Opinião

O princípio do juiz natural: não se pode jogar com dados viciados

Autor

  • Eduardo Appio

    é juiz federal na 2ª Turma Recursal dos JEFs do Paraná em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional pela UFPR (2007).

17 de março de 2021, 17h15

Os sistemas de Justiça se amparam em dois pilares fundamentais, que servem de critério de aferição da própria democracia substantiva de um país, ou seja, são pressupostos para o perfeito funcionamento de todos os demais sistemas que dele dependem, inclusive o sistema político e o sistema econômico.

A própria economia dita de mercado se ampara na percepção — por vezes frágil — de que as leis e as decisões dos juízes e tribunais podem ser antevistas em nome da segurança jurídica. Se o cidadão comum precisa saber, de antemão, qual é a velocidade máxima para andar em uma rodovia pública antes de ser multado, da mesma maneira as empresas necessitam saber das posições dos tribunais antes de fechar um contrato. A segurança jurídica é um valor indispensável ao desenvolvimento das sociedades capitalistas.

O papel do Poder Judiciário consiste em corrigir erros do passado e, em caráter excepcional, orientar rumos para o futuro (caso das chamadas políticas públicas de cunho prospectivo, muito comuns em matéria de saúde, em que o resultado é apenas previsto pelo legislador/administrador). Não se pode fazer política criminal através de decisões judiciais, sob pena de se negar ao acusado um julgamento justo. Os dois pilares dos sistemas de justiça previnem qualquer forma de populismo judicial.

1) Os dois pilares
O primeiro pilar que estrutura os sistemas de Justiça dos países democráticos é o da irretroatividade das leis penais, salvo quando vierem a beneficiar os acusados. A Constituição Federal de 1988 foi expressa a este respeito (artigo 5, XL), sendo um princípio com origem histórica na Magna Carta inglesa de 1215.

O princípio se ampara na isonomia e busca da igualdade entre as pessoas, ou seja, se uma nova lei (ou mesmo interpretação judicial dessa lei) for mais benéfica ao acusado ou já condenado, todos serão beneficiados. O inverso também é verdadeiro, por razões de lógica, na medida em que uma lei que cria um novo crime ou uma interpretação judicial mais gravosa ao acusado somente poderá ser aplicada para os casos futuros (nunca para os casos pendentes).

O próprio princípio da legalidade estrita em matéria penal, segundo o qual uma conduta somente é considerada criminosa se estiver prevista em lei anterior aprovada pelo Parlamento, não deixa de ser uma derivação histórica do princípio da irretroatividade da lei penal. Nisso reside a imensa e, por vezes, despercebida importância de que os juízes e tribunais evitem grandes mudanças interpretativas que signifiquem ruptura com a jurisprudência já existente, porque uma interpretação mais gravosa ao acusado (aceitação da chamada teoria do "domínio do fato" por exemplo) nunca poderá ser aplicada aos casos pendentes. Trata-se de Direito novo mais gravoso.

O segundo pilar dos sistemas judiciais é o chamado princípio do juiz natural, segundo o qual as partes não podem escolher o julgador que desejam e qualquer interferência neste sistema prévio de escolha seria considerado fraude processual.

A escolha do juiz da causa, com especial ênfase em matéria criminal, se dá por critérios legais predeterminados e por livre sorteio nos municípios que contem com mais de um juiz competente para a matéria criminal.

Ainda que lei devidamente aprovada pelo Parlamento possa criar varas ditas especializadas para um determinado crime — por exemplo, tráfico de drogas ou mesmo lavagem de dinheiro —, é recomendável que a área territorial de jurisdição deste magistrado fique bem definida pois, caso contrário, diminui a aleatoriedade na escolha do juiz.

Nesse mesmo contexto, revela se importante que as regras de continência e conexão processual sejam sempre interpretadas de maneira restrita, ou seja, sem que impliquem artificial avanço sobre a competência de outros juízes. Repito, o princípio do juiz natural é uma garantia do cidadão, visando a evitar que a parte contrária escolha o juiz que mais lhe agrade. Não se pode jogar com dados viciados.

O subprincípio constitucional do juiz natural é elemento estruturante de um princípio mais amplo, o princípio do devido processo legal substantivo, segundo o qual ninguém será privado de seus bens ou liberdade sem um julgamento justo e imparcial.

Se o princípio do devido no processo, em sua versão meramente processual, apenas demanda que os procedimentos previstos em lei tenham sido observados pelo juiz da causa, o princípio do devido processo, na sua versão substantiva, exige muito mais, exige justiça (fairness) e verdadeira igualdade de tratamento entre as partes.

