Opinião

Mais um filtro ao acesso à Justiça nos juizados especiais

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12 de março de 2021, 18h21

Inspirado pela publicação do dia 29 de novembro de 2018 da coluna Senso Incomum do jurista e professor Lenio Luiz Streck com o título "O poder sem limites dos juizados e das turmas recursais" [1], este ensaio pretende denunciar mais uma patologia que revela que lá, nos juizados especiais, "criam/estabelecem um mundo jurídico a parte".

No ano de 2009 [2], a ConJur divulgou sentença proferida pelo juízo da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Guarulhos (SP) que restringia o acesso das micro e pequenas empresas aos juizados especiais. O fundamento central da decisão é que a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, "quis favorecer exclusivamente os empresários individuais, que atuam sob o regime jurídico de microempresa e empresa de pequeno porte".

Recentemente, quase 12 anos após, este articulista deparou-se com decisão do juízo do Juizado Especial Cível de Sertãozinho (SP) não apenas adotando a mesma interpretação, mas praticamente reproduzindo o mesmo conteúdo redacional da decisão anterior, apropriando-se ipsis litteris dos seus fundamentos, o que, por si só, já seria inadmissível por afronta ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Até porque, um evento é único e irrepetível (Bakhtin).

Em que pese, este ensaio estará vertido nas razões de decidir das decisões que não admitiram o ingresso, como autor, de microempresa nos juizados especiais pelo simples fato de terem mais de um sócio em seu quadro constitutivo.

O entendimento de que a Lei Complementar nº 123, de 14/12/2006, "quis favorecer exclusivamente os empresários individuais que atuam sob o regime jurídico de microempresa e empresa de pequeno porte", vai de encontro a redação do artigo 3º, que considera como microempresas ou empresas de pequeno porte, a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o artigo 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Não há, como se vê da leitura, qualquer restrição à quantidade de sócios que integrem tais pessoas jurídicas. Ao contrário.

As decisões ainda propõem uma interpretação lógica, sistemática e teleológica da Lei nº 9.099/95 com a Lei Complementar nº 123/06 a fim de criar a restrição não prevista legalmente.

O que se revela é que as decisões negam vigência ao artigo 3º da Lei Complementar nº 123/06, já que não há qualquer conflito ou lacuna entre as normas veiculadas, não havendo de se adotar os métodos de interpretação invocados.

E, ainda que fosse o caso, cabe seja dito que tanto a interpretação lógica, sistemática e teleológica da norma veiculada caminham no sentido contrário a que se chegou os juízos dos juizados especiais.

Não há qualquer interpretação lógica possível que convirja para entendimento revelado. É dizer, não há nenhuma norma que impeça o acesso aos juizados especiais das microempresas. Ao contrário, há normas permissivas (artigo 8º, §1º, inciso II, da Lei nº 9.099/95 e artigo 3º da Lei Complementar 123/06). O legislador proibiu pessoas jurídicas, mas abriu, expressamente e intencionalmente, posteriores exceções.

Também não se verifica qualquer interpretação sistemática que vá ao encontro do entendimento revelado, pois não há nenhuma incompatibilidade entre as normas veiculadas. Há uma coerência do conjunto de normas que tratam da matéria, tanto àquelas que permitem expressamente o ingresso dessas pessoas (MEI, ME, EPP), quanto do tratamento favorecido (artigo 170, inciso IX, CF/88) e do acesso à Justiça previstos na Constituição, núcleo informador do nosso sistema jurídico. O acesso à justiça é sempre inclusivo, cabendo apenas à lei, e não à interpretação, criar eventual restrição.

Do mesmo modo, não há qualquer interpretação teleológica que afaste a vigência do artigo 3º da Lei Complementar nº 123/06, pois os fins dessa norma foram abraçados pela Lei nº 9.099/95. Afinal, a democratização do acesso à Justiça caminha lado a lado com o tratamento favorecido dado às microempresas e empresas de pequeno porte.

É cediço que a redação original do artigo 8º, §1º, da Lei nº 9.099/95 estabelecia que somente as pessoas físicas capazes fossem admitidas a proporem ação perante o juizado especial, excluídos, os cessionários de direito de pessoas jurídicas. Acertadamente, é claro, para que não fosse corrompido o sistema. As pessoas jurídicas poderiam ceder direitos às pessoas físicas com vistas a utilizarem do procedimento simplificado adotado.

A criação dos juizados especiais se deu pela busca da acessibilidade e da popularização do acesso à Justiça, já que se vislumbrava um mecanismo de justiça mais barato e informal, isso, com a finalidade de que os cidadãos de menor potencial financeiro pudessem tutelar seus direitos junto ao poder judiciário.

Como anota Joel Dias Figueira Júnior, "a intenção do legislador era permitir maior acesso à justiça aos menos afortunados ou hipossuficientes" [3] e, dessa feita, a limitação em permitir que apenas as pessoas físicas capazes pudessem propor ações naquele microssistema perece atender a este critério. Então, quaisquer das pessoas jurídicas, quando da entrada em vigor da Lei nº 9.099/95, não foram incluídas como aptas a promoverem ação nos juizados especiais.

Ocorre que "não raras são as hipóteses em que encontramos microempresas tão ou mais hipossuficientes do que muitas pessoas físicas". Com isso, de início, a lei deixou de atender à realidade social, à econômica e à jurídica, "pois essas entidades comumente deixavam de ter acesso aos tribunais por motivos financeiros agravados pela morosidade na obtenção da prestação da tutela jurisdicional, absolutamente desproporcional em relação a sua qualidade e capacitação" [4].

