uma nova hipótese de inelegibilidade, o que, segundo o artigo 14, §9º, da CRFB é matéria adstrita à reserva de lei complementar.

A doutrina conceitua a inelegibilidade como uma sanção que importa em restrição à capacidade eleitoral passiva, por prazo determinado, em decorrência de um ato ilícito à luz do Direito Eleitoral [1]. Assim, o artigo 80, I, da Resolução TSE 23.607/2019 traz em si uma hipótese de inelegibilidade cominada porque se está diante de uma clara sanção. Com efeito, se, na hipótese em apreço, as contas da campanha foram integralmente prestadas em processo de regularização de contas, e ainda assim, é negado o exercício da capacidade eleitoral passiva por todo o período que restar para o fim da respectiva legislatura, é evidente o caráter sancionatório da medida em razão da não prestação de contas no momento originariamente previsto. E, havendo reserva de lei complementar à fixação de novas hipóteses de inelegibilidade, é flagrante a violação ao artigo 14, §9º, da CRFB.

Em terceiro lugar, a previsão da resolução não passa por um crivo de proporcionalidade, pois representa uma limitação excessiva à capacidade eleitoral passiva. Para passar pelo teste da proporcionalidade, a norma deve representar o meio menos gravoso para garantir a finalidade pretendida.

Por óbvio, a impossibilidade da obtenção de quitação eleitoral até a apresentação das contas em processo de regularização de contas, devidamente atestadas pela Justiça Eleitoral, sem a necessária espera do fim da respectiva legislatura, é medida menos restritiva ao direito fundamental de ser candidato a cargo eletivo, que, por outro lado, atinge igualmente o fim pretendido (prestação das contas de campanha, em observância à transparência e à proteção do erário). Isso porque a apresentação de todos os documentos necessários ao exame das contas pela Justiça Eleitoral afasta qualquer prejuízo efetivo ao controle dos gastos realizados em campanhas eleitorais.

Como já dito, a capacidade eleitoral passiva, consistente no direito de ser votado, é direito fundamental, imprescindível à democracia e à cidadania, de modo que a sua restrição deve ser exceção, e não regra. Igualmente, eventual restrição à capacidade eleitoral passiva deve ser a mínima necessária para resguardar os outros princípios constitucionais em jogo, o que não é o caso da norma em análise.

A tese aqui defendida foi acolhida no recentíssimo julgamento do REl 0600316-49.2020.6.16.0182 pelo TRE-PR, no qual foi declarada, incidentalmente, a inconstitucionalidade do artigo 83, I, da Resolução TSE 23.553/2017 [2]. No entanto, no caso concreto, foi mantido o indeferimento do registro de candidatura em obediência à segurança jurídica. De toda sorte, o precedente está lançado, e com ele a esperança de que se trate do início de uma guinada jurisprudencial em nossas cortes eleitorais.

 


[1] Cita-se, por todos: ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 235.

[2] Trata-se do dispositivo da resolução 23.553/2017 que traz a mesma previsão do artigo 80, I, da Res. TSE 23.607/2019.