Não à toa nosso novo Código de Processo Civil (chamado Código Fux) elegeu o princípio do devido processo como a mais importante conquista das partes na busca de um processo democrático, livre de qualquer mecanismo que permita o exercício autoritário da jurisdição.

As partes são as verdadeiros protagonistas do debate processual e cabe ao juiz manter a equidistância, sempre assegurando que sua conduta no processo, vista a partir de um critério objetivo e comum, seja considerada imparcial. Às partes compete atuar sob os signos da lealdade e boa-fé processual.

O senso de estrita cooperação e boa-fé entre as partes, é bom que se registre, foi objeto de recente projeto de lei no Senado (chamado Projeto Streck/Anastasia, PL 5282, de 2019) que impõe ao Ministério Público o dever funcional de produzir e trazer para o inquérito e para o processo até as provas que possam, eventualmente, absolver um inocente. Basta imaginarmos a situação de alguém preso por assassinato e que, durante o processo, o Ministério Público descubra uma nova prova (DNA por exemplo). Se após 1988 o órgão do MP pode pedir a absolvição do acusado nas alegações finais, nada mais lógico que as provas pertençam às partes. A mais nobre dentre as atribuições funcionais dos promotores e procuradores consiste em zelar pela estrita aplicação das leis e da Constituição (artigo 127 da Constituição Federal).

Nada ofende mais a confiança que o cidadão comum deposita em seu sistema de Justiça do que a sensação, ainda que subjetiva, de que o juiz já predeterminou o resultado de seu julgamento sem nem mesmo ouvir o que o acusado tem a dizer.

O senso de pertencimento (aquilo que Ronald Dworkin chamava de concepção dependente ou substantiva de democracia) do cidadão comum em seu meio social pressupõe esta confiança no seu sistema de Justiça. Sem esse elemento nuclear do sistema, empresas e cidadãos comuns passarão a praticar seus atos a revelia da legislação vigente, buscando formas alternativas de composição dos litígios longe do Judiciário (como a mediação) ou mesmo recorrendo a tribunais fora de seus países de origem (algo bastante comum em contratos ditos de massa ou entre empresas transnacionais).

2) Jogando com "dados viciados"
O resultado da disputa deve depender de lei prévia e essa mesma lei deve ser clara o suficiente para definir, de antemão, qual é o juiz competente para resolver determinado processo. O sorteio irá definir o juiz que deverá julgar a causa e, bem por isso, qualquer mudança da figura do relator em órgãos colegiados é vista com grande dose de cautela. Convocações para tribunais devem se dar através de critérios transparentes e objetivos. Não se pode escolher o julgador.

O importante é que a parte tenha garantido seu dia perante a corte, o que significa uma chance concreta de dar a sua versão dos fatos e interferir na convicção do juiz (ou jurados).

O princípio do juiz natural é uma espécie de irmão siamês do princípio da imparcialidade do juiz, porque sua decorrência lógica. Um juiz escolhido ao acaso, por sorteio, apresenta maiores chances de se apresentar absolutamente distante do interesse das partes e as estratégias de acusação e defesa não tomarão em conta o perfil ideológico do juiz.

Sintetizando, a irretroatividade das leis criminais e o princípio do juiz natural são os dois pilares sobre os quais se sustenta todo edifício jurídico de um país. A interpretação que os tribunais conferem a esses dois institutos milenares é tradicionalmente caracterizada por uma grande dose de cautela, pois qualquer mitigação da sua força axiológica certamente irá impactar na própria subsistência do princípio do devido processo. Não se pode fragilizar garantias constitucionais sob o argumento de que os resultados justificam os meios.

Umas das características mais gratificantes — talvez a mais importante — da atividade judicial é a sensação de que o processo é um caminho a ser percorrido com liberdade de pensamento e livre da pressão das ruas.

A percepção de que as partes apresentam versões diferentes e até geralmente opostas sobre um mesmo fato não deve causar qualquer ansiedade no juiz, pois o seu papel não é de extrair uma verdade real inalcançável a qualquer custo. Nem mesmo os torturadores conseguem arrancar essa verdade real. Na melhor das hipóteses arranca se a dignidade e a completa rendição psicológica do interrogado/delator. Muito distante da verdade real.

A suposta verdade que será a base da decisão judicial nada mais é que o resultado da distribuição do ônus da prova, ou seja, ao Estado (acusação) compete comprovar o crime e sua autoria concreta e à defesa compete impugnar estas alegações. O cidadão brasileiro, segundo a Constituição, é inocente até prova cabal em sentido contrário.

