Opinião

Fundamentos políticos do Tribunal do Júri

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14 de março de 2021, 17h22

Não há instituição mais controversa do que o Tribunal do Júri. Caluniado e combatido por muitos; exaltado e defendido por outros tantos. Muitos são os que defendem decididamente a sua extinção; outros tantos defendem a sua manutenção com não menos ardor. Aqueles que são favoráveis à abolição do júri encontram um obstáculo intransponível no artigo 60, §4º, IV, da Constituição, pois é praticamente unânime o entendimento de que o júri, na nossa realidade constitucional, é cláusula pétrea, por estar inserido entre as garantias e direitos individuais. Mas essa defesa do júri é muito cômoda: basta dizer que algo é cláusula pétrea para que se torne um dogma intocável e indiscutível. Procurarei, então, ir além da mera leitura seca da Constituição e buscar as razões superiores que determinam "a instituição do júri, essa instituição tão caluniada e, no entanto, tão benéfica", como ponderou Benjamin Constant, "apesar das imperfeições de que nunca foi possível libertá-la inteiramente" [1]. Procurarei então, nestas breves reflexões, me ater aos fundamentos políticos do júri, deixando para uma posterior oportunidade os seus fundamentos jurídicos.

Creio que o maior erro daqueles que criticam o júri é enxergá-lo apenas e tão somente como instituição judiciária, esquecendo-se de seu profundo valor político. Partem das contingentes deficiências de ordem legal e jurídica que podem existir no Tribunal do Júri enquanto instituição judiciária, e negligenciam o seu aspecto político. "Devem-se distinguir", ponderou Tocqueville, "duas coisas no júri: uma instituição judiciária e uma instituição política" [2]. Com efeito, o Tribunal do Júri tem o seu maior mérito no seu aspecto político e, nesse contexto, o seu inestimável valor democrático. Todo poder emana do povo, diz a nossa Constituição. Seria o Poder Judiciário uma exceção? Se para ser alçado ao poder no Legislativo e no Executivo é preciso ter representatividade popular, não deveriam também os juízes serem eleitos pela população? Embora o voto popular e periódico seja o instrumento da democracia representativa, ele tem o seu valor restrito às funções do Legislativo e do Executivo. Para os cargos do Judiciário, a eleição popular significaria a perda da independência política que os juízes devem ter para decidir conforme a Justiça. Benjamin Constant disse muito bem: "É bom que o poder legislativo dependa do povo. É bom que o judiciário não dependa" [3]. Realmente, o voto popular e a eleição periódica extinguiriam no Poder Judiciário aquilo que lhe é condição sine qua non: a independência. O Tribunal do Júri aparece então como o meio de permitir a participação popular no Poder Judiciário sem lhe tirar a independência. Aliás, só a aumenta, como veremos adiante.

Nesse contexto, Tocqueville, entusiasta da incipiente democracia que brotava na América, anotou que o júri contém um belíssimo componente republicano: "Aplicar o júri à repressão dos crimes parece-me introduzir no governo uma instituição eminentemente republicana. Explico-me. A instituição do júri pode ser aristocrática ou democrática, conforme a classe em que se convocam os jurados; mas sempre conserva um caráter republicano, por colocar na direção real da sociedade nas mãos dos governados ou de uma porção deles, e não na dos governantes" [4]. E mais adiante arremata: "O sistema do júri, tal como é entendido na América, parece-me uma consequência tão direta e tão extrema do dogma da soberania do povo quanto o voto universal. São dois meios igualmente poderosos de fazer reinar a maioria. Todos os soberanos que quiseram buscar em si mesmos as fontes de seu poder e dirigir a sociedade em vez de se deixar dirigir por ela destruíram a instituição do júri ou lhe tiraram a força. Os Tudor mandavam para a prisão os jurados que não queriam condenar, e Napoleão fazia que fossem escolhidos por seus agentes" [5]. Algo semelhante ocorreu no mais famoso caso de erro judiciário brasileiro: o governo de então, autoritário e antidemocrático, afastou por duas vezes as decisões dos jurados que haviam absolvido os pobres dos irmãos Naves. É isso que os governos autoritários fazem: quando não podem extinguir o Tribunal do Júri, enfraquecem-no nas suas vigas mestras, esvaziando os seus princípios sagrados. Ao proibir a tese da legítima defesa da honra, por exemplo, tira-se o poder de decisão dos jurados e transfere-o para as cortes superiores. Parece que, no fundo, não é a tese da legítima defesa da honra em si que incomoda, mas o fato de o Tribunal do Júri ser o mais independente do governo e o fato de suas decisões gozarem de proteção constitucional privilegiada. Parece-me um desejo de afastar o povo da administração da Justiça. Administrar a Justiça é, assim como fazer e executar as leis, uma forma de exercício do poder, a mais sensível e direta forma de exercê-lo. Afastar o povo desse exercício é antirrepublicano e antidemocrático, e revela uma certa tendência autoritária naqueles que pretendem extinguir tão independente e corajoso tribunal. O grande jurista alemão Ihering, apesar de não muito simpático ao tribunal popular, reconheceu-lhe a virtude de ser a espécie de magistratura com o maior grau de independência imaginável:

"O jurado nada tem a temer ou a esperar da parte do governo. Seu aparecimento, i.e., a escolha de cada jurado, é sobremodo súbita, incalculável; sua função, sobremaneira transitória, rápida, para que seja factível uma sua indução da parte do poder público. O tempo e o local opõem a isso intransponíveis obstáculos. Se o ideal do juiz dependesse meramente de sua independência em relação ao governo, não haveria instituição mais perfeita do que o tribunal do júri" [6].

Um outro valor político inestimável do Tribunal do Júri, ao meu ver o mais elevado de todos, é que ele constitui uma perene e inesgotável fonte de difusão de conhecimento e instrução para o povo. Tocqueville notou que, para os Estados Unidos da América, o júri representou o grande fator de emancipação cultural e moral do povo americano: "O júri contribui incrivelmente para formar o discernimento e para aumentar as luzes naturais do povo. É esta, a meu ver, sua maior vantagem. Devemos considerá-lo uma escola gratuita e sempre aberta, em que cada jurado vem se instruir de seus direitos, em que cada jurado entra em comunicação cotidiana com os membros mais instruídos e mais esclarecidos das classes elevadas, em que as leis lhe são ensinadas de maneira prática e postas ao alcance de sua inteligência pelos esforços dos advogados, as opiniões do juiz e as próprias paixões das partes" [7]. O júri é um poderoso meio de se elevar a instrução e as luzes da população: retira-se o cidadão, momentaneamente, de seus afazeres diários para, por uns dias, prestar esse cívico e relevante serviço público, do qual ele próprio é o maior usuário. Através do júri, a dona de casa, a arquiteta, o professor, o técnico em Ciências da Informática, a balconista, todo e qualquer cidadão toma conhecimento do artigo 25 do Código Penal e como o seu direito de legítima defesa pode lhe socorrer; tomam conhecimento do funcionamento de um inquérito policial e de eventuais desvios que se praticam nele; passam a entender o papel do Ministério Público no processo penal; tomam conhecimento da importância do direito de defesa e do devido processo legal; enfim, o cidadão entra em contanto com um saber que, do contrário, lhe permaneceria oculto e inatingível. Porque, então, extinguir o júri e interditar toda essa disseminação de saber jurídico e político para todas as camadas da população, para onde esse saber seria, sem o júri, inacessível? A quem interessa manter o povo na ignorância e alheio ao funcionamento da administração da Justiça de seu país? Retirar da sociedade esse instrumento tão eficaz de incremento do conhecimento jurídico e político me parece a manifestação de um vezo aristocrático e elitista que não se coaduna com o regime republicano e democrático vigente.

Com todos esses benefícios, criticar o júri e defender a sua extinção, levando em conta apenas as suas deficiências de ordem jurídica (deficiências essas contingentes e contornáveis por meios legislativos), negligenciando esse inestimável valor político, é retirar da sociedade um dos melhores e mais legítimos instrumentos de aprimoramento da Justiça e da própria democracia. A administração da Justiça é também uma res publica. A Justiça, o Direito e as leis não são valores a serem monopolizados por uma aristocracia de legistas. Acusa-se o júri de ser uma instituição falida; acusam-no de ser anacrônico e inoportuno; acusam os jurados de serem despreparados. "Não é a instituição", pondera Constant, "é a nação que se acusa"[8]. Aqueles que são a favor da extinção do Tribunal do Júri devem, portanto, começar por explicar como fazê-lo sem, ao mesmo tempo, vulnerar a soberania popular, o regime democrático e o princípio republicano, pois o Tribunal do Júri carrega todos esses atributos na sua constituição.

 


[1] CONSTANT, Benjamin. Escritos de política, Trad. Eduardo Brandão, Martins Fontes, 2005, p. 163.

[2] TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. cit., p. 318.

[3] CONSTANT, Benjamin. Princípios de política aplicáveis a todos os governos, Trad. Joubert de Oliveira Brízida, Editora Topbooks, 2008, p. 755.

[4] TOCQUEVILLE. Alexis de. Op. cit., p. 319. (sem grifos no original)

[5] TOCQUEVILLE. Alexis de. Op. cit., p. 319.

[6] IHERING, Rudolf von. A finalidade do direito, Vol. 1, Trad. José Antonio Faria Correa, Editora Rio, 1979, p. 219.

[7] TOCQUEVILLE. Alexis de. Op. cit., p. 321.

[8] CONSTANT, Benjamin. Op. cit., p. 163.

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