Opinião

Nova Lei de Licitações: ilusória proteção de direitos em face da realidade

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13 de março de 2021, 7h05

Recebida com entusiasmo por parcela daqueles que contratam com a Administração Pública, a redução do prazo de inadimplência autorizador da extinção dos contratos pelos particulares prevista na nova Lei de Licitações (artigo 137, §2º, IV, PL 4.253/20) [1], embora pareça indicar a intenção de avançar no tema em comparação com o dispositivo similar existente na Lei 8.666/93, protegendo de modo mais rigoroso os direitos dos contratados, deve, na prática, ser encarada com algum ceticismo.

A redação do artigo 78, XV, da Lei 8.666/93, atualmente em vigor, estabelece que o particular pode rescindir a contratação após 90 dias de atraso no pagamento pela Administração Pública, salvo na ocorrência de determinadas situações excepcionais, como são os casos de calamidade pública, grave perturbação da ordem ou guerra. Já o PL 4.253/20 não só reduz tal prazo para 60 dias como também deixa de apresentar qualquer condicionante ao exercício do direito por parte do contratado. O projeto de lei, portanto, à primeira vista, torna a relação contratual mais equilibrada e próxima da horizontalidade desejada pelos particulares nas relações travadas com o poder público.

Para além do que revela a textualidade da nova norma, no entanto, é preciso lembrar que, na realidade, a Administração Pública tem ignorado e rejeitado, sempre que pode, tal prerrogativa dos particulares, ou seja, seu direito de rescindir a contratação em caso de inadimplência. São frequentes os casos em que, mesmo diante da falta de pagamento persistente superior a 90 dias por parte do poder público, o contratado vê-se compelido a prosseguir no cumprimento dos seus deveres, sob pena de aplicação de multas e outras sanções fundadas em preceitos pouco elaborados e de significado fugidio como os da "essencialidade da contratação" e da "supremacia do interesse público", isso para não mencionar os casos em que a contratante condiciona a rescisão à autorização por decisão judicial, algo que a lei não demanda.

A postura reiterada de vários órgãos da Administração Pública no sentido do descumprimento injustificado e voluntarista da disposição do artigo 78, XV, da Lei 8.666/93 tem contado, por vezes, com a chancela do Poder Judiciário, que em diferentes julgados termina por mitigar a incidência de tal dispositivo e por impedir, pois, a rescisão de contratos administrativos por inadimplência do contratante [2].

O cenário aponta, assim, para uma inviabilidade real de os particulares rescindirem contratos administrativos quando param de ser pagos e tal inadimplência perdura por mais de 90 dias. A utilização de princípios em decisões administrativas e judiciais, praxe no contexto dos sistemas jurídicos contemporâneos, supõe extrema atenção e cuidado com a argumentação a justificar o seu uso o que, infelizmente, não se verifica em nosso país. Por aqui, a invocação de princípios como o da "supremacia do interesse público" pelos poderes do Estado tem sido, quase sempre, não mais que uma arma "de espertos e de preguiçosos", na acertada expressão de Carlos Ari Sundfeld: um "argumento" cômodo que oculta as fragilidades e a superficialidade da decisão [3].

A Administração Pública, com o amparo do Poder Judiciário, tem se bastado nesse absolutamente simplório aceno a um vocabulário principiológico, a respeito do qual o máximo que é possível dizer é que soa belo, para julgar contra o que dispõe a lei: é justamente sobre isso que o PL da nova lei de licitações deveria ter se debruçado, recuperando, reiterando e aprofundando, por exemplo, dispositivos como os artigos 20, 22 e 27 da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, que privilegiam as consequências práticas das decisões administrativas e judiciais e o resguardo dos direitos dos administrados, categoria da qual fazem parte os contratados.

O PL 4.253/20, ao se limitar a reduzir o prazo a partir do qual o contratado pode rescindir o contrato e a retirar qualquer condicionante para tanto, ainda que possa revelar intenções nobres do legislador, ignorou as dificuldades reais e, assim, passou ao largo da necessidade de elaboração de soluções para o problema verdadeiramente enfrentado no cotidiano das contratações públicas.

Por mais que a redação do artigo 137, §2º, IV, tenha exteriormente buscado conferir maior simetria às relações contratuais firmadas com a Administração Pública, é fato que a novidade da redação não contempla qualquer mudança qualitativa suficiente para pressionar a postura do Estado, que tudo leva a crer deve continuar a impedir a extinção dos contratos nos quais é inadimplente a partir da defeituosa metodologia discutida acima quando da vigência da nova lei.

Não basta apenas reduzir o prazo de inadimplência: a verdadeira disputa está na falta de controle da justificação e da motivação, tanto da Administração Pública, como do Poder Judiciário, nas ocasiões em que tais poderes projetam seus atos em afronta direta aos textos claros das regras jurídicas, como a do novo artigo 137, §2º, IV. Tal espécie de norma, frise-se, concretiza valores importantes para os cidadãos ao entregarem soluções isonômicas e previsíveis aos conflitos sociais (ou seja, com segurança jurídica).

A elaboração do artigo 137, §2º, IV, da nova Lei de Licitações, portanto, é tímida e insuficiente para contribuir com a imperiosa tarefa de fazer cessar o recurso equivocado aos princípios que tem marcado as práticas do poder público, algo que o aproxima mais do autoritarismo do que do Estado democrático de Direito anunciado no artigo 1º da Constituição Federal.

 

[1] "Artigo 137 Constituirão motivos para extinção do contrato, a qual deverá ser formalmente motivada nos autos do processo, assegurados o contraditório e a ampla defesa, as seguintes situações: (…) §2º O contratado terá direito à extinção do contrato nas seguintes hipóteses: (…) IV atraso superior a 2 (dois) meses, contado da emissão da nota fiscal, dos pagamentos ou de parcelas de pagamentos devidos pela Administração por despesas de obras, serviços ou fornecimentos".

[2] É o caso, por exemplo, do Agravo em Recurso Especial nº 1.339.560/DF, em que o STJ afastou a aplicação do dispositivo alegando a essencialidade dos serviços prestados e o atendimento ao interesse público: "Sobre a alegação de violação, pelo acórdão recorrido, do artigo 78, XV, da Lei n. 8666/93, assiste razão ao agravante pois, no caso de serviços essenciais, não se pode ignorar o interesse público, no que o referido dispositivo não pode ser interpretado de forma isolada" (Agravo em Recurso Especial nº 1.339.560/DF, relator ministro Francisco Falcão, j. 04/02/2019).

[3] SUNDFELD, Carlos Ari. "Princípio é preguiça?". In: Direito administrativo para céticos. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, p. 205-229.

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