Opinião

O 'caso Changri-lá' e o Direito Internacional das imunidades perante o Supremo

Autores

  • Aziz Tuffi Saliba

    é professor associado de Direito Internacional da UFMG doutor em Direito pela UFMG com mestrado na Universidade do Arizona estágio pós-doutoral na Université Laval e é presidente do Ramo Brasileiro da International Law Association.

  • Lucas Carlos Lima

    é professor de Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais CNPq/UFMG membro da Diretoria do Ramo Brasileiro da International Law Association consultor internacional e organizador da obra Comentário Brasileiro à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

13 de março de 2021, 10h11

Em 1943, o barco pesqueiro Changri-lá e sua tripulação de dez pescadores desapareceram nas proximidades de Cabo Frio, Rio de Janeiro. Apenas em 2001 o Tribunal Marítimo da Marinha do Brasil reconheceu que a embarcação havia sido afundada por um submarino alemão. Parentes das vítimas buscaram no Judiciário brasileiro reparação por danos morais e materiais [1], mas esbarraram em norma consuetudinária de Direito Internacional Público: a interdição de submeter às cortes domésticas os atos de império de outros Estados. Por meio do Recurso Extraordinário com Agravo 954858 neste momento suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes —, o que se discute é se violações de direitos humanos afastam a regra da imunidade dos Estados diante de atos de império.

Neste texto, analisamos duas questões presentes nos votos já proferidos pelos ministros do STF: o descolamento do Direito Internacional e as possíveis consequências da tese proposta pelo ministro relator, Edson Fachin.

Em 2017, o STF entendeu que o "caso Changri-lá" era dotado de repercussão geral e o relator emitiu seu voto na última semana de fevereiro de 2021. Em síntese, o voto do ministro Fachin foi no sentido de afastar a imunidade de jurisdição diante da regra constitucional de prevalência de direitos humanos. Segundo o ministro, "diante da prescrição constitucional que confere prevalência aos direitos humanos como princípio que rege o Estado brasileiro nas suas relações internacionais (Artigo 4º, II), [esta Corte deve] torná-la efetiva, afastando a imunidade de jurisdição no caso". A tese é certamente inovadora e ganhou o apoio das ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia, bem como do ministro Dias Toffoli, que acompanharam o voto do relator.

A divergência foi instaurada pelo ministro Gilmar Mendes e seguida pelo ministro Marco Aurélio Mello, para os quais deve prevalecer a imunidade de jurisdição. Para o ministro Gilmar Mendes, dever-se-ia "manter a integridade da nossa jurisprudência, a qual tem mantido a imunidade absoluta em se tratando de atos de império, tal como no caso em análise, além de refletir a exegese majoritária da comunidade internacional, sob pena de criarmos um incidente diplomático internacional".

A questão não é nova no Direito Internacional e gerou ampla repercussão quando em 2006 as cortes italianas relativizaram a imunidade de jurisdição da Alemanha no "caso Ferrini", envolvendo graves violações do Direito Internacional pela Alemanha durante a Segunda Guerra. No caso em questão, o juiz nacional italiano empregou o Direito Internacional como parte fundamental de sua argumentação e entendeu haver exceção à regra de imunidade diante de graves violações de direitos humanos e direito humanitário. A Corte de Cassação italiana confirmou o entendimento e bens do Estado alemão na Itália foram executados.

O litígio chegou ao principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), que decidiu por sólida maioria no "caso imunidades jurisdicionais" que as sentenças das cortes italianas violavam o Direito Internacional. Na ocasião do julgamento de 2012, a CIJ observou que, "no direito costumeiro como presentemente se encontra, um Estado não é privado de sua imunidade em razão do fato de ser acusado de sérias violações do Direito Internacional dos direitos humanos ou do Direito Internacional dos conflitos armados" [2]. Condenada a Itália, a Corte Constitucional Italiana rejeitou a decisão da CIJ com a sentença 238/2014, a qual, em suma, entendeu impossível negar a própria jurisdição pelos atos de um Estado estrangeiro que consistam em crime de guerra e crimes contra a humanidade. Importante frisar, a decisão é até hoje motivo de controvérsias diplomáticas e jurídicas entre os dois Estados [3].

Não há dúvidas de que ainda inexiste no Direito Internacional uma consolidada exceção à regra da imunidade de jurisdição sobre atos de império [4]. Para emergir uma nova regra de direito costumeiro, é necessária uma prática geral dos Estados, ou seja, suficientemente difundida e representativa, bem como constante. É difícil verificar tal prática no caso em questão. A questão que se levanta seria se o Brasil juntamente com a Itália, a Grécia e a Coréia do Sul encontra-se na vanguarda de tal prática. Nesses casos, o risco é não distinguir nitidamente o que constitui prática do que constitui violação: a reação dos Estados e de órgãos internacionais como a Corte Internacional de Justiça são significativos nesse contexto para avaliar uma prática nascente.

O voto do ministro relator não oferece uma resposta para a inexistência de uma regra no Direito Internacional que excepcione a imunidade. Em verdade, esse parece ser um problema do raciocínio esposado no voto: o descolamento do Direito Internacional.

Existem argumentos que poderiam mais consistentemente fundamentar uma tese a favor da flexibilização da imunidade dentro do próprio Direito Internacional como se depreende do próprio voto dissidente do professor Cançado Trindade no caso das imunidades jurisdicionais. Mas, no caso em questão, o Direito Internacional é deixado de lado e o ministro relator se encastela no artigo 4º da Constituição, uma norma de guia das relações internacionais. A saída encontrada pelo ministro para afastar o precedente da CIJ foi invocar o artigo 59 do estatuto da corte que escabece que a decisão só é válida entre as partes litigantes. Contudo, afastar a decisão e a argumentação da CIJ invocando o artigo 59 é uma opção controvertida porque esquiva-se do problema. Ainda que se devesse ignorar o precedente da CIJ, algo bastante temerário na ordem internacional, é difícil entrever no voto um endereçamento da regra a qual a CIJ faz referência.

Se queremos contribuir para afirmar uma nova regra internacional que excepcione a regra da imunidade jurisdicional, devemos realizar um atento exame da prática internacional e empregar argumentos de Direito Internacional, como exatamente fez a Corte de Cassação italiana no "caso Ferrini", quando afirmou a inexistência de imunidade perante a violação de direitos humanos graves. Do contrário, dever-se-ia focar exclusivamente no Direito interno brasileiro, não se tratando de direitos humanos internacionalmente reconhecidos, mas, sim, o direito de acesso à Justiça. Abraçar-se-ia então a assim chamada (e também controversa) doutrina dos contra-limites, segundo a qual valores fundamentais da ordem interna podem limitar regras internacionais. Tal opção abre sendeiros para um potencial reconhecimento da violação da mesma regra por parte do Brasil. Contudo, o voto do relator parece estar na metade dessas duas estradas: nem internacional, nem propriamente constitucional. Majora-se, assim, a possibilidade de incongruências entre os ordenamentos internacional e interno.

A preocupação com o inadimplemento das obrigações internacionais emerge no voto do ministro Gilmar Mendes. Em seus argumentos, parece também se espelhar a ideia de que o princípio constitucional da separação dos poderes deveria impedir o judiciário de agir, ao reforçar que "caso proceda ao descumprimento de qualquer norma consuetudinária, a República Federativa do Brasil, através do seu chefe de Estado, deve assumir, no plano internacional, inúmeras consequências, não existindo qualquer atribuição do Poder Judiciário nesse sentido".

O segundo aparente problema do voto do relator é a abrangência da tese fixada, segundo a qual "os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição". Não se conhece um exemplo de escopo tão amplo na prática dos Estados. Mesmo as decisões que afastaram a regra da imunidade e que eventualmente poderiam ter integrado o voto do ministro especificam que apenas as "graves violações" de direitos humanos poderiam vencer a regra do par in parem non habet judicium. Caso tal decisão prospere, o Brasil estaria indo além das progressistas, mas controversas, posições assumidas pelas cortes gregas e italianas, bem como de recente decisão sul-coreana, que tentaram remediar judicialmente gravíssimas violações de direitos humanos ocorridas em seu território levadas a cabo por outros Estados.

É de se questionar, também do ponto de vista de política judiciária internacional, se um caso isolado deveria contribuir para firmar tal precedente. Dever-se-ia fixar uma tese ampla afastando uma regra amplamente reconhecida diante de um incidente ocorrido às margens de um contexto bélico? Uma segunda questão é o limite dos direitos humanos alcançados. Imagine-se tão somente a hipótese da violação de direitos humanos como o direito à propriedade gerando a flexibilização da imunidade dos Estados.

A reação de outros Estados a uma potencial flexibilização da imunidade de jurisdição por parte do Judiciário brasileiro seria igualmente interessante de se verificar. Considerando as reações à sentença 238/2014 da Corte Constitucional italiana, que reputou que a regra consuetudinária da imunidade no caso de graves violações se coloca "em contraste com o princípio fundamental da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais assegurada pela constituição italiana", o caminho não será ausente de resistências. Num ordenamento regido pela lógica da reciprocidade, garantir a imunidade é também ter a certeza de que a sua imunidade será garantida.

Não há dúvidas de que violações de direitos humanos necessitam reparação; esse é um princípio basilar do ordenamento brasileiro, interamericano e internacional. Contudo, o risco da abertura de brechas na regra da imunidade não é apenas de desencadear a responsabilidade brasileira por violação do Direito Internacional, mas de se criar um precedente que torne a regra da imunidade de jurisdição, "que ocupa um lugar importante no Direito Internacional e nas relações internacionais" [5], vazia de significado. Tal regra deriva diretamente da igualdade soberana dos Estados, não só "um dos princípios fundamentais da ordem jurídica internacional" [6], mas também reconhecida no artigo 4º de nossa Constituição.

 


[1] Sobre o tema, ver, SALIBA, Aziz Tuffi; MAIA, Tainá. Changri-lá, Antônio Apúlio Aguiar Coutinho and others v The Federal Republic of Germany, Reparation proceedings, Ordinary appeal judgment, No 2008/0042275-3, ILDC 1160 (BR 2008). In: NOLLKAEMPER, André; REINISCH, August. (Org.). Oxford Reports on International Law in Domestic Courts. 2ed.Oxford: Oxford University Press, 2020.

[2] Jurisdictional Immunities of the State (Germany v. Italy: Greece intervening), Judgment, I.C.J. Reports 2012, para. 91, tradução nossa.

[4] O tópico foi tanto debatido pela Comissão de Direito Internacional quanto pelo Comitê Jurídico Interamericano. Em relação aos trabalhos da primeira, ela embasou essencialmente a Convenção das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens de 2004, ainda não em vigor. Sobre o último, ver LIMA, L. C. O Comitê Jurídico Interamericano da OEA e a codificação do direito internacional regional. Revista de Direito Internacional, v. 16, p. 292-303, 2019.

[5] Jurisdictional Immunities of the State (Germany v. Italy: Greece intervening), Judgment, I.C.J. Reports 2012, para. 57.

[6] Jurisdictional Immunities of the State (Germany v. Italy: Greece intervening), Judgment, I.C.J. Reports 2012, para. 57.

Autores

  • é professor associado de Direito Internacional da UFMG, doutor em Direito pela UFMG, com mestrado na Universidade do Arizona, estágio pós-doutoral na Université Laval e é presidente do Ramo Brasileiro da International Law Association.

  • é professor adjunto de Direito Internacional da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Direito Internacional pela Università degli Studi di Macerata e diretor do Ramo Brasileiro da International Law Association.

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