Tribuna da defensoria

A busca da verdade não é apanágio de abusos: a decisão do HC 598.051/SP

Autores

  • Fernando Antunes Soubhia

    é defensor público no estado de Mato Grosso mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela City University of London (Inglaterra).

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Lara Teles

    é defensora pública do Estado do Ceará mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará coordenadora do Departamento de Publicações do Instituto Baiano de Direito Processual Penal e autora da obra "Prova Testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração" (EMAIS 2020).

16 de março de 2021, 8h01

O script da audiência de instrução e julgamento passa na tela do Microsoft Teams como um filme repetido: O promotor lê trechos do depoimento extrajudicial ao policial, que mal se lembra da ocorrência de dois meses atrás. O policial "confirma" que chegaram à residência do acusado por meio de denúncias anônimas e porque o acusado "ficou desconfiado" com o patrulhamento, "fugindo" para o interior de sua residência. Iniciada a abordagem, o acusado, de "livre e espontânea vontade", permitiu que a guarnição inteira adentrasse em sua morada. Para a felicidade e conveniência dos policiais, a maconha estava na mesa da cozinha/sofá da sala. O acusado, então, confessa ao policial, e somente a ele, que a droga se destinava à venda e a prisão em flagrante é concretizada. Apresentadas as alegações finais, o juiz condena o acusado. A dosimetria de pena é uma tragédia.

Das várias ilegalidades descritas acima, hoje se escolhe apenas uma: a constante e ilegal invasão de domicílios pela polícia.

Como se sabe, a Constituição Federal nos garante a inviolabilidade domiciliar, autorizando as forças estatais a adentrar em nossas casas em cinco hipóteses: a) com nosso consentimento; b) em caso de flagrante delito; c) em caso de desastre; d) para prestar socorro; ou e) de dia, por determinação judicial (artigo 5, XI).

Com o endurecimento da guerra às drogas e adoção de um policiamento militarizado proativo, a causa mais comum de relativização da inviolabilidade domiciliar tem sido, sem dúvidas, a busca por entorpecentes.

Ocorre que, no Brasil, a busca por entorpecentes não costuma seguir o trâmite retratado nos programas de televisão e exigido pelas normas constitucionais e legais: investigação pedido de mandado de buscas. A busca por entorpecentes por aqui decorre, em sua quase totalidade, de prisões em flagrante de pequenos traficantes, criminalizando a pobreza, abusando do permissivo constitucional e se aproveitando do desamor dos tribunais pelo reconhecimento da nulidade de uma prova obtida ilegalmente.

A comprovar a afirmação do parágrafo anterior, aponta-se a pesquisa conduzida por Marcelo Semer, em que o professor e juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) analisou 800 sentenças proferidas em ações penais imputando o delito de tráficos de drogas, concluindo que "há uma disseminação da legitimação das violações de domicílio". Segundo os dados levantados, somente 11,25% dos casos se originaram a partir de investigações prévias, sendo a maioria esmagadora (88,75%) decorrentes de prisão em flagrante [1], em sua maioria, de réus primários, com pouca quantidade de drogas e desarmados, raramente chegando a abalar as estruturas das grandes organizações criminosas. Não obstante um alto percentual de apreensão de entorpecentes em residências, a pesquisa revelou também que somente 16,62% das situações contavam com a prévia expedição de mandado de busca e apreensão [2]. Não houve registro na pesquisa de uma sentença sequer que tenha declarado a ilicitude desse tipo de prova.

A ausência de um trabalho investigativo e a dependência de apreensões em flagrante, além de produzir provas epistemologicamente frágeis e não atingir de forma relevante as grandes organizações criminosas, fomentam a penalização da pobreza através do direcionamento preferencial e do posicionamento agressivo da polícia, tribunais e prisões nos bairros mal afamados, o que Loic Wacquant chama de prisonfare [3].

Como complemento, relega-se ao ostracismo as normas do devido processo penal e alavancam-se os números de prisões, processos e condenações, combinados a uma constante e óbvia sensação de fracasso nessa missão. A uma porque escapa à missão do Poder Judiciário; a duas porque mesmo que estivesse dentro do papel do juiz, recrudescer o controle penal sobre os pequenos traficantes claramente não é o caminho.