Se o fato criminoso deve ser comprovado pela acusação, a consequência lógica é que a denúncia contenha todos os fatos e elementos em que se baseia o Ministério Público. O processo criminal não é um jogo de "esconde-esconde", no qual as imputações vão sendo alteradas conforme o gosto do julgador. Não havendo estrita correlação entre sentença e denúncia criminal, a sentença é nula.

O acusado precisa saber do que está se defendendo (fato). No tocante à autoria do crime, toda e qualquer mitigação do ônus probatório da acusação através de teorias que, de maneira ficta, pressupõem um vínculo volitivo entre o acusado e a suposta conduta criminosa esbarram na Constituição e no próprio Código Penal brasileiro, o qual abraçou a chamada teoria finalista da ação. Não existe presunção de culpa no Direito brasileiro.

A adoção da chamada teoria do domínio do fato somente pode ser autorizada por expressa lei anterior aprovada pelo Parlamento porque, na prática, significa a inversão do ônus da prova em matéria criminal. O legislador até pode criar o crime de mera associação para a prática de crimes, mas no tocante aos crimes concretos praticados se exige uma clara demonstração entre intenção e resultado (teoria finalista da ação).

Ainda que esses dois pilares tenham de ser preservados, na medida em que sua ausência implica um Estado de Polícia, e não um Estado constitucional de Direito, revelam-se insuficientes. Sugere se, por conseguinte, dez medidas de enfrentamento do potencial problema.

Sugestões — as dez medidas para assegurar maior transparência autoridades judiciais e membros do Ministério Público:

1) Aprovação do Projeto Streck/Anastasia (o Ministério Público tem o dever funcional de produzir no processo criminal até as provas que possam levar à absolvição — proibição do chamado agir estratégico);

2) O juiz da causa deve receber os advogados das partes e o Ministério Público em uma mesma data, horário e local. Caso isso não seja possível, o atendimento do juiz das partes deve ser gravado e facultado acesso à parte contrária;

3) Somente a lei pode predeterminar o juízo competente, sendo recomendável a descentralização das varas federais criminais de lavagem de dinheiro, retomando se o saudável processo de interiorização da Justiça federal, evitando se qualquer possibilidade de personalização da figura do juiz;

4) A proibição de que juízes, advogados e membros do Ministério Público se utilizem de instrumentos clandestinos (fora do processo) de comunicação, bem como que o contato com a imprensa se dê através das assessorias de imprensa dessas instituições;

5) A proibição de que juízes, membros do Ministério Público e policiais interfiram, de qualquer maneira, no processo de escolha do advogado por parte do acusado, bem como a garantia de proteção da figura do whistleblower dentro dessas instituições (mecanismos de compliance). Não se pode perseguir quem informa uma ilegalidade.

6) A proibição de que as tratativas que visem a formalizar delações premiadas entre policiais e acusados ou membros do Ministério Público e acusados/indiciados se deem fora de um ambiente institucional (repartição pública) e sem o devido registro que possibilidade a futura conferência de conteúdo por parte das instâncias superiores (válido também para o acordo de não persecução — artigo 28 do CPP);

7) A proibição de que juízes e membros do Ministério Público recebam, a título de palestra em instituições privadas, valor superior a 50% do vencimento mensal (incluindo se despesas de transporte e acomodação);

8) A proibição de que juízes, membros do Ministério Público e policiais recebam qualquer forma direta ou indireta de subvenção de governo estrangeiro (na forma de bolsa de estudos, por exemplo);

9) A proibição para que membros do Ministério Público, policiais e juízes possam advogar, ainda que de maneira indireta, após exoneração, em causas nas quais atuaram (risco de captura — porta giratória);

10) A proibição (quarentena eleitoral) para que juízes, promotores e policiais assumam cargos públicos na Administração direta ou indireta pelo período de dois anos após seu afastamento das funções e também possam se candidatar em eleições para cargos públicos nesse mesmo período.

Em síntese, a reconstrução das estruturas fundamentais que permitem o funcionamento do sistema de Justiça pressupõe a total transparência e liberdade de pensamento. O Poder Judiciário não foi concebido para servir como aristocracia política da nação e qualquer forma de atuação populista deve ser percebida pelos membros da comunidade como uma tentativa de verdadeira infantilização das capacidades naturais e livres de que são dotados os eleitores. As eleições somente são livres quando os agentes que atuam no sistema judicial permitem ao eleitor informação fidedigna, liberdade total de escolha e proteção contra o abuso do poder econômico.

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