Defesa da concorrência

Petrobras, Cade e políticas públicas

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15 de março de 2021, 8h00

No início de 2019 tramitavam no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) alguns inquéritos que investigavam se a Petrobras teria abusado de suas posições dominantes tanto no refino de combustíveis líquidos como na produção e transporte de gás natural. Exemplos desses inquéritos eram: 1) o de representação da termelétrica Âmbar Energia, então do Grupo JBS, que considerava artificialmente elevados os preços de fornecimento de gás natural pela Petrobras [1], e 2) o de representação da  Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (Abicom) que investigava se a estatal praticava preços abaixo do mercado, prejudicando concorrentes [2]. Ou seja, um acusava a Petrobras de cobrar preços muito altos no gás natural (aumento de custo de rival), outro de cobrar preços muito baixos na gasolina (preços predatórios).

ConJur
Naquela época, o novo governo eleito dava claros sinais de que perseguiria uma forte agenda de privatizações, sob o comando do ministro Paulo Guedes, inclusive no setor de petróleo. Não se tratava de uma medida popular: havia pressão dos funcionários da Petrobras contrários à privatização e, veja-se bem, de caminhoneiros preocupados com a sistemática de precificação de um monopolista privado, a mesma adotada até o mês passado.

Nesse contexto, Petrobras e o Cade decidiram assinar dois Termos de Cessação de Conduta (TCC) um em cada setor: a estatal se comprometeria a alienar cerca de metade de suas refinarias de combustíveis líquidos e o que restava de suas participações nos mercados de transporte e distribuição de gás natural, e a autoridade antitruste se comprometeria a encerrar as investigações contra a empresa. O governo conseguia, assim, uma justificativa técnica, chancelada pelo Cade, para ir em frente com o programa de privatização. As sessões de julgamento do Cade que aprovaram os acordos foram seguidas de cerimoniosas entrevistas com a participação do Ministério de Minas e Energia, do Ministério da Economia e da Agência Nacional de Petróleo.

Tratava-se da mais agressiva penalidade aplicada a qualquer empresa na história do antitruste brasileiro. Remédios estruturais em processos administrativos eram inéditos para condutas unilaterais, e mesmo em casos de carteis os antecedentes eram raríssimos (s.m.j., apenas no cartel de combustíveis dos postos do DF e no cartel do cimento). Além disso, os acordos foram fechados poucos meses após a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — organização a que tanto o governo eleito quanto o Cade estavam ávidos para se juntar — ter recomendado, por meio de processo de peer review [3], que se buscasse levar a julgamento conclusivo os casos de conduta unilateral, evitando acordos precoces. Tal aprimoramento institucional é importante para que os agentes de mercado possam conhecer o que é e o que não é permitido pela autoridade da concorrência em termos de práticas comerciais.

Por essas peculiaridades, a aprovação não foi isenta de divergências dentro do Conselho, em especial quanto ao acordo envolvendo a venda das refinarias. Alguns conselheiros alertaram que os processos contra a estatal ainda eram embrionários, que não se produzira evidências de que haveria qualquer infração concorrencial, de que sequer se imputara uma conduta à investigada, que a "exigência" do Cade no acordo era draconiana, sem precedentes, e que isso abriria a possibilidade de que outras empresas pudessem vir a ser severamente punidas por condutas consideradas não muito graves [4].

Em suma, ficou no ar a impressão de que a autoridade da concorrência conferiu ares de tecnicidade a uma decisão de política pública, iniciada já no governo Temer e encampada pelo governo recém eleito à época, de privatizar parte da Petrobras. Nada de errado com a decisão de política pública: é legitimo que um governo eleito queira implementar seu projeto de governo; outras administrações privatizaram outras empresas no passado. O problema, obviamente, era a necessidade de dar essa roupagem técnica à medida, arranhando a imagem de independência que o Cade tanto se esforça para passar.

Além dos pontos elencados acima, também foi alertado no julgamento que o Cade se veria com um sério problema nas mãos caso o governo mudasse de planos e decidisse não mais privatizar todos os ativos contidos no acordo. "E se o governo mudar de ideia? Se entender, por exemplo, que a venda da refinaria de Manaus geraria um monopólio privado e que isso não seria conveniente, o TCC vai obrigar a Petrobras a vender? Se sim, não seria uma ingerência sobre uma decisão de política pública? Se não, o TCC não seria apenas uma formalização acessória para revestir a decisão de desinvestimento de um aval da autoridade concorrencial?" [5].

Pois bem. Vimos no mês passado uma mudança de espírito do presidente da República em relação à política para o setor de combustíveis. Ainda não está claro se a promessa de privatizar parte do refino será descumprida. Mas foram recorrentes frases como "o petróleo é nosso ou é de um pequeno grupo no Brasil?" ou "A Petrobras, em um estado de calamidade, de acordo com o artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, tem que olhar para outros objetivos também" [6]. Mesmo que ainda se vá em frente com o programa de desinvestimentos, a mudança da política de preços será precificada pelo mercado como risco adicional do negócio, ameaçando o próprio interesse privado nas refinarias.

Nesse novo contexto, como ficam os acordos firmados com o Cade, em especial aquele do setor de refino? Dentre as hipóteses contidas no TCC para não se penalizar o seu descumprimento, nenhuma se refere à mudança de orientação da política pública por parte da empresa ou de seu acionista majoritário, ou frustração da venda em decorrência de tal mudança [7]. Pelos termos do acordo, o Cade deveria reabrir as investigações e aplicar as multas ali previstas. Os acionistas da empresa, grande parte privados, perderiam não apenas em função da política de preços, mas com multas aplicadas por um órgão do governo devido à decisão de um outro órgão do governo. Como tal cenário é bastante esdrúxulo, mais provável que algum entendimento seja costurado para enquadrar o descumprimento em alguma hipótese de afastamento da responsabilização, enfraquecendo o instituto do TCC. Como se vê, qualquer o desfecho, perde a defesa da concorrência.

Conforme alertado na época, agências independentes não são aquelas que tomam decisões que agradam o mercado ou o governo, ou ambos, mas aquelas que tomam decisões exclusivamente baseadas na expertise e no melhor juízo de seus técnicos e dirigentes, sem pressões e interferências externas. Não custa lembrar, principalmente ao pessoal do Ministério da Economia, que o modelo de governança que tenta conferir autonomia ao Cade é exatamente o mesmo aprovado pelo Congresso, também no mês passado, para o Banco Central: direção colegiada, dirigentes com mandato fixo, descasados de si e da eleição presidencial, impossibilidade de demissão…

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