Após décadas de leniência com invasões justificadas ex post pelo encontro de entorpecentes, o Poder Judiciário se posicionou sobre o tema em 2015 ao julgar o RE 603.616 (repercussão geral  Tema 280). Com fundamento nesse precedente, os tribunais finalmente pacificaram seu entendimento, reconhecendo a "ilegalidade da prova obtida em buscas domiciliares realizadas sem mandados judiciais quando não há fundamento idôneo ex ante a justificar a crença de que um crime está em andamento naquele local". A ideia de que um crime permanente justificaria retroativamente a invasão domiciliar encontra-se oficialmente sepultada, afinal, a busca da verdade não é um passe livre para práticas violadoras de direitos fundamentais.

De 2015 para cá, os tribunais passaram, então, a discutir o que constituiria fundamento idôneo para legitimar a invasão. Em linhas gerais, o que se exige pasmem é investigação prévia, não bastando meras denúncias anônimas (cf. STF, HC 180.709 e STJ, HC 512.418/RJ), informações de vizinhos (cf. STJ, HC 609.982/RS) ou fuga do suspeito ao visualizar a viatura ( cf. STJ, HC 530.272/SP e HC 561.360/SP).

Infelizmente, ao longo desses anos de sedimentação jurisprudencial, as práticas policiais foram se adequando uma espécie de efeito backlash miliciano e as justificativas das buscas passaram, cada vez mais, a se assentar no consentimento do morador.

É realmente impressionante a quantidade de pessoas dispostas a deixar a polícia entrar em suas casas mesmo sabendo que, ao fazê-lo, estarão produzindo prova contra si mesmo e, de quebra, fundamentando a própria prisão. Por sua conveniência, essa ação, apesar de claramente contrária ao senso mais básico de autopreservação, não causa qualquer espanto aos acusadores e julgadores. Como destaca Marcelo Semer, "os juízes se queixam em demasia dos interrogatórios em que são fornecidas versões fantasiosas e reiteradamente indicam que a negativa é tão corriqueira que nem chama a atenção. Quando a questão é o relato do policial, dando conta de que o réu colaborou, no entanto, não se levantam dúvidas" [4].

Observa-se, de plano, que não há uma racionalidade clara a orientar a valoração e decisão sobre os fatos. Na ausência de marcos objetivos, a palavra do réu é descredibilizada quando convém e dotada de credibilidade quando corrobora a hipótese acusatória. O decisionismo se desatrela da epistemologia jurídica e se funda nos apelos do pânico moral e da cultura do medo. Tudo em nome de um "bem maior", conforme evidenciado no seguinte trecho de uma das sentenças analisadas pelo já citado Marcelo Semer:

"É, pois, inadmissível que o direito à intimidade sobreponha-se ao interesse coletivo de proteção da saúde pública. Por certo, a condenação de pequenos traficantes se impõe como medida profilática a fim de desestimular a que outros se enveredem em idêntico caminho, que apenas beneficia aos barões do narcotráfico" [5].

Ao validar o tal "efeito backlash miliciano" de relatar que houve consentimento do morador sem trazer qualquer prova nesse sentido, o Judiciário legitima que a prática prossiga, sem sequer refletir que, ao dar carta branca pra essas condutas, lares de pessoas inocentes são invadidos com violência e impiedade. Quando o juiz considera lícita essa prova, a mensagem é: podem continuar invadindo sem mandado, os fins justificam os meios, uma apreensão de drogas em uma residência legitima a invasão de dez outras casas de pessoas inocentes.

Não podemos olvidar sob quem recai tal prática: aqueles que estão eternamente sob "atitude suspeita". Por mais subjetivo que seja esse conceito, a práxis forense demonstra que, em muitos casos, basta ser preto e pobre para encaixar-se em tal estereótipo, uma manifestação clara do racismo estrutural que paira sobre o sistema de Justiça criminal [6].

Enquanto isso, nos bairros nobres, a abordagem, quando ocorre, segue padrões de cordialidade dignos da realeza britânica. Seria o conceito constitucional de inviolabilidade domiciliar restrito aos lares dos "cidadãos de bens"?

Felizmente, a 6ª Turma do STJ nos trouxe um respiro ao julgar, na semana passada (02.03.2021), o HC 598.051/SP.

Entre outras questões, tal como a necessidade de se repensar se são mesmo todas as situações envolvendo tráfico de drogas que justificariam uma busca domiciliar sem mandado [7], o ministro Rogério Schietti se propôs a analisar a seguinte questão, apontada por ele mesmo como o ponto central do voto: "A prova dos requisitos de validade do livre consentimento do morador, para o ingresso em seu domicílio sem mandado, incumbe a quem, e de que forma pode ser feita?".

Primeiro o ministro aponta que o consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação. Trazendo lições do Direito comparado, destaca-se que o contexto da abordagem, bem como situações ambientais tais como a existência de diversos policiais armados em confronto com o suspeito sozinho podem, sim, macular a voluntariedade do consentimento.