Com a criação do Simples Nacional Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte —, em 1996, pela Lei nº 9.317/96, posteriormente revogada pela Lei Complementar 123/06 (posteriores à Lei dos Juizados Especiais), criou-se um regime tributário simplificado e diferenciado para as micro e pequenas empresas que foram definidas de acordo com o critério de sua renda bruta, nos termos da legislação pátria sem qualquer ressalva quanto a serem "unipessoais", que inclusive é ficção jurídica criada posteriormente.

Já em 1999, com a Lei nº 9.841, que instituiu o Estatuto da Microempresa de Pequeno Porte, passou-se a permitir o seu ingresso nos juizados especiais na condição de autores, ou seja, promoverem ações no microssistema, tendo como critério adotado também a hipossuficiência.

A Lei Complementar nº 123/06 alterou o artigo 8º, §1º, da Lei nº 9.099/95 passando a prever que as pessoas enquadradas como microempreendedores individuais, microempresas e empresas de pequeno porte definidas na referida lei complementar poderiam propor ação perante o microssistema dos juizados especiais.

A ampliação do acesso aos juizados especiais para essas pessoas, certamente, teve o condão de privilegiá-las tal como se pensou quanto à instituição de um regime fiscal diferenciado, guardando, portanto, compatibilidade com o artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal, incluído pela Emenda nº 6 de 1995.

Tanto é que o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país foi assegurado, não apenas sob o aspecto tributário, mas também com a Lei nº 9.841/99 e, posteriormente, a Lei Complementar nº 123/06 que passaram a admitir que tais pessoas jurídicas, sem qualquer ressalva de que sejam constituídas por uma única pessoa, promovessem ação perante os juizados especiais.

As decisões equivocam-se também ao invocar entendimento do magistrado Ricardo Cunha Chimenti, que possui obra sobre os Juizados Especiais Cíveis, mormente para indicar que o espírito da Lei nº 9.099/95 seria o mesmo da lei que criou os Juizados de Pequenas Causas no ano de 1984. Isso porque não há em sua obra qualquer negação à vigência do artigo 3º da Lei Complementar nº 123/06, nem mesmo uma interpretação restritiva ao artigo 8º, §1º, inciso II da Lei nº 9.099/95.

As leis que passaram a admitir que determinadas pessoas jurídicas pudessem propor ações nos juizados são posteriores à entrada em vigor da Lei nº 9.099/95, traçadas em uma cultura diferente no tempo, adequadas, portanto, às novas realidades.

Sabe-se que as "firmas individuais", "sociedades unipessoais" etc. são ficções jurídicas, sendo reconhecido pela jurisprudência pátria e pela doutrina que há, nesses casos, o aspecto da confusão patrimonial nada tratando sobre uma maior ou menor complexidade de sua atividade. O fato do uma pessoa jurídica (ME e EPP) possuir mais de um sócio não faz com que ela se enquadre como mais ou menos complexa do que as chamadas sociedades unipessoais.

A própria orientação dada pelo Enunciado 141 do Fonaje [5], muito embora sem qualquer força normativa, é pelo reconhecimento de que o sócio dirigente deva representar a microempresa e a empresa de pequeno porte em audiências.

Ora, tanto a expressão empresário individual e sócio dirigente constam do enunciado. De modo que não há como dizer que sócio dirigente e empresário individual se confundem na redação do enunciado.

Até porque o que define se uma sociedade é empresária ou simples para adotar a expressão utilizada nas decisões de Guarulhos e Sertãozinho  é a atividade por ela exercida, conforme artigo 982 [6] do Código Civil/02, e não a quantidade de pessoas que compõe o seu quadro societário (uni ou multipessoal).

Qualquer estudo histórico sobre a criação das pessoas jurídicas reguladas pela Lei Complementar nº 123/06 revela justamente a intenção de que fosse regulamentado o tratamento diferenciado, simplificado e favorecido para os pequenos negócios.

Não há, sob esse aspecto, qualquer restrição vigente em nosso ordenamento jurídico quanto ao ingresso das micro empresas e empresas de pequeno porte, como autoras, nos juizados especiais.

A decisão do juízo dos Juizados Especiais de Sertãozinho invoca ainda a própria experiência daquele órgão jurisdicional de que determinadas pessoas jurídicas chegavam a propor até duas mil execuções em um curto período de tempo. Ocorre que não há qualquer dado empírico que demonstre que empresa com um ou dois sócios possui um comportamento diferenciado quanto à cobrança de seus créditos. Repita-se a complexidade de uma "empresa" decorre do ramo de sua atividade e não pelo número de pessoas que compõe o seu quadro societário.

Se a lei brasileira quis dar um tratamento privilegiado a determinadas pessoas jurídicas, em razão do seu enquadramento, seja no âmbito fiscal ou no acesso à justiça, somente a lei pode exercer qualquer retratação no sentido de excluir tal tratamento.

E, por não ser admitido recurso especial (Súmula 203 do SJT) ou reclamação (Informativo de Jurisprudência 0559 do STJ) contra acórdão de turma recursal que revele o mesmo fundamento das decisões de Guarulhos e Sertãozinho, como advertido pelo jurista e professor que nos inspirou a escrever este ensaio, no plano dos juizados especiais não há limites e limitadores.


[3] TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 9.099/1995. 4. ed. reform., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 146.

[4] TOURINHO NETO, Fernando da Costa; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais Estaduais Cíveis e Criminais: comentários à Lei 9.099/1995. 4. ed. reform., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 146.

[5] ENUNCIADO 141 (Substitui o Enunciado 110) – A microempresa e a empresa de pequeno porte, quando autoras, devem ser representadas, inclusive em audiência, pelo empresário individual ou pelo sócio dirigente (XXVIII Encontro – Salvador/BA).

[6]  Art. 982. Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro ( art. 967 ); e, simples, as demais. Independentemente de seu objeto, considera-se empresária a sociedade por ações; e, simples, a cooperativa.

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