Opinião

O 'Narciso' que habita parcela dos juízes criminais e o Estado de Direito

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16 de março de 2021, 12h12

Na última década, finalmente estamos vivenciando as dores causadas pelo abuso do poder punitivo do Estado diretamente no 1% mais favorecido da população, o que desde sempre acometeu as parcelas periféricas, vulneráveis e racializadas dos brasileiros, bem como aqueles que jamais desistiram de enfrentar o discurso dominante do punitivismo oligárquico que moldou nossa nação desde sua era colonial, e que, por isso, também acabaram vítimas dessa forma vil e "legalizada" de violência.

Mas, para além de retirar da latência os estragos incalculáveis e mortais do abuso do direito de punir como instrumento de poder — já que pela primeira vez atingiu massiva e totalmente também a classe média intelectualizada e burguesa, colocando-a sob a trágica e genocida gestão de uma crise sanitária sem precedentes de um presidente lunático e ignóbil, tudo graças à interferência política do sistema de Justiça no processo eleitoral do país —, a fatídica operação "lava-jato" escancara o problema narcísico de parcela dos juízes criminais brasileiros (felizmente, não todos), e as atrocidades constitucionais que esse "ator narcísico" pode cometer para afirmar sua "autoridade social".

Eugênio Raul Zaffaronni, dono de uma das mais eloquentes vozes deslegitimantes do discurso penal punitivista, em referência à principal arma de dominação política do neocolonialismo, no seu clássico "Em busca das penas perdidas" [1], dedica importantes parágrafos à burocratização das agências judiciais na nossa região marginal e aos graves efeitos dessa "arma burocrática" sobre os agentes de tais agências — no caso do Brasil, os juízes. Zaffaroni diz:

"O processo de treinamento a que é submetido é igualmente deteriorante da identidade e realiza-se mediante uma paciente internalização de sinais de falso poder: solenidades, tratamentos monárquicos, placas especiais ou automóveis com insígnias, saudações militarizadas do pessoal de tropa de outras agências, etc. (…).
O certo é que, ao alcançar uma categoria equiparável à de oficial das agências militarizadas, o individuo já deve ter internalizado os modelos da agência, e deve responder às exigências do papel que lhe for atribuído a partir de uma adequada manipulação da opinião pública: assepsia ideológica, certa neutralidade valorativa, sobriedade em tudo, suficiência e segurança de resposta, e em geral, um certo modelo 'executivo sênior' com discurso moralizante e paternalista ou imagem de que, na devida idade, responderá a este modelo"
[2].

A partir de sua visão de que o real poder punitivo se encontra nas mãos das agências executivas, que podem vigiar e selecionar os que desejam punir arbitrariamente, para só então levar ao conhecimento judicial — que seria, na verdade, mero limitador dessa escolha, não possuindo poder de seleção —, o autor explica que: "A manipulação da imagem pública do juiz pretende despersonalizá-lo e reforçar sua função supostamente “paternal”, de maneira a ofuscar e ocultar seu caráter de operador de uma agência penal com limitadíssimo poder dentro do sistema penal" [3]. O autor conclui seu pensamento dizendo que o único caminho para a manutenção de aparência de poder do juiz criminal é a prevenção de conflitos com as demais agências, burocratizando ao máximo sua atuação, acabando por virar, aí já em minha opinião, um "aliado da acusação".

Nos parece, nesse ponto, que as conversas relevadas pela operação "spoofing", demonstrando o tom jocoso com que os acusadores se referiam ao juiz então responsável pela "lava jato", tratando-o pelo apelido "gracioso" de Russo e falando abertamente sobre influenciá-lo, ao mesmo tempo em que ajudavam a vender a imagem de retidão moral e heroísmo do mesmo juiz, concretizam absolutamente a situação descrita por Zaffaroni: um juiz criminal dominado pelo seu "eu narcísico", que buscava validar a acusação como medida desesperada para evitar ter seu poder contestado pelos acusadores, o que fatalmente evidenciaria a fragilidade de sua posição de "autoridade" e a falsidade do seu "poder".

O "Narciso" que habitava em Sérgio Moro atingiu um patamar tão dominante em sua personalidade, com uma necessidade de afirmação de poder tão elevada, que o ex-juiz criminal arriscou toda a reputação adquirida pelos falsos discursos que justificavam suas ações autoritárias e justiceiras, e renunciou à magistratura para assumir o cargo de ministro no governo do outrora candidato diretamente beneficiado pelos frutos de sua ação, tudo na tentativa de exercer um poder real, que, ao final, ele descobriu que não tinha e não teria.

Mas, para além de julgar individualmente as ações de Sérgio Moro no cargo de juiz criminal, mais urgente é repensar a forma de seleção e de estruturação burocrática da magistratura nacional, fábrica que é dos "Narcisos" que habitam em parte dos juízes criminais e que causam uma debilidade incalculável ao nosso Estado de Direito.

 


[1] Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal / Eugenio Raúl Zaffaroni ; tradução: Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Imprenta: Rio de Janeiro, Revan, 2017.

[2] Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal / Eugenio Raúl Zaffaroni ; tradução: Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopes da Conceição. Imprenta: Rio de Janeiro, Revan, 2017, p. 141.

[3] Ibidem, p. 141-142.

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