Fixada essa premissa, passa-se a discutir a prova desse consentimento, concluindo-se que tal prova incumbe, obviamente, à acusação e que a palavra dos policiais, por si só, é insuficiente para tornar verossímil essa conduta auto-destrutiva do suspeito, devendo a ação ser registrada por declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo, e preservada tal prova enquanto durar o processo.

A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência.

As diretrizes adotadas pelo ministro não deveriam precisar de qualquer justificativa, pois decorrem das normas constitucionais atinentes à garantia da inviolabilidade de domicílio. Contudo, justamente por sabermos que vigora na práxis da Justiça Penal brasileira um populismo penal que, a pretexto de combate à criminalidade, mitiga os direitos fundamentais por meio de interpretações regressistas, se faz necessário, para além da reafirmação da força cogente das regras constitucionais, que a atuação dos agentes públicos seja dotada de transparência.

Nesse contexto, avulta a importância da recomendação feita ao final do julgamento sobre a adoção de um programa generalizado de câmeras corporais para gravação audiovisual das operações policiais e submissão dessa gravação, na íntegra, sem edição [8].

Antecipando objeções, destaca-se que não há motivo para qualquer resistência a tal prática, vez que dela deriva segurança jurídica para todos. Pelo lado dos policiais, é uma garantia contra qualquer acusação temerária de tortura ou maus tratos. Pelo lado do acusado, significa que seus direitos constitucionais sejam efetivamos cumpridos. Pelo lado do Ministério Público, a quem incumbe ao menos, em tese a função de custos iuris, significa a certeza de que o pleno cumprimento da lei poderá ser fiscalizado. Pelo lado do Judiciário, implica a celeridade dos processos penais uma vez que se reduzirá consideravelmente os recursos defensivos em torno da matéria e a certeza de que a decisão segue os ditames do devido processo penal.

Antes de terminarmos, vale rebater também o pseudoargumento de que o posicionamento adotado no HC 598.051/SP fortaleceria o crime organizado. Quem sustenta essa tese, mais uma vez, se irriga no populismo criminológico, que se perde em suas finalidades. Vale indagar retoricamente: desde quando invadir domicílios periféricos produz abalos sísmicos nas facções criminosas? Solicitar mandado de busca e apreensão à autoridade judiciária é uma tarefa tão árdua assim, a ponto de ser preterida em detrimento de violações contínuas de direitos fundamentais?

A despeito de esse populismo criminológico tentar apagar da mente dos juristas a razão de se inadmitir meios probatórios que atentem contra direitos fundamentais [9], é preciso recordar seu papel pedagógico e inibitório sobre práticas de investigação odiosas, representando um marco civilizatório para o Processo Penal contemporâneo [10]. Afinal, a busca da verdade não é apanágio de abusos.

 

Referências bibliográficas 
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Relatório final pesquisa sobre as sentenças judiciais por tráfico de drogas na cidade e Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça. Disponível em:<http://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagemdpge/public/arquivos/Relatorio_Pesquisa_Lei_Drogas.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2019

KHALED JR., Salah H. A busca da verdade do processo penal para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Editora Atlas, 2013

SEMER, Marcelo. Sentenciando Tráfico. O papel dos juízes no grande encarceramento. 1ª Ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2018.

WACQUANT, Loic. The wedding of workfare and prisonfare in the 21st century. Journal of Poverty, v. 16, p. 236-249, 2012.

 


[1] Dados semelhantes foram levantados em pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, analisando 2.591 sentenças datadas de agosto de 2014 a janeiro de 2016, relativas a acusações dos crimes da Lei 11.343/2006, na cidade e região metropolitana do Rio de Janeiro. De acordo a pesquisa, 82,13% das prisões e apreensões de drogas ocorreram em flagrante, enquanto somente 6% foram decorrentes de trabalho de investigação prévia.

[2] Op. Cit, p.165/180.

[3] Op. Cit, p. 38

[4] Op. Cit, p.365.

[5] Op. Cit, p.167.

[6] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019, p. 50.

[7] Em suas conclusões, o Ministro aponta que apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa, objetiva e concretamente, inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.

[8] Sobre o tema, recomenda-se a leitura do artigo ‘Câmeras corporais e a participação da Defensoria na formulação de políticas públicas’, de autoria de Fernando Antunes Soubhia e publicado no CONJUR.

[9] BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2018, p.28.

[10] KHALED JR., Salah H. A busca da verdade do processo penal para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 67.

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