Opinião

A 'odisseia' dos precatórios e o 'cavalo de troia' da PEC 186/2019

Autores

  • Marta Gama

    é doutora e mestra em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) membro do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/CNPq) e membro da Comissão de Precatórios e da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB/BA).

  • Raique Lucas J. Correia

    é mestrando em Desenvolvimento Regional e Urbano pelo Programa de pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano na Universidade Salvador (Unifacs).

16 de março de 2021, 6h03

A Proposta de Emenda Constitucional nº 186, que ficou conhecida como PEC Emergencial, foi apresentada ao Senado Federal pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, em novembro de 2019. Essa proposta de emenda à Constituição pretendia tornar permanente o ajuste determinado pela EC 95/2016, que tem vigência até 2036 e cujos efeitos de congelamento do custeio já são sentidos. O governo não conseguiu aprovar a PEC com a urgência que pretendia, dadas as significativas alterações que impunha ao texto constitucional, o que suscitou debates de todos os lados.

Até então não existia crise sanitária, pandemia e a demanda por auxílio emergencial, mas o propósito era o de colocar o equilíbrio fiscal como uma das principais metas do governo, desprezando os aspectos sociais fundantes da Constituição Federal de 1988. A demanda do auxílio emergencial somente ocorreu depois, com a crise sanitária provocada pela pandemia da Covid-19, que assim foi "colada" aos propósitos da PEC 186/2019, tentando fazer acreditar que somente a aprovação das profundas alterações no texto constitucional viabilizaria a continuidade da prestação do auxílio emergencial a cereja?

Nesse contexto, a prorrogação do prazo para pagamento dos precatórios estabelecido pelo artigo 101, ADCT, com a redação dada pela EC 99/2017, não fazia parte do texto da PEC 186/2019, e nem poderia, por ausência de afinidade temática. Isso porque não pagar dívida, ou postergar indefinidamente o seu pagamento, não condiz com a racionalidade do equilíbrio de contas, ao contrário, é inimigo dela. Por outro lado, prorrogar o pagamento da dívida de precatórios de Estados, municípios e Distrito Federal também não tem relação com o pagamento do auxílio emergencial, já que os recursos para fazer frente a essa despesa saem do Tesouro Nacional. A proposta de alteração do artigo 101, ADCT, somente veio com a complementação de voto do relator da PEC 186/2019, no último dia 3, no mesmo dia que foi submetida ao plenário do Senado Federal cavalo de troia!

Pela proposta, o prazo para pagamento de precatórios de Estados, municípios e Distrito Federal será adiado por mais cinco anos, ou seja, o regime especial, que findaria em dezembro de 2024, somente terminará em dezembro de 2029. Caso prevaleça a alteração proposta pela PEC, será a sexta moratória da dívida de precatórios desde a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu o prazo de oito anos para sua quitação e irá prejudicar um milhão de credores em todo o país.

Sobre o tema é importante que se afirme, de forma inegociável, que o cerne do Estado de Direito é a submissão de todos à lei, inclusive o Estado. Logo, a resistência de Estados, municípios e Distrito Federal em cumprir as decisões do Poder Judiciário demonstram violação a esse princípio fundador. Isso porque precatórios são ordens de pagamentos que decorrem de processos judiciais sempre longos, diga-se de passagem , cujas decisões são sujeitas ao duplo grau de jurisdição. O ente público por suas procuradorias, tem todas a oportunidades de se defender.

A maioria dessas ordens de pagamento tem natureza alimentar, isto é, decorrem de ações de servidores, pensionistas, ou aquele que sofreu um dano provocado pelo ente público. Além disso, o não pagamento dessas dívidas reflete diretamente na oferta monetária, uma vez que retira dinheiro de circulação, limitando a capacidade de compra e, como consequência, a retomada econômica do país. Outrossim, a moratória impõe um aumento desmesurado do débito, já que sobre o valor do passivo incidem juros de mora de 6% a.a. e correção monetária pelo INPC, onerando ainda mais os cofres púbicos.

O fato é que a PEC 186/2019 é uma verdadeira "tragédia grega" e não se sustenta por nenhuma razão plausível, muito pelo contrário, revela uma estratégia escusa do governo para não cumprir com os seus deveres constitucionais. Em um momento tão difícil como este, de recessão econômica e aumento da taxa de desemprego, quando a crise pandêmica atinge números alarmantes, a ação do governo contradiz a própria lógica por trás da PEC, promovendo insegurança jurídica, endividamento público, debilidades econômicas, diminuição do dinheiro circulante e, tão grave quanto, perdas financeiras e danos emocionais a milhares de famílias que, de forma injusta e desproporcional, terão de aguardar mais cincos anos para que possam receber o que lhes é de direito.

Enfim, não custa lembrar o que aconteceu com os troianos quando ingenuamente abriram os portões da sua cidade e receberam de bom grado aquele presente do seu inimigo. À noite, enquanto todos dormiam, os gregos saíram do interior da estrutura de madeira e possibilitaram a entrada de seu exército que, finalmente, após dez anos de guerra conseguiu transpor o grande baluarte de Troia. Não tarda para que o mesmo ocorra caso esse projeto seja aprovado, aí, então, será tarde demais para ouvir as admoestações de Laocoonte: "Míseros cidadãos, quanta insânia! Estão de volta os gregos, ou julgais que seus presentes são livres de engodos? Desconheceis o caráter de Ulisses? Ou este lenho é esconderijo de inimigos, ou é máquina que, armada contra os muros, vem espiar e acometer-nos. Teucros (troianos), seja o que for, há dano oculto: desconfieis do monstro! Temo os dânaos mesmo quando dão presentes!" [1]. O mesmo pode-se dizer da PEC 186/2019 e dos males que a tempo ela nos causará, levando-nos, quem sabe, à ruína.

 


[1] VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014.

Autores

  • Brave

    é doutora e mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), membro do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/CNPq) e membro da Comissão de Precatórios e da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Bahia (OAB/BA).

  • Brave

    é mestrando em Desenvolvimento Regional e Urbano pelo Programa de pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano na Universidade Salvador (Unifacs).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!