Opinião

Prática indigesta: o caso da Eletrobras

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14 de março de 2021, 6h35

Os últimos atos de intervenção estatal por parte da Presidência da República na Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) tiveram repercussões desfavoráveis e negativas instantaneamente, somando perdas e reflexos indesejáveis, apesar do último balanço da empresa, relacionado ao quarto trimestre de 2020, ter acumulado lucros líquidos [1].

A resposta a esse tenso cenário, que colocou em xeque as crenças da política liberal do governo federal, veio com uma medida desestatizante. A despeito da contradição e do trocadilho, a réplica veio com a edição da Medida Provisória nº 1.031, de 23 de fevereiro de 2021, que prevê a desestatização da Centrais Elétricas Brasileiras S.A., a Eletrobras. Nesse ponto, cabe rememorar que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 9.463/2018 [2], que igualmente dispõe acerca da privatização da estatal, de forma bastante similar.

Muito embora possa ser bastante frutífero, não há pretensão de se fazer comparações entre ambos os textos, mas apenas evidenciar um aspecto indigesto: a utilização do instrumento da medida provisória como uma "ferramenta" de pressão política e pública, capaz de provocar impactos econômicos e de fragilizar a segurança jurídica.

A previsão de desestatização da Eletrobras, nas duas situações, é a de ser realizada na modalidade de aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias da estatal. A medida provisória, inclusive, prediz que essa capitalização está condicionada à conversão daquela em lei, destino final doutro projeto em tramitação.

No entanto, quais seriam as justificativas para a medida satisfazer os requisitos constitucionais de relevância e urgência, previstos no artigo 62, caput, da CF?

Segundo se extrai do próprio encaminhamento do Ministério da Economia, a propositura possui embasamento constitucional em razão de o Projeto de Lei nº 9.463/2018 "se encontrar sem encaminhamento no Congresso Nacional", como também pelo fato de a estatal "perder participação no setor elétrico" [3]. Ocorre que a opção de eleger um caminho mais curto e aprazado, ofertado constitucionalmente para as medidas provisórias, não é derivada de uma mera vontade ou de composições de bancada que viabilizem uma base de apoio. É preciso cumprir condições.

A "ausência de encaminhamento" e a "perda de participação no setor" podem ser vistas como fatores de relevância e urgência ou serem considerados, respectivamente, reflexos de um desarranjo institucional e de ingerências administrativas?

Em caso de flagrante ausência dos pressupostos constitucionais, medidas adotadas pelo Poder Executivo são revistas e afastadas pelo Supremo Tribunal Federal, aumentando o temor ao cenário de inconstâncias [4]. Ainda que de maneira excepcional, o papel do controle judicial é imperioso para conter possíveis abusos legislativos atrelados a conceitos jurídicos indeterminados, como os de "relevância e urgência".

Portanto, é necessário alertar sobre os riscos na utilização de conceitos maleáveis para os fins de justificar um exercício discricionário, atípico e excepcional, na medida em que o controle jurisdicional se assenta na finalidade de manutenção da ordem jurídica e da separação dos poderes.

Ainda que superadas tais questões, é de se reforçar que a sobreposição de textos legislativos mais atrapalha do que favorece um ambiente de estabilidade jurídica, como também confere turbulência à própria discussão parlamentar, como poderá ocorrer com a Medida Provisória nº 1.031, de 23 de fevereiro de 2021. O texto foi alvo de 570 emendas parlamentares, que serão dissecadas ao longo do processo legislativo. Percebe-se, portanto, a possibilidade de ele ser travado e/ou alterado substancialmente, impactando toda linha racional construída de início. In casu, a depender do resultado das emendas, os lucros da possível desestatização da estatal podem flutuar e o destino dos recursos auferidos na operação podem variar.

Acenos à economia, por mais relevantes que sejam, não podem ser concretizados a partir de mecanismos incertos como as medidas provisórias, uma vez que o risco de se conviver com leis efêmeras é alto e danoso. A manutenção da separação dos poderes e a segurança jurídica devem se sobrepor aos afagos ao "mercado". Caso contrário, faltará remédio para combater a indigestão.

 


[4] A crescente apropriação institucional do poder de legislar, por parte dos sucessivos presidentes da República, tem despertado graves preocupações de ordem jurídica, em razão do fato de a utilização excessiva das medidas provisórias causar profundas distorções que se projetam no plano das relações políticas entre os Poderes Executivo e Legislativo. Nada pode justificar a utilização abusiva de medidas provisórias, sob pena de o Executivo, quando ausentes razões constitucionais de urgência, necessidade e relevância material, investir-se, ilegitimamente, na mais relevante função institucional que pertence ao Congresso Nacional, vindo a converter-se, no âmbito da comunidade estatal, em instância hegemônica de poder, afetando, desse modo, com grave prejuízo para o regime das liberdades públicas e sérios reflexos sobre o sistema de checks and balances, a relação de equilíbrio que necessariamente deve existir entre os Poderes da República. Cabe ao Poder Judiciário, no desempenho das funções que lhe são inerentes, impedir que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória culmine por introduzir, no processo institucional brasileiro, em matéria legislativa, verdadeiro cesarismo governamental, provocando, assim, graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes. (ADI 2.213 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 4-4-2002, P, DJ de 23-4-2004).

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    é procurador autárquico, advogado, professor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, pós-graduado em Direito Público e mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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    é doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra, mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-graduado em Direito Administrativo pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

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