Opinião

A renda básica de cidadania e o custo dos direitos sociais

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13 de março de 2021, 11h16

Na mesma semana em que o Senado aprovou a PEC Emergencial (PEC 186/2019 [1]), que permite ao governo federal pagar o auxílio emergencial em 2021 por fora do teto de gastos do orçamento, o Supremo Tribunal Federal, por meio do decano da corte, ministro Marco Aurélio, contabilizou um voto para obrigar a União a implementar o programa de renda básica da cidadania [2]. O julgamento ainda não foi concluído porque houve pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, mas ele nos estimula a refletir, mais uma vez, sobre a relação entre direitos sociais e o seu financiamento.

O caso teve início a partir de mandado de injunção impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de um homem que afirma receber R$ 91 do programa Bolsa Família. Por conta da pandemia da Covid-19, ele passou a receber o auxílio emergencial, todavia, como tal auxílio não é permanente o homem impetrou o mandado de injunção para fazer valer os seus direitos sociais.

A Lei nº 10.835/2004 instituiu o programa de renda básica da cidadania e previu que a partir de 2005 todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil teriam direito de receberem, anualmente, um benefício monetário.

Tal benefício deveria ser implementado pelo Poder Executivo, via norma regulamentadora, e em etapas, a começar pelas camadas mais necessitadas da população; deveriam ser observadas as possibilidades orçamentárias do país; poderia ser pago em parcelas iguais e mensais e teria de ser suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde. Porém, ultrapassados mais de 15 anos, a União ainda não editou norma regulamentadora para implementar o programa, daí o porque da impetração do mandado de injunção (CF, artigo 5º, inciso LXXI).

O momento não poderia ser mais delicado e desafiador. Sem contar a pior crise de saúde pública da história brasileira, que infelizmente já matou mais de 265 mil pessoas até o fechamento deste texto [3], a crise econômica também é gravíssima tendo o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro registrado queda de 4,1%, a pior em 24 anos [4]. Aprovada a PEC na Câmara dos Deputados, o governo pagará um novo auxílio emergencial cujo valor exato e número de parcelas ainda está em estudo. O que se sabe é que o valor dele será menor que o de 2020.

Dessa forma, desenhado o quadro fático de crise econômica provocada pela pandemia e considerando o dever legal do Estado de implementar o programa de renda básica da cidadania a grande pergunta é: há recursos para isso? Seria simplista dizer sim ou não sem levarmos em consideração uma análise sistêmica, que, aparentemente, não foi feita quando da apresentação da PEC 186/2019.

Em outras palavras: ao propor a PEC emergencial o governo parece ter considerado apenas a situação de emergência causada pela pandemia se esquecendo de olhar para o todo, sobretudo, para o seu dever de implementar a renda básica de cidadania. Agora, mais do que nunca, é momento de se avaliar os programas sociais do governo federal no sentido de apontar e corrigir suas falhas para, no passo seguinte, implementar os direitos decorrentes da Lei nº 10.835/2004. Caso o Poder Executivo não o faça, o Poder Judiciário será cada vez mais provocado a fazê-lo.

Vale a pena observar que a questão do financiamento dos direitos sociais não é nova na jurisprudência do STF e sempre entra em cena o argumento da reserva do financeiramente possível [5]. Segundo esse argumento, as necessidades sociais são imensas e os recursos financeiros para satisfazê-las são escassos daí que "o Estado, na sua tarefa de definir prioridades e determinar suas políticas públicas de alocação das verbas existentes, poderia alegar a cláusula da reserva do possível. Esta seria uma limitação jurídico-fática que poderia ser apresentada pelos Poderes Públicos tanto em razão das restrições orçamentárias que lhes impediria de implementar os direitos e ofertar todas as prestações materiais demandadas, quanto em virtude da desarrazoada prestação exigida pelo indivíduo" [6].

Todavia, o argumento da reserva do possível não é um argumento mágico, bastando ao poder público dizer que não há dinheiro e ponto final. "A alegação da cláusula é, portanto, um ônus que recai sob o Poder Público quando este a alega como defesa frente ao não atendimento das prestações solicitadas, cabendo-lhe o dever de comprová-la satisfatoriamente, não sendo suficiente a alegação genérica de que não há possibilidade orçamentário-financeira de se cumprir o direito, será preciso demonstrá-la cabalmente. Nas palavras de Marmelstein, é o Estado quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não efetivação do direito fundamental" [7].

O julgamento do MI nº 7.300/DF ainda não acabou. A PEC nº 186/2019 saiu do Senado e foi enviada para a Câmara dos Deputados. Quem sabe no transcorrer do processo legislativo o texto possa ser aperfeiçoado de modo a suprir a mora do poder público em implementar a renda básica de cidadania. A prevalecer o voto do relator, até que sobrevenha norma regulamentadora do Poder Executivo, a renda básica de cidadania deverá ser paga em valor correspondente a um salário mínimo. O custo financeiro de deixar de regulamentar a Lei nº 10.835/2004 pode sair caro.

 


[5] RE nº 429.903/RJ, relator ministro Ricardo Lewandowski, 1° Turma, v.u., j. 25.06.2014 e RE nº 592.581/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Plenário, v.u., j. 13.08.2015.

[6] Masson, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Editora Juspodivm. 9ª edição. p. 330.

[7] Masson, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. Editora Juspodivm. 9ª edição. p. 333.

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