Interesse Público

A Federação e a ultratividade de normas na Reforma da Previdência

Autor

  • Paulo Modesto

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público membro do Ministério Público da Bahia da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e do Observatório da Jurisdição Constitucional da Bahia.

11 de março de 2021, 9h09

Spacca
1. O tempo constitucional entre a extinção de enunciados e normas
A Constituição não é apenas obra normativa no tempo histórico, mutável e alterável; ela possui dentro de si camadas e trilhas de tempo variadas, compondo totalidade dinâmica que é impróprio uniformizar. A Constituição reflete a história e é memória, pois articula a vigência de suas próprias normas no tempo dentro de parâmetros que cumpre entender e aplicar sem simplificações excessivas.

Um exemplo pode ser dado pela revogação de enunciados na sucessão de emendas constitucionais. A revogação de enunciados nem sempre determina a revogação de normas, pois as normas (como significações prescritivas) podem manter vigência e aplicação mesmo após a eliminação dos enunciados em que estavam registradas. Recorde-se a revogação do inciso XI do art. 37 da Constituição pela Emenda Constitucional 19/1998 (teto constitucional). O novo texto ingressou no diploma constitucional em 4.06.1998, mas até a Emenda Constitucional 41, de 19.12.2003, foram consideradas vigentes as antigas normas sobre limites de retribuição, constantes dos enunciados expurgados do texto constitucional, pois a nova prescrição de 1998 foi considerada não autoaplicável até a aprovação da definição legal do subsídio-teto (STF, RE 419.862-AgR, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 10.09.2004; RE 362.211- AgR, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 04.03.2005)

É trivial que o direito manipule o tempo de vigência das normas, inclusive das normas constitucionais, embora essa alquimia não deva ser surpreendente a ponto de encerrar fraude à segurança jurídica. Nada em princípio impede que uma reforma constitucional altere enunciados sem alterar normas, altere normas apenas quanto a sua aplicação temporal, ou altere a vigência de normas para um campo de aplicação e mantenha-o constante em outro. Muitas combinatórias nessa matéria são possíveis, de forma lógica, com resultados múltiplos e interessantes.

Porém, desconheço estudos que tratem dos reflexos dessa alquimia temporal do reformador constitucional nacional em ordens normativas conectadas, coordenadas necessariamente, em razão de disposições específicas ou pelo próprio status das normas constitucionais revogadas. É o problema emergente quando se altera na Constituição Federal a vigência, a compulsoriedade ou o conteúdo de normas constitucionais de reprodução obrigatória para todas as unidades da Federação.

2. Normas de reprodução obrigatórias e as mutações das ordens constitucionais estaduais
O Estado Federal é caracterizado, entre outros aspectos, pela pluralidade de ordenamentos jurídicos inseridos em uma unidade coordenada. Foedus significa aliança, pacto, vínculo de união e diversidade. É dizer: federação é totalidade normativa composta por simetrias e assimetrias, uma variedade de ordens jurídicas parciais autônomas (normas estaduais, normas municipais, normas exclusivas da União) e um conjunto de normas aplicáveis a todas as ordens individualizadas (as normas centrais, também denominadas nacionais, exigíveis imediatamente no âmbito das ordens jurídicas parcelares). Esses conjuntos não são isolados, mas interdependentes, sendo essa uma das razões da variedade das ordens jurídicas federais, moldadas de modo histórico-concreto e não puramente ideal.[1] Federação é, em essência, forma de estado pluriconstitucional.

No dizer de CARMÉN LUCIA ANTUNES ROCHA, a “autonomia das entidades federadas, que garante a existência do consórcio de ordens jurídicas parciais compostas, coordenada e harmoniosamente, em uma única nacional, é a pedra de toque da Federação”[2].

É certo que a autonomia das unidades locais não é absoluta, pois as ordens estaduais não podem afrontar os princípios constitucionais federais sensíveis (CF, art. 34, VII, a a e) e os municípios os princípios sensíveis estabelecidos na Constituição estadual (CF, art. 35, IV). Tampouco podem as unidades parciais recusar cumprimento aos chamados princípios estabelecidos (expressos e implícitos), fonte primeira das normas de reprodução obrigatória. [3]

Normas de reprodução obrigatória, antecipei em outro lugar, são as “normas constitucionais nacionais de aplicação direta nas unidades da Federação — normas não apenas de reprodução necessária nas leis fundamentais subnacionais como também normas implícitas exigíveis no âmbito subnacional, na hipótese de ausência de seu registro formal nas leis capitais desses entes. De forma resumida: são normas nacionais obrigatórias perante os entes federados mesmo diante da omissão do seu expresso acolhimento pelos legisladores locais, por repetição ou remissão”. [4] Na prática, a aprovação de enunciados na Constituição Federal expressivos de normas de reprodução obrigatória instala automática e inelutavelmente novas normas constitucionais nas ordens jurídicas parciais, conquanto implícitas, com enriquecimento das ordens constitucionais locais, a permitir a invocação de novo parâmetro de controle na avaliação da legislação estadual e municipal pelos Tribunais de Justiça. [5]

Essa ligação umbilical de ordens jurídicas no âmbito da Federação atrai outra consequência na ordem do tempo constitucional: há uniformidade no tempo de aplicação da norma de reprodução obrigatória no plano nacional e local — se a norma for imediatamente eficaz no plano nacional também o será no plano subnacional. É dizer: as normas de reprodução obrigatória caracterizam-se pela obrigatoriedade nacional e pela vigência simultânea.

Situação diversa ocorre quando a Constituição Federal, em domínio em princípio de sua plena disposição, recusa esta uniformidade temporal e autoriza as ordens jurídicas locais a ratificarem ou recusarem determinada alteração constitucional, mantida a vigência das normas constitucionais revogadas para os entes subnacionais até a sobrevinda da decisão autônoma dessas unidades políticas sobre o assunto (ultratividade da norma revogada).

Se a nova prescrição federal é obrigatória aos entes subnacionais quanto ao conteúdo, porém sujeita-se a aplicação diferida ou tem suspensa a sua aplicação à espera da confirmação local de vigência, há norma constitucional nacional de conteúdo obrigatório, mas não há norma de reprodução obrigatória, pois essa última categoria identifica normas de vigência uniforme e simultânea na Federação; se o próprio conteúdo da nova prescrição nacional pode ser alterado pelo legislador subnacional no âmbito local, será impróprio falar em norma de conteúdo obrigatório ou norma de reprodução obrigatória, sendo evidente a ampliação da autonomia normativa dos entes subnacionais. Neste último caso, a Constituição Federal faz depender a vigência de determinada prescrição no plano local de norma específica da entidade política autônoma, sem imposição de figurino único quanto ao conteúdo ou ao momento de vigência da nova formulação. A decisão final nesse caso será ditada pelos próprios entes subnacionais.

Quer em face de normas nacionais de conteúdo obrigatório, mas de vigência local dependente de confirmação, quer em face de normas de autonomia ampliada, a consequência no regime do tempo é uma só: poderá ocorrer descasamento entre o tempo de vigência da norma nacional e o tempo de vigência do mesmo conteúdo prescritivo no plano estadual, distrital ou municipal.

Essas considerações algo abstratas podem ser exemplificadas concretamente por disposições constantes da última reforma da previdência (Emenda Constitucional 103/2019), pois esta emenda contemplou os três tipos de normas dirigidas aos Estados, Distrito Federal e Municípios. Estabeleceu normas de reprodução obrigatória (imediatamente exigíveis nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios); normas de conteúdo obrigatório (mas dependentes de decisão de vigência no âmbito local) e normas de autonomia ampliada (normas que deixaram de ser de reprodução obrigatória, mas que permaneceram vigentes no âmbito constitucional local até o exercício da autonomia reformadora pelos entes políticos subnacionais). [6] Por óbvio, é impossível tratar dessas variadas situações na economia deste artigo.

3. Revogação de Norma de reprodução obrigatória e ampliação da autonomia local
Basta referir uma única situação para exemplificar a complexidade da matéria. Na parte final da última reforma da previdência (EC 103/2019), no art. 35, revogou-se, em uma só disposição, o § 21 do art. 40; o § 13 do art. 195; os arts. 9º, 13 e 15 da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998; os arts. 2º, 6º e 6º-A da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003; e o art. 3º da Emenda Constitucional nº 47, de 5 de julho de 2005.

A revogação de normas constitucionais transitórias é problemática por si, tendo em conta a finalidade, a funcionalidade e os vínculos que esse tipo de norma mantém com a proteção da confiança e a segurança jurídica. Mas não é o caso de revisitar esse tema, que abordei em outros trabalhos [7], uma vez que o presente texto cuida dos reflexos nas ordens jurídicas subnacionais da revogação de normas de reprodução obrigatória.

O reformador aparentemente oferece respostas no preceito seguinte, dispondo, no Art. 36, que para os regimes próprios de previdência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, parte das revogações previstas no Art. 35 deve permanecer suspensa até a “data de publicação de lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo que as referende integralmente”. (Art. 36, II, in fine).

Parte das normas, pois na revogação dos artigos 9º, 13 e 15 da EC 20/1998, não houve diferimento ou suspensão. Apenas o § 21 do art. 40 da CF (limite superior de incidência da contribuição previdenciária em benefício do portador de doença incapacitante) e as normas de transição constantes dos arts. 2º, 6º e 6º-A da EC 41/2003, e o art. 3º da EC 47/2005, sofreram revogação com eficácia exclusiva para a União e condicional e diferida no tempo para Estados, Distrito Federal e Município.

Entendo que as normas revogadas no âmbito constitucional da União subsistirão ultra ativas como normas constitucionais vigentes na ordem constitucional das unidades subnacionais. A expressão lei, empregada pelo reformador no Art. 36, tem o sentido de lei fundamental, pois refere não apenas às Constituições Estaduais e à Constituição do Distrito Federal como também às leis orgânicas dos municípios, como são conhecidos os diplomas superiores das ordens municipais. A referência à lei no Art. 36 da EC 103/2019 não deslocou para o plano infraconstitucional normas que vigoram, explicita ou implicitamente, na ordem constitucional das unidades menores da federação. Não houve rebaixamento do status normativo dessas disposições vigentes (downgrade hierárquico), uma vez que as mesmas permanecem com a mesma eficácia constitucional anterior e ultra ativas por decisão expressa do reformador nacional, sendo apenas conferida ampliação da autonomia dos Estados, do Distrito Federal e Municípios para inovar ou decidir sobre a disciplina da matéria.

O reformador nacional foi ainda enfático ao exigir ação deliberada do reformador local: demandou “referendo integral” das revogações mencionadas para que elas surtissem efeito no plano local (Art. 36, II, in fine). Mas o referendo aludido é apenas confirmação expressa, não se confundindo com o instituto de participação popular de mesmo nome. Por óbvio, o referendo não é obrigatório e pode ser parcial ou diferenciar na disciplina do tempo de transição.

Essa interpretação, que avançamos sinteticamente em trabalhos anteriores, encontra apoio hoje em decisões normativas de vários Estados e já repercutiu em importante decisão do Poder Judiciário do Estado da Bahia (Liminar na ADI 8033612-74.2020.8.05.0000, Rel. Des. RAIMUNDO SÉRGIO SALES CAFEZEIRO, d. 17/02/2021). [8]

No Estado de Minas Gerais, por exemplo, o Art. 155 da Emenda Constitucional nº 104, de 14/09/2020, foi categórico: “Art. 155. Ficam referendadas as revogações previstas nos incisos III e IV do art. 35 da Emenda à Constituição da República nº 103, de 2019, nos termos do inciso II do caput de seu art. 36."

O Estado do Espírito Santo adotou decisão constitucional indireta. Por via da Emenda Constitucional 114/2019, promoveu alterações na ordem constitucional estadual, porém pelo Art. 7º, §único, manteve as alterações suspensas até a publicação de lei complementar reguladora, o que veio a ocorrer em 09/01/2020 (LC 938, 09/01/2020, Art.13). Em São Paulo, houve declaração de referendo integral por Lei Complementar (Art. 32 da LC 1.354, de 06/03/2020), o que pode suscitar polêmica e questionamento. Muitos Estados, porém, ainda não implementaram a EC 103/2019 e outros simplesmente silenciaram sobre a nova competência que lhes foi reconhecida: a disciplina da transição, do tempo constitucional na ordem estadual e municipal em matéria previdenciária, e a proteção da confiança suscitada pelas normas de transição anteriores.

Trata-se de competência nobre, que não deve ser negligenciada.

As normas de transição são normas de memória e de antecipação. Guardam o passado, projetam o futuro e reconhecem a sucessão jurídica e temporal. São normas de identidade temporal de um grupo específico de sujeitos e se esgotam também no tempo.

Desprezá-las é como limar a memória e a expectativa induzida pelo próprio Estado nos seus beneficiários. Revogá-las, sem considerar a eficácia passada que produziram e as expectativas legítimas suscitadas, equivale a patrocinar sujeitos de direito que caminham na areia, instáveis, sem saber onde pisam.


[1] SEPÚLVEDA PERTENCE, relator em acórdão notável, repeliu modelos ideais de federalismo e admitiu a reformabilidade do federalismo concretizado, preservado o seu núcleo essencial: (…) “A "forma federativa de Estado" – elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege. (…) (ADI 2024, Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, DJe-042, 21-06-2007)

[2] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p.180.

[3] As normas de reprodução obrigatória são inconfundíveis com as normas de imitação, que traduzem mimetização voluntária da normatividade federal. Consulte-se, sobre o tema, a obra clássica de RAUL MACHADO HORTA, A autonomia do Estado-membro no Direito Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte: 1964, s.e., p. 192 e segs.

[4] Cf. MODESTO, Paulo. Previdência nos estados e municípios: exercício de autonomia ou reprodução? Coluna Interesse Público, Conjur, 16/01/2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-16/interesse-publico-previdencia-estados-municipios-autonomia-ou-reproducao-servil

[5] Cf. MODESTO, Paulo. As normas de reprodução, imitação e remissão como parâmetro de controle de constitucionalidade nos Estados-membros da Federação e o papel das Leis Orgânicas Municipais. RBDP, n.46, jul./set, 2014, p. 201-213. Disponível em https://www.academia.edu/15694862

[6] Exemplos de normas de reprodução obrigatória: Art. 37, §13 e 15; Art. 39, §9º; Art. 40, caput, e §9º, 13, 14 e 15. Exemplos de normas de conteúdo obrigatório para os legisladores locais: Art. 40, §4º, 5º, 6º, 20, Art. 195, §11, e 14. Exemplos de normas de autonomia ampliada: Art. 40, §1º, III; §3º e §4º, 4º-B, 4º-C, §7º, entre muitos outros.

[7] Sobre o tema, MODESTO, Paulo. A garantia da paridade após a reforma da Previdência (EC 103/2019). Conjur, disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jan-28/interesse-publico-garantia-paridade-reforma-previdencia ;idem, ADCT: a insustentável incerteza do dever-ser. ConJur, https://www.conjur.com.br/2020-nov-26/interesse-publico-adct-insustentavel-incerteza-dever ; idem, A Reforma da Previdência e a Espera de Godot, RBDP, v. 17, n. 65, p. 9-20, abr./jun. 2019, disponível em https://www.academia.edu/40265339

[8] Ver sobre a decisão: https://www.conjur.com.br/2021-fev-20/tj-ba-mantem-regras-antigas-transicao-servidores-bahia

Autores

  • Brave

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

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