Opinião

O crime de fraude à licitação: a Súmula 645/2021 do STJ e a nova Lei de Licitações

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13 de março de 2021, 6h05

Recentemente foi publicada a Súmula 645 pelo Superior Tribunal de Justiça, sobre a natureza dos delitos de fraude à licitação, previstos no artigo 90 da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações). Com a súmula, restou estabelecido que os delitos de fraude à licitação são formais, isto é, independem do resultado para sua consumação. De acordo com os precedentes que deram origem à Súmula 645, "o dano se revela pela simples quebra do caráter competitivo entre os licitantes interessados em contratar, ocasionada com a frustração ou com a fraude no procedimento licitatório" [1].

O tipo penal descrito no artigo 90 trata das ações de "frustrar ou fraudar", por meio de ajuste, combinação ou qualquer outro meio, a competitividade do procedimento licitatório, com a finalidade de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Conforme precedentes do STJ: "O delito descrito no art. 90 da Lei n. 8.666/1993 é formal, bastando para se consumar a demonstração de que a competição foi frustrada, independentemente de demonstração de recebimento de vantagem indevida pelo agente e comprovação de dano ao erário" [2]. Assim, certamente críticas devem surgir quanto ao recorte dogmático traçado pela súmula, entretanto, ao atentar para os verbos nucleares do tipo e os elementos subjetivos, é possível notar que a conduta descrita em muito se aproxima a uma conduta de natureza formal.

Para a construção de uma reflexão mais adequada, é preciso observar os princípios basilares das ciências jurídico-penais, subsidiariedade, fragmentariedade, proporcionalidade, intervenção mínima. A escolha em buscar na lei penal uma forma de inibir a violação dos princípios da Administração Pública, quando da contratação com o Estado e terceiro por meio de um processo licitatório, demonstra situações sensíveis dentro da sociedade como um todo.

Primeiro, reforça o papel desempenhado pela Administração Pública no âmbito estatal. Como essa deve ser norteada pelos princípios constitucionais, previstos no artigo 37 da Constituição, para que, assim, garanta a efetivação dos objetivos e fundamentos do Estado democrático de Direito consagrados constitucionalmente. Segundo, demonstra a vulnerabilidade do Estado e da sociedade, uma vez que, para que se dê efetividade aos princípios da Administração Pública, de maneira racional, por parte do Estado e da própria sociedade, torna-se necessária a intervenção subsidiária do Direito Penal [3].

Com a definição da natureza formal, o delito contido no artigo 90 da Lei nº 8.666/93 pode ocorrer mesmo sem que se realize qualquer tipo de dano ao erário, ou seja, mesmo até que não haja condenação na esfera administrativa. O tipo penal incriminador descreve uma conduta que tem por objetivo a distorção do regular processo competitivo mediante fraude ou mesmo a frustração de um processo licitatório e a finalidade de obter vantagem (para si ou para outrem) está atrelada ao êxito em vencer o processo licitatório em detrimento dos demais concorrentes, porém, independentemente de ser ou não o vencedor, caso reste configurada fraude ou frustração por parte de um dos concorrentes, este responde pelo delito. Não há previsão de aferição de vantagem pecuniária, de modo direto, ou mesmo a possibilidade de causar prejuízos ao erário. A tutela recai sobre o processo licitatório em si, visa a proteção de princípios como a legalidade e a moralidade.

Assim, o próprio STJ, em embargos de divergência no REsp 1.498.982/SC, de relatoria do ministro Humberto Martins, esclarece acerca do bem jurídico tutelado: "O objeto jurídico que se objetiva tutelar com o art. 90 da Lei n. 8.666/1993 é a lisura das licitações e dos contratos com a Administração, notadamente a conduta ética e o respeito que devem pautar o administrador em relação às pessoas que pretendem contratar com a Administração, participando de procedimento licitatório livre de vícios que prejudiquem a igualdade, aqui entendida sob o viés da moralidade e da isonomia administrativas".

De outro lado, existe um Projeto de Lei aprovado (PL 4253/2020) com a finalidade de instituir uma nova Lei de Licitações. Esse projeto aguarda a sanção presidencial. Caso seja sancionado, a Lei nº 8.666/93 será revogada e o delito de fraude à licitação passará a ser tipificado no artigo 337-F que será inserido no Código Penal, com a seguinte redação: "Frustração do caráter competitivo de licitação – Art. 337-F Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: Pena – reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa". Nota-se que a sanção contida no artigo 337-F, a ser introduzido no Código Penal, foi majorada. A previsão do artigo 90 da Lei nº 8.666/93 era de detenção de dois a quatro anos, e multa. A nova norma penal secundária traz um regime mais rígido, reclusão, e um recrudescimento de pena, mínima de quatro e máxima de oito anos. No que diz respeito ao dispositivo, o novo artigo 337-F, a ser incluído no Código Penal, suprimiu a expressão "mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente"; desse modo, a conduta poderá ser imputa apenas a um concorrente, sem que outros tenham participado.

Essas movimentações, jurisprudenciais e legislativas conduzem as reflexões acerca das opções de enfrentamento quanto aos delitos econômicos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Em grande parte, as opções político-criminais estão atreladas ao recrudescimento das sanções, modificações quanto aos regimes de pena, algumas alterações no âmbito da legislação material, sem grandes inovações quanto à efetiva modificação no sistema que tratem as causas dos delitos e, nesse caso, dos delitos econômicos.

O Direito Penal Econômico em si não é novo. Klaus Tiedemann, há muito, afirma que a maior parte dos delitos econômicos são delitos acessórios pois dependem de legislações extrapenais [4], assim, na maioria das vezes, no âmbito da Administração Pública podem ocorrer delitos econômicos, ainda mais em se tratando de contratos públicos e da necessidade estatal em dar concretude aos princípios e fundamentos constitucionais ante a sua atuação efetiva na construção da sociedade como um todo.

É necessário estar sempre atento às movimentações que ocorrem dentro do sistema jurídico e, em se tratando de delitos econômicos, haja vista a relevância da temática nas pautas internacionais, sua complexidade e dinamismo, é sempre bom rever e revisitar os conceitos, mesmo que elementares, pois é essa atuação constante, crítica e reflexiva que contribui para os ajustes pontuais quanto ao enfrentamento da problemática.

 


[1] STJ, REsp 1.484.415/DF, Sexta Turma, Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz, DJe de 22/2/2016.

[2] STJ, HC 341.341/MG, Quinta Turma, Rel. Ministro Joel Ilan Paciornik, Dje de 16/10/2018.

[3] Conforme demonstra Fernando A. Fernandes, acerca do papel subsidiário do Direito Penal: “Portanto, em um modelo de Estado que pretenda ser de Direito, Democrático e Social, Material, fundado no reconhecimento da eminente da dignidade da pessoa humana, a supressão ou restrição de algum direito inerente a essa última será possível na medida da necessidade para a proteção de um outro direito. In FERNANDES, Fernando A. Sobre a opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão das ciências jurídico-criminais. Liber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p.66.

[4] TIEDEMANN, Klaus. Derecho penal económico. Introdución y parte general. Perú: Editora y Libraría Juridica Grijley,  2009, p. 44